O ferryboat da companhia Navegação Bom Jesus traz em proa e popa a inscrição “Orgulho de ser do Marajó”. Há balsas saindo pela manhã e navios à tarde, partindo de Belém de segunda a sábado e chegando a Breves entre onze e catorze horas depois. A variação depende se a maior parte do trajeto será feito contra ou a favor da corrente.
As maiores embarcações da frota têm capacidade para quase mil redes e dispõem também de camarotes para duas pessoas. Os viajantes, em sua maioria, são pessoas que precisam fazer o trajeto entre a capital paraense e a “capital do Marajó”, como Breves é costumeiramente chamada, para trabalhar, fazer compras, acessar serviços de saúde. Com seus cerca de 107 mil habitantes, é a cidade mais populosa entre as dezessete que compõem o arquipélago. Para quem nasce nas ilhas do Marajó, a definição “marajoara” vem antes de “paraense”. A reafirmação das raízes é um traço marcante do povo da ilha.
Se deslocar pelos rios por horas a fio faz parte da rotina marajoara, mesmo quando o deslocamento acontece dentro do arquipélago. Há comunidades de Breves que ficam a oito horas de barco do Centro da cidade, caso de São Miguel dos Macacos. São agrupamentos populacionais onde há pouca presença do Estado.
Não foi surpresa para a maioria desses viajantes que se dividem entre as duas capitais o assunto que a cantora Aymeê Rocha puxou durante uma participação em um reality show musical gospel chamado Dom Reality, transmitido pelo canal da universidade no YouTube, em fevereiro. “Todo mundo sabe que isso acontece”, é uma resposta comum desses passageiros quando perguntados sobre um tema presente na canção que apresentou: as denúncias de abuso e exploração sexual infantil no Marajó. De tempos em tempos, essa preocupação acerca do arquipélago ganha repercussão nacional.
Vale recordar o episódio. Na música Evangelho de Fariseus, Aymeê alude brevemente aos rumores de desaparecimentos e mortes misteriosas na ilha: “Ah, enquanto isso, no Marajó/ O João desapareceu/ Esperando os ceifeiros da grande seara.”
A artista depois declarou: “Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, minha terra. E as crianças, lá tem muito tráfico de órgãos, lá é normal. Tem pedofilia em nível ‘hard’ [pesado].”
“É normal.” Suas palavras foram incendiárias, para as pessoas da ilha e para as de fora, que se indignaram por razões diferentes, em alguma medida opostas.
Artistas e influenciadores digitais de outros estados compartilharam em massa a fala de Aymeê, amplificando a indignação e cobrando autoridades. Logo a fala da cantora ganhou edições mescladas com vídeo de crianças amontoadas em um veículo, imagem que, sem contexto, foi compartilhada como se retratasse a forma como os crimes acontecem: à luz do dia, olhos vistos e sob a conivência da população – na percepção das redes sociais, um território sem lei, enfim, se revelava. Mas esse vídeo continha fake news: a imagem usada vinha de um episódio passado no Uzbequistão em 2023, quando uma professora foi detida ao transportar 25 crianças ilegalmente em um carro.
A influenciadora e atriz Rafa Kalimann postou para seus 3,3 milhões de seguidores no X: “VOCÊ SABE O QUE ESTÁ ACONTECENDO NA ILHA DE MARAJÓ”? Outros gigantes das redes fizeram posts sobre o tema, como a cantora Juliette.
Com o tema em ebulição nas redes sociais, logo o Instituto Akachi deu início a uma campanha de arrecadação de recursos que seriam revertidos para eventuais vítimas desses crimes, divulgando uma chave Pix. O Akachi é ligado à Zion Church, entidade religiosa que, entre suas atividades, promove formação para missionários. A reportagem enviou e-mail para a assessoria do Instituto Akashi com questionamentos sobre o montante arrecadado e a destinação dos recursos, mas não obteve resposta. Dias depois de a música viralizar, Aymeê Rocha e o pastor Lucas Hayashi, da Zion Church, postaram uma foto em collab no Instagram. Na imagem, aparecem abraçados e a legenda pede orações ao Marajó e convida os seguidores a engajarem o post com a pergunta “Qual música será a da final do Dom Reality?”
Logo veio à tona no X a hashtag #DamaresTemRazao. Em outubro de 2022, durante um culto na cidade de Goiânia, a ex-ministra Damares Alves havia afirmado possuir imagens provando dois fatos bastante perturbadores: o de que crianças do Marajó tinham os dentes arrancados para não morderem durante a prática de sexo oral e que eram forçadas a comer comida pastosa “para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”.
Damares (e nem qualquer outra pessoa) jamais apresentou imagens ou qualquer outra prova ou mesmo indício do que dizia. O Ministério Público Federal do Pará ajuizou uma ação civil pública contra a atual senadora e a União, cobrando uma indenização de 5 milhões de reais pelos danos sociais e morais aos moradores da região. Se houver condenação, o valor deve ser revertido em projetos sociais do arquipélago. É um montante superior a qualquer repasse de recurso feito pelo programa Abrace o Marajó, lançado quando estava no governo Bolsonaro e revogado na gestão de Lula, em meio a críticas de ser ineficaz.
A intensa movimentação das redes sociais, entre apelos indignados e notícias falsas, fez soar um alerta entre as entidades que atuam no arquipélago. Uma delas foi o Observatório do Marajó, ONG que trabalha no apoio à criação de políticas públicas para melhorar os indicadores sociais dos municípios do arquipélago.
Como resposta ao compartilhamento das denúncias, o Observatório do Marajó emitiu uma nota intitulada “Não Acredites em Tudo o que Vês na Internet”. O documento enumerou oito pontos de atenção para entender o contexto em que as denúncias estavam sendo feitas.
O item sete da lista alerta para um possível efeito perverso da divulgação de denúncias sem embasamento: o risco de abusadores de outras localidades entenderem que se trata de um ambiente permissivo para cometer crimes, como se fosse um destino leniente da prostituição infantil.
“Redes criminosas de exploração sexual de crianças e adolescentes impulsionam mobilizações que chamam atenção para regiões com precariedades institucionais, como um apito para chamar criminosos para esses espaços. Não espalhe mentiras sobre o Marajó nas redes e nem caia em desinformação e pânico moral”, disse a nota do observatório. Guedes acredita que, para além de debater o método, é preciso debater o conteúdo.
O texto do Observatório do Marajó foi reproduzido pelo ministro Silvio Almeida em sua conta no X. Como desdobramento, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania solicitou à Advocacia-Geral da União que investigasse o compartilhamento das denúncias para verificar de onde partiram e qual motivação.
A cantora Juliette, campeã do BBB, foi procurada pela reportagem para explicar como teve acesso ao conteúdo e o que conhece do assunto, mas não quis dar entrevista. Em nota, enviada em março, sua assessoria de imprensa se defendeu de acusações de ter compartilhado fake news. “Recentemente, surgiram alegações de que Juliette teria compartilhado fake news relacionadas à questão da Ilha de Marajó (PA). Nós, da bpmcom [agência que faz a assessoria de imprensa da cantora], esclarecemos que tais acusações foram equivocadas, injustas e infundadas. Juliette compartilhou o vídeo da cantora Aymée Rocha expressando solidariedade ao tema, dando luz ao assunto e promovendo o debate social”, diz parte da nota. A atriz Rafa Kalimann também foi procurada, mas não se manifestou.
O arquipélago do Marajó abriga quatro das dez cidades com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, incluindo a que tem o número mais baixo (0,418), Melgaço.
Breves está fora dessa lista, com índice de 0,503 – ainda assim distante da média nacional, que é de 0,76. A cidade se tornou um polo na região pela posição estratégica: fica próxima a Melgaço e Portel, no chamado Marajó continental e também a Macapá. Hoje é a cidade marajoara com maior infraestrutura na área de educação, com opções públicas e privadas de ensino superior e profissionalizante.
As ruas da cidade são agitadas de segunda a segunda, com um comércio movimentado, mas a exemplo de outras cidades do Marajó conservam a tradição de uma pausa após o almoço para então dar início ao turno da tarde. Nas ruas, o principal meio de transporte motorizado é a motocicleta, que faz as vezes de carro popular como opção para o deslocamento das famílias, frequentemente com mais de dois passageiros a bordo, inclusive crianças de colo. A ausência do capacete é comum. Em março, quando passou por lá, a piauí não encontrou fiscalização nas ruas.
Na semana seguinte às denúncias de violações de direitos humanos no arquipélago, Breves estava concorrida. A cidade recebeu visitas em massa de autoridades, mas por outro motivo. O Governo Federal e o do Pará desembarcaram com suas comitivas. O representante do executivo nacional foi o Ministro de Minas e Energia (MME), Alexandre Silveira. Ele vestia uma camisa com grafismos marajoaras, como as que o governador Helder Barbalho costuma escolher nas agendas que participa no arquipélago.
Lá o MME assinou um contrato de 2,6 bilhões de reais com a concessionária de energia Equatorial. O investimento atenderá cerca de 280 mil pessoas em todo o estado. Municípios do Marajó que sofrem com a falta de energia elétrica estão entre os mais beneficiados pelo programa. Nas comunidades ribeirinhas remotas, a forma de energia mais comum é a de geradores alimentados por óleo diesel. Com a substituição pelos painéis fotovoltaicos do Luz Para Todos, estima-se que as famílias possam economizar 200 reais por mês, uma vez que os sistemas de captação e armazenamento de energia solar são feitos para dar conta de alimentar apenas eletrodomésticos como televisão, geladeira ou freezer, e não aparelhos de maior consumo, como ar condicionado.
Apesar dessa agenda já estar prevista antes das denúncias, o momento em que aconteceu trouxe também para a cidade um movimento de políticos de oposição, como o ex-deputado Arthur do Val (União Brasil), ex-integrante do MBL. Ele teve seu mandato de deputado estadual cassado após viajar à fronteira da Ucrânia com a Eslováquia, em plena guerra, e comentar sobre como era fácil se envolver com as mulheres do país, devido à vulnerabilidade em que se encontravam em meio ao conflito contra a Rússia, o que chamou acintosamente de “tour de blonde”.
O que liga atualmente as mulheres ucranianas às meninas do Marajó é justamente a vulnerabilidade social, embora por motivos e contextos distintos. Para “comprovar” que as denúncias eram procedentes, Do Val armou um encontro com duas adolescentes, que o encontraram no hotel em que estava hospedado. Ele disse que alinhou a arapuca com integrantes da Polícia Civil. Tudo foi documentado e disponibilizado em seu canal no YouTube. A farsa acabou tornando o ex-deputado alvo de uma investigação, solicitada pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania ao Ministério Público do Pará.
Há oito anos Alan Roberto trocou o município de Castanhal, conhecido no Pará pelo apelido de Cidade Modelo (devido ao planejamento urbano ordenado), para viver em Melgaço. Em 2020, Roberto foi eleito para ocupar o cargo de conselheiro tutelar e recentemente foi reeleito para o próximo quadriênio. Na rede de garantia de direitos de crianças e adolescentes, o conselheiro tutelar está na linha de frente. Ao receber uma denúncia, ele deve encaminhar a família ou a vítima ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social, que dará atendimento psicossocial aos envolvidos; à delegacia, via ofício, para que se instaure investigações sobre o suspeito do crime; e, por fim, ao Ministério Público, para seguir com as medidas judiciais. Caso descumpra esse fluxo, pode incorrer no crime de prevaricação.
Desde que assumiu a função, Roberto afirma que a maioria das denúncias recebidas pelo Conselho Tutelar são de crimes sexuais. Em cerca de 70% dos casos o abusador está na própria família, algo semelhante à média nacional, de 68% em casos de violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos.
É uma realidade repleta de casos graves e preocupantes, mas que está longe de ser uma particularidade do arquipélago.
“O Marajó tem sido vitimado em carregar essa carga, mas nós sabemos que essa é um uma situação que ocorre muito em outras regiões. Se você for ver a questão dos caminhoneiros nas estradas, é alarmante. Você vê meninas que são exploradas, que estão ali expostas, mas o Marajó virou holofote da situação. Eu não estou dizendo que nós não temos problema. Nós temos. Mas nós estamos cuidando deles e fazendo o possível para que isso possa ser resolvido”, completou Jonias Correa Guedes, presidente do CMDCA de Melgaço. “Querem passar a imagem de que somos coniventes. Nós não somos.”
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que em 2022 o Brasil chegou ao maior número histórico de casos de estupro de vulnerável, com 74.930 vítimas, um aumento de 8,2% em relação ao ano anterior e que resulta em 36,9 casos de estupro de crianças e adolescentes para cada 100 mil habitantes. No Marajó, em 2022, foram registrados 407 casos de estupro de vulnerável, ou 73 casos para cada 100 mil habitantes. A média do Pará no mesmo ano foi de 36,8 casos para cada 100 mil pessoas, semelhante à do Brasil. Os estados com maiores índices são Roraima (87,1), Acre (67,1) e Amapá (64,5).
É um número expressivo para um crime grave que tem alta incidência em todo o território nacional e é maior em regiões pobres, mas não indica um espaço livre para o crime – e muito menos para as práticas citadas por Damares.
Ações preventivas de informação são a forma de combate mais eficaz aos crimes sexuais, dificultado pelo acesso a comunidades remotas. Roberto conta que em uma comunidade remota, já próxima ao município de Gurupá, uma ação do Conselho Tutelar com a Polícia Civil em uma escola local foi capaz de mostrar aos agressores que os crimes não ficariam impunes, e às vítimas os comportamentos passíveis de denúncias.
Ele estima que de 2020 a 2023, o Conselho registrou cerca de cinquenta denúncias de crimes sexuais, incluindo de atos libidinosos (toques ou mesmo troca de imagens de teor sexual com menores de idade). De janeiro ao início de março de 2024, foram sete casos.
Sobre cafetinagem de menores, desde 2020, quando assumiu o primeiro mandato, o conselheiro afirma nunca ter recebido nenhuma denúncia.
Levar informação, ou mesmo a repressão ao crime, às comunidades mais distantes seria menos difícil se as redes de proteção (como conselhos tutelares, ONGs e secretarias municipais de assistência social) dispusessem de um aparato mais qualificado. Afinal, as distâncias são imensas no emaranhado de rios, furos e igarapés da bacia hidrográfica do Marajó.
Em um mesmo município pode-se levar horas para alcançar um vilarejo mais remoto – isto com o equipamento adequado, como um motor com 150 cavalos de potência e um casco que deslize bem nas águas densas dos afluentes do Amazonas. Não é o caso do que se dispõe nos trapiches (locais de atracação de barcos) de cidades marajoaras.
Nas cartilhas elaboradas para informar pais sobre formas de prevenir ou identificar sinais de violações, há uma lista de comportamentos que as vítimas costumam apresentar após sofrerem abusos. Isolamento da família, oscilações de humor, tristeza repentina e medos até então incomuns estão entre eles.
No dia 26 de abril, um garoto de 11 anos voltou para casa passando mal após assistir a uma aula na escola municipal Paula Frassinetti. Não queria comer, se queixava de enjoo e dor de cabeça, e depois teve febre. No dia seguinte, ele passou a se isolar. Os pais perguntavam a ele o que tinha, mas o garoto dizia que não era nada e se apressava para mudar de assunto. “Mas eu via nos olhos dele que ele estava com muito medo”, lembra a mãe.
No dia seguinte, a febre seguiu oscilando, o filho continuou sem se alimentar e a dor de cabeça ficou mais forte. Foi então que a criança se queixou de muitas dores para evacuar. A mãe então disse que seria preciso levá-lo ao hospital. “Mas eu tenho que saber o que você tem porque tenho que dizer [no hospital]”, disse ela ao garoto. Só aí a criança contou que havia sido estuprada na escola e citou o nome de um professor de 52 anos.
Segundo a investigação da polícia, o professor passava prova aos alunos. O menino demonstrava dificuldades em resolver algumas questões e foi o último a entregar a prova. Enquanto estiveram sozinhos na sala, o professor o ajudou a resolver as questões que ele não sabia. Em troca, diz a investigação, exigiu do aluno uma “recompensa”, o estuprou e cobrou seu silêncio.
Segundo dados nacionais, as escolas são o segundo local de maior ocorrência de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, atrás apenas das casas onde vivem.
A escola Paula Frassinetti fica em frente à Praça do Camarão. Do outro lado da rua estão localizados a delegacia da cidade, e ao lado do prédio policial, o Conselho Tutelar, para onde os pais da vítima foram ao ouvir o relato de estupro. Ao chegarem no local, os pais relataram o fato ao conselheiro Rudherio da Costa, que em seguida deu início ao procedimento de “escuta especializada” com a vítima. Após ouvir a criança, o conselheiro tinha material suficiente para encaminhar o caso para a autoridade policial, que também ouviu a vítima e a encaminhou para o exame sexológico no Instituto de Medicina e Odontologia Legal Renato Chaves. O laudo do exame apontou “vestígios recentes de práticas libidinosas da conjução camal”, consistente com “provável cópula ectópica per-anal”.
O professor foi preso no dia 8 de maio, dentro da escola. O caso inaugurou a campanha Maio Laranja no município. No dia seguinte à prisão, a equipe da delegacia de Muaná recebeu a Irmã Henriqueta e Maristela Cizeski, ativistas dos direitos das crianças e dos adolescentes. Ao lado do Conselho Tutelar, deram início a um curso de formação para os agentes de redes de proteção em diversas escolas do município. O foco era a conscientização e instrução aos alunos para interpretarem e denunciarem situações suspeitas, bem como ensinar a quem deve proteger crianças e adolescentes de predadores sexuais as estratégias para estimular denúncias.
Em meio às movimentações da defesa do acusado, à curiosidade mórbida de moradores da cidade, e do choque que acometeu toda a família, os pais optaram por se refugiar em local afastado e desconhecido durante os dias seguintes à prisão. A mãe faz um crivo rigoroso em qualquer contato que recebe, como o desta equipe de reportagem, antes de falar sobre o episódio.
No dia 15 de maio, o juiz Luiz Trindade Junior, titular da Vara Única de Muaná, transformou a prisão preventiva em domiciliar. O promotor do caso irá recorrer da decisão, que motivou uma manifestação no Centro da cidade, ocorrida no dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes.
Para quem combate a pedofilia na cidade, trata-se de um caso recebido com o espanto e a gravidade esperados, o que contraria a ideia que se propagou, o de uma terra sem lei.
O nome francês pode confundir, mas não passa de um erro do cartório onde Marie Henriqueta foi registrada, ainda na cidade amazonense de Eirunepé, quase na divisa do Acre. Apesar do erro ser de apenas uma letra, ela adotou também a pronúncia francófona para o nome (má-rri). Pouco importa – ela ficou conhecida mesmo pela alcunha de Irmã Henriqueta e pelo combate aos crimes de abuso e exploração sexual infantil na Ilha do Marajó. Hoje sua atuação acontece em frentes das mais diversas: participa de lives em redes sociais ao lado da jornalista Ana Paula Araújo para falar sobre os crimes acontecidos no Marajó, organiza eventos educativos para preparar agentes de segurança em diversos municípios do arquipélago e, mais recentemente, fez consultoria no longa-metragem “Manas”, a convite da diretora Marianna Brennand e da produtora Carolina Benevides. O filme retrata as violações de direitos de crianças e mulheres em rincões dos mais isolados no território marajoara e após dez anos de pesquisa deve ser lançado este ano em festivais internacionais.
Antes de se dedicar à maior ilha fluviomarítima do mundo, ela iniciou sua trajetória de trabalhos sociais em Terra Firme, bairro periférico de Belém, onde atuou diretamente com adolescentes infratores envolvidos com gangues. O projeto social era ligado a uma associação chamada “Unidos na Luta”, e assistia adolescentes em vulnerabilidade social e expostos à violência de toda sorte, como vítimas ou perpetrantes. Sua doação à causa chamou a atenção do então Bispo do Marajó. “Dom Azcona mandou me chamar.”
O convite era para assumir a coordenação executiva da Comissão Justiça e Paz, divisão da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) conhecida não só pelo trabalho atuante nas causas sociais mas pela fama de ser uma ala rebelde da Igreja Católica, que por vezes se posiciona contrária à própria CNBB. “Eu relutei, porque gostava de trabalhar em Terra Firme, mas fui. Quando cheguei, encontrei as inúmeras denúncias de violência sexual no arquipélago, em espaços chamados de boates’, mas também nos rios”, relembra.
O ano era 2010 e Henriqueta foi o braço direito de Dom Azcona na persistente rotina de levar aos deputados estaduais paraenses as inúmeras denúncias, e articular pela instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que ficou conhecida como a CPI da Pedofilia. Esse epíteto exigiu de antemão um trabalho de educação para diferenciar pedofilia (diagnóstico clínico, caracterizado pela fantasia, desejo ou comportamento sexual recorrente por menores de 14 anos de forma compulsiva e obsessiva), estupro de vulnerável (prática de atos sexuais com menores de 14 anos, seja violenta ou não, com ou sem contato físico) e exploração sexual (quando o criminoso lucra com a exploração de menores).
Sua primeira visita ao território foi em Breves. Além das denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes, dentro e fora das famílias, denunciou à polícia exploração da prostituição de menores em uma boate.
Também chamou sua atenção a precariedade de alguns serviços. Em sua segunda viagem, para a cidade de Chaves, percebeu que era difícil sair de lá por não haver linhas de barco regulares para outros locais. Foi em meio a esse desespero que ela percebeu o quanto essas distâncias são um fator na equação da proteção dos direitos das crianças, por afastar a presença de agentes públicos que formam uma rede de proteção (assistentes sociais, psicólogos e forças de segurança, por exemplo). “Para nós que somos defensores de direitos humanos, que temos que defender a vida da população, a distância geográfica é um problema, né? A gente não tem transporte de qualidade, de rapidez, então precisa disponibilizar de tempo.”
Ela reconhece os esforços de autoridades no sentido de instrumentalizar os serviços públicos oferecidos, fortalecer a rede de proteção, qualificar os profissionais que lidam diretamente na defesa de crianças e adolescentes, criar delegacias especializadas, mas considera que a solução continuará distante enquanto não houver políticas públicas que deem ao povo, sobretudo os das comunidades mais remotas, educação, qualificação e acesso a emprego. “E não é com uma fábrica de calcinhas que isso vai acontecer”, diz, em referência a uma outra fala de Damares Alves quando era ministra e afirmou que as crianças marajoaras são exploradas por muitas vezes andarem na rua sem roupa de baixo.
O programa Abrace o Marajó, lançado durante a gestão de Damares no governo federal, não teve efeito prático no território. Soraya Caramês, secretária municipal de assistência social de Breves, lembra que a expectativa pelo programa se converteu em frustração por recursos que nunca chegaram ao destino proposto. “Não tivemos nem um aperto de mão, quanto mais um abraço”, resume Caramês. Ela conta que ao assumir a secretaria em 2021 buscou aproximação com o ministério, encantada pela propaganda que vinha sendo feita. Nada, porém, saiu do papel ou se converteu em política pública ou mesmo repasse de recursos para o município. “É muito triste ver que, muitas vezes, as pessoas se beneficiam com o nome da nossa população para fazer propaganda, para aparecer”, lamentou.
Abraçada à ausência de políticas públicas está a impunidade, seja a dos agressores ou a dos gestores que falham na função de prover melhor qualidade de vida. Ela cita uma forma “tolerada” de violações de direitos, não só no Marajó, como bem explica uma triste tradição brasileira: quando uma jovem de origem humilde sai de sua cidade no interior para trabalhar em uma casa de família na capital e acaba sendo vítima de trabalho análogo à escravidão e, em alguns casos, de abuso sexual. O caso mais conhecido é o do médico e ex-deputado Luiz Sefer, condenado a 21 anos de prisão por estupro de uma criança, dos 9 aos 13 anos, quando ela trabalhava em sua residência. O caso aconteceu em 2005, Sefer foi denunciado pelo Ministério Público do Pará em 2009, condenado pelo Tribunal de Justiça do Pará em 2010 e até hoje responde em liberdade. Sefer alega inocência.
Durante a CPI da Pedofilia, Irmã Henriqueta era figura assídua na Assembleia Legislativa do Pará. Ela elogia o resultado final da comissão, que desbaratou uma quadrilha de exploração sexual e tráfico de pessoas que atuava no município de Portel, prendeu acusados que faziam parte do Legislativo municipal do Marajó (entre eles um vereador da cidade), gerou investimentos em programas como o Pro Paz (hoje ParáPaz), e a instalação de delegacias especializadas. Porém, ela foi contra a instalação de uma nova CPI, aventada nos últimos meses, por entender que a motivação atual é política.
A iniciativa por uma nova CPI é do deputado Toni Cunha (PL), delegado federal de Marabá, no sudeste do Pará. Cunha tem feito discursos acalorados contra os colegas no plenário, acusando-os de serem instrumentos do governador Helder Barbalho (MDB). Ele ataca especialmente os deputados oriundos do Marajó, todos contrários à comissão: Carlos Bordalo (PT), Luth Rebelo (PP) e Andrea Xarão (MDB). O primeiro é de Curralinho e os demais de Breves (Rebelo nasceu em Belém, e é filho de Luiz Rebelo, um dos maiores empresários da cidade. Andrea é a esposa do atual prefeito do município, Xarão Leão, do mesmo partido de Barbalho).
O proponente da CPI afirma que a comissão seria uma maneira de os deputados demonstrarem uma união supraideológica e atuarem em conjunto em um momento em que o estado precisa. Sua proposta ganhou força após o brutal assassinato de uma adolescente de 13 anos em Melgaço, no dia 17 de março. O corpo da criança tinha sinais de tortura e estupro. Ela foi encontrada sem vida em um poço. “Não sei se mais esse crime muda o quadro, mas coloca os deputados que não assinaram em situação ainda mais vexatória. Se a CPI tivesse em andamento poderia ter evitado um crime como esse. Poderia ter inibido de alguma forma”, disse Cunha.
Bordalo foi o autor do requerimento que instalou a CPI para investigar exploração sexual de crianças e adolescentes no Pará com foco no Marajó. Agora justifica a não assinatura na CPI proposta por Cunha por suspeitar do timing dessa movimentação. Ele vê nos movimentos das denúncias recentes métodos semelhantes aos que foram utilizados pelo que chama de milícias digitais bolsonaristas: fatos reais acrescidos de fake news para gerar grande comoção social. Em um primeiro momento ele afirmou que não assinaria o requerimento para estudar os fatos, o que, segundo ele, bastou para que fosse atacado. “Com raras exceções, todos que assinaram são da tropa de choque bolsonarista.”
O petista diz ainda que o momento não foi escolhido por acaso: justamente na semana que as denúncias foram divulgadas, o governo federal e o governo do estado iriam lançar a nova etapa do Luz Para Todos em Breves, além da iminência das primeiras ações do programa Cidadania Marajó, elaborado pela gestão de Silvio de Almeida no ministério, que inclui o lançamento da Escola de Conselhos, que será instalada em Breves, pensada para qualificar os Conselheiros Tutelares. “[Não vou apoiar a CPI ] da forma confusa como ela está sendo feita, com uma abordagem policial de novo, e não social, e ir para espetacularização? Aproveitar o Marajó para travar a luta moral, isso eu não vou concordar.”
Um dos pontos mais sensíveis da navegação na Amazônia é o chamado Estreito de Breves, região onde o Rio Tajapuru afunila e chega ao ponto navegável por grandes embarcações em que as margens mais se aproximam. Entre os cursos d’água semelhantes a veias e artérias que se ligam a comunidade de Antônio Lemos faz as vezes de coração – e a base fluvial implantada ao lado um marcapasso que vem regulando o fluxo de embarcações que transitam pelo local diariamente.
Em junho, a base completará dois anos de funcionamento. No local, gerido pelo Grupamento Fluvial da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), há equipes fixas da Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros e Secretaria de Estado de Fazenda do Pará (Sefa), mas existem escritórios que podem abrigar órgãos como Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará), Marinha do Brasil, Polícia Federal, Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), Ministério Público do Pará, Tribunal de Justiça do Pará, Defensoria Pública, entre outras. A base, flutuante, é eventualmente deslocada para regiões próximas.
Sua localização foi escolhida por um motivo estratégico para a fiscalização. “Só há um ponto no Marajó em que obrigatoriamente as grandes embarcações têm que passar”, explica Ualame Machado, delegado da Polícia Federal que desde 2018 é o titular da pasta de segurança pública no Pará.
Nos cinco primeiros meses de funcionamento, o Governo do Pará divulgou que o trabalho dos agentes da base zerou as ocorrências de pirataria, um ponto que era alvo de muitas críticas das várias empresas de navegação que operam na Amazônia. “Os roubos a passageiros estão zerados. Não temos mais notícias de ocorrências desse tipo”, garantiu Machado.
Para dar conta de patrulhar essa região, a base foi equipada com equipamentos como drones, sonares, câmeras e armas com visão noturna e de uma nova lancha blindada, que tem a potência necessária para perseguir as embarcações de quadrilhas. Em setembro passado, a equipe do Grupamento Fluvial apreendeu um barco com uma tonelada de skunk, que foi notado por moradores, que colaboram na vigilância da área.
Para a população, afinal, essa fiscalização afastou a sensação de isolamento. Os que vendem açaí, por exemplo, eram alvo fácil por se deslocarem com quantias em dinheiro que podem chegar a 60 mil reais. A presença da base no local passa aos ribeirinhos a sensação da presença do Estado. Os policiais que ficam na base contaram à piauí já ter recebido pedidos de ajuda de mulheres grávidas que entram em trabalho de parto durante a noite, ou de moradores que sofrem picadas de cobra e têm que ir às pressas a Breves, local mais próximo que dispõe de soro antiofídico. A base fica a cerca de 50 km da sede do município, o que se faz entre uma e duas horas de deslocamento.
Apesar de ter sido responsável pela prisão do abusador registrada pela equipe do Domingo Espetacular, os agentes do local avaliam que as ocorrências de denúncias de crimes desse tipo têm diminuído. Um dos resultados da CPI de 2010 foi a criação de protocolos para as empresas de navegação, para evitar que menores de idade subam em navios ou balsas, sobretudo os que transportam caminhoneiros. “A gente sabe que isso acontece em qualquer lugar que tem miséria. No Marajó não é diferente”, lembrou Ualame.
Para seguir combatendo esses crimes, a operação da base estabeleceu uma rotina de rondas e fiscalizações em embarcações. A piauí acompanhou uma dessas abordagens. Ao avistar uma embarcação de médio porte trazendo mercadorias e passageiros, identificada como sendo do município de Santana, no Amapá, a equipe da base avisou, via rádio, ao comandante para que reduzisse a velocidade para que a lancha policial encostasse e iniciasse uma vistoria. A bordo da embarcação policial, os agentes foram acompanhados pela cachorra Aurora, da raça pastor alemão.
Ao subir na embarcação, os agentes comunicaram aos passageiros o procedimento: adultos acompanhados de crianças deveriam levantar das redes e ter em mãos os respectivos documentos; bagagens deveriam ser enfileiradas para a inspeção de Aurora. A embarcação estava com documentação em dia e dentro do limite de passageiros. Além de pessoas, transportava cerca de cinquenta paneiros de açaí, algumas caixas de frango e frutas.
Em pé, ao lado de sua rede, uma mulher de aparência bem jovem segurava sua filha, de 1 ano e oito meses. É moradora do Rio Limão, e contou que já passou por abordagens policiais em outras viagens. “Me sinto mais segura”, disse ela, que tem 18 anos de idade, e se casou há cinco – ou seja, quando estava ainda entrando na adolescência.
Para Luana Ribeiro, diretora de Proteção Social na Secretaria Municipal do Trabalho e Assistência Social (Semtras) de Breves, hoje a política de assistência social do Marajó se recupera do que ela considera o pior momento em uma década de atuação na área: durante a gestão Bolsonaro, os cortes no orçamento do Ministério dos Direitos Humanos chegaram a 80% – o que atingiu políticas públicas de municípios do Brasil inteiro. Isso fora as citações da então ministra e hoje senadora Damares Alves (ela foi procurada pela reportagem, mas não concedeu entrevista).
Segundo a diretora, desde a mudança para o governo Lula, houve uma única visita de técnicos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania a Breves. A equipe era composta de sete servidores, que passaram apenas um dia na cidade, tempo em que fizeram uma reunião, conheceram o campus da UFPA, o instituto, mas não o meio rural e as comunidades mais afastadas. “A gente precisa falar sobre habitação, sobre como é que chega a água para essa comunidade, sobre a insegurança alimentar, que é algo extremamente problemático também na nossa região. A gente precisa hoje do governo federal pensando o Marajó, mas pensando o Marajó no meio rural. Como é que eu vou conseguir construir um programa que pense a construção de habitações dignas e sólidas em cima das águas?”, diz, referindo-se às casas em palafitas, apoiadas em estacas.
No dia 19 de março, o ministro Silvio Almeida desembarcou em Breves com parte da equipe técnica do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e tendo Irmã Henriqueta como convidada. Embora a visita já estivesse agendada, o brutal assassinato de uma adolescente em Melgaço dois dias antes tornou a chegada do grupo mais significativa. Na bagagem estava um pacote de políticas públicas do programa Cidadania Marajó, com o lançamento da Escola de Conselhos do Pará e o anúncio de um aporte de 610 mil reais para a criação de dois Centros Integrados de Escuta Protegida, em parceria com a Fundação ParáPaz, do governo do estado. Um ficará em Portel, no Marajó ocidental, e outro em Soure, na parte oriental da ilha.
Com investimento inicial de 1 milhão de reais, a Escola de Conselhos vai formar agentes do Sistema de Garantias dos Direitos do público infantojuvenil e capacitar conselheiros tutelares e de direitos.
Ao sair de Breves, a equipe do ministério se deslocou para Belém, de avião. Na capital, houve uma reunião no Palácio dos Despachos com o governador Helder Barbalho e autoridades da Procuradoria-Geral do Estado, Defensoria Pública do Pará, Secretaria de Estado de Cidadania e Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos. O objetivo era apertar os nós da rede de proteção. “O Ministério dos Direitos Humanos não corrigirá sozinho (os problemas estruturais). Nós corrigiremos isso ao fazer uma ação concertada com outros órgãos, outros Ministérios, e também com o governo estadual e com os governos municipais. Queremos mudar de fato a realidade e fazer do Marajó um exemplo de como é possível transformar uma região com política pública de verdade, olhando para as questões de fundo e não para as superficiais. Respeitando e ouvindo a população sem mentira, sem fake news.”
No topo da hierarquia do Sistema Único de Assistência Social estão os abrigos de Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade de acolhimento. Luana Ribeiro dirige o que funciona em Breves. O nome é tão vago e burocrático que chega a ser enigmático – e isso é em parte proposital, para que não chame a atenção para o tipo de atividade que abriga. É uma forma de dar alguma privacidade e segurança às crianças e famílias que conseguiram romper um pacto de silêncio.
Os atendimentos do lugar refutam a tese de esquema orquestrado de exploração de menores. Ribeiro conta que o abuso sexual de que crianças são vítimas costuma ser uma relação incestuosa, e em grande parte das vezes o abusador é o provedor da família, corroborando os dados citados em um trecho anterior da reportagem.
Em situações assim, os abusos são o início de uma tragédia em série. É comum uma mãe que sabe que a filha foi abusada não denunciar o criminoso para não criar sozinha uma família numerosa; ou a criança escutar que o abusador pode matar seus irmãos. Quando perdem a guarda dos filhos ou são presos, não raro os abusadores prometem voltar atrás da família. “A criança se sente culpada, é ameaçada. E por situações assim, a recomendação para professores ou agentes comunitários de saúde é não comunicar os responsáveis [quando percebem que uma criança foi violentada], porque eles podem ou ser os agressores ou estar sendo coagidos”, completa Paulo Éder.
O abrigo que Luana dirige hoje é um refúgio para catorze crianças. A casa tem piscina, quatro suítes, duas cozinhas completas, um espaço reservado para os funcionários e brinquedoteca para as crianças. Atualmente 31 funcionários trabalham no local, entre psicólogas, assistentes sociais, professoras, pedagogas, cozinheiras e vigilantes.
Após dar a entrada no abrigo, os profissionais verificam o estado em que a criança se encontra, tanto no aspecto emocional como socioeducativo. A pedagoga Tayres Miranda checa se está matriculada em uma escola, para qual será levada por um motorista, e avalia se é o caso de pensar em uma transferência.
Segundo a psicóloga Fabrina Galúcio, os familiares muitas vezes não têm dimensão dos problemas que a criança carrega dentro da própria casa. “Muitas vêm para cá por negligência, abandono dos pais, além do abuso. E quando chegam e nos falam de uma violação gravíssima, vamos sensibilizar a família e vemos que eles não têm a noção disso.”
No abrigo, a missão das profissionais envolvidas é mostrar para as crianças que uma outra forma de vida, com direitos garantidos e longe de violências, é possível. A assistente social Yeda Gomes lembra, porém, que as crianças, em sua maioria, não atendem ao padrão mais requisitado na adoção (de 0 a 3 anos de idade, com pele branca).
Yeda lembra de um episódio que marcou a todos no abrigo. Lá existe um programa de apadrinhamento, com as categorias de “padrinho afetivo”, que pode visitar o espaço e até levar seu “afilhado” para passear. O padrinho colaborador, por exemplo, contribui com uma atividade, como uma aula de música. O padrinho provedor faz doações ou arca com despesas específicas.
Renato era um padrinho colaborador no abrigo. Um dia, levou seu ukulele e começou a tocar para as crianças, e uma delas lhe chamou a atenção. Ao final da atividade, comentou com a equipe que o menino parecia seu sobrinho.
A irmã de Renato havia adotado uma criança em Anajás, tempos antes. O garoto que foi adotado era filho de uma mãe usuária de drogas, que se declarou incapaz de criar aquela criança e decidiu ficar apenas com um outro menino. Anos depois, esse segundo filho saiu da tutela da mãe e foi para o abrigo. Era o menino que Renato encontrou. Ao vê-lo tocar ukulele, a criança ganhou uma mãe, um tio e reencontrou seu irmão de sangue. Hoje ele vive uma nova vida, em Breves, no Marajó.