No cinquentenário do assassinato de Carlos Marighella, o filme inspirado na magnífica biografia Marighella: o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (Companhia das Letras, 2012), de Mário Magalhães, estará condenado a ser semiclandestino? Apesar de exibido no Festival de Berlim deste ano, e em vários outros festivais de menor importância (Hong Kong, Istambul, Bari, Seattle, Sydney, Santiago etc.), permanecerá inédito no Brasil? Seria ironia cruel se essa hipótese fosse confirmada, embora não possa ser tida como surpresa diante das “trevas que dominam o poder do Estado”, conforme escreveu o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello.
O lançamento do filme Marighella chegou a ser anunciado para o dia 20 de novembro, nove meses depois de ter estreado fora da competição na mostra oficial do Festival de Berlim. Na semana passada, porém, uma insólita nota oficial dos produtores anunciou que o lançamento estava cancelado.
Em Berlim, Wagner Moura, diretor de Marighella, assumiu posição inequívoca ao politizar a apresentação do projeto: “Nosso filme não é obviamente somente sobre os que resistiram nas décadas de 1960 e 1970, mas é também sobre os que estão resistindo agora” afirmou, arrancando aplausos da plateia, segundo a Deutsche Welle (DW). Reconheceu, além disso, que seria extremamente difícil lançar o filme no Brasil, mencionando a polarização política existente no país. Disse, ainda, que participar da Berlinale iria promover Marighella internacionalmente e era importante para a estreia do filme em solo brasileiro.
Em resposta à pergunta se Marighella é declaração [dirigida] ao “novo governo brasileiro”, Moura disse, segundo a DW, “não [sic] se tratar de uma resposta ao presidente Jair Bolsonaro, que em diversas ocasiões já saiu em defesa da ditadura militar e manifestou abertamente apoio à tortura: ‘Esse filme é provavelmente um dos primeiros produtos culturais da arte brasileira que está em contraste com o grupo que está no poder no Brasil’”, declarou.
Nesses termos, era previsível que houvesse reação contra o filme por parte do novo presidente e do seu círculo mais próximo, como realmente ocorreu.
A razão alegada para cancelar o lançamento no Brasil, além de vaga, tem caráter autopunitivo – a produtora O2 Filmes não teria conseguido “cumprir a tempo todos os trâmites exigidos pela Ancine (Agência Nacional do Cinema)”, o que é um bizarro atestado de ineficiência dado a si mesma pela O2.
Marighella levou cerca de três anos para ser feito e quando foi finalizado, em 2018, o país estava prestes a mudar com a posse de um presidente da República de extrema direita, admirador confesso da ditadura civil-militar instaurada em 1964 que, a partir do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, fez da tortura uma política de governo. Foi contra esse regime ditatorial que Marighella se insurgiu, optando pela luta armada e fundando a Ação Libertadora Nacional (ALN), após três décadas de militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB), do qual se desligara em 1966.
Empossado Bolsonaro, seria prova de grande ingenuidade acreditar que Marighella não iria enfrentar dificuldades para ser lançado no Brasil, mesmo se nos primeiros meses da Presidência pudessem persistir, para alguns, dúvidas quanto ao extremo a que o governo federal iria chegar. Hoje, a situação é outra. Temos um presidente da República intrometido, insolente e grosseiro, com nítida propensão autoritária e é difícil imaginar que deixe de se imiscuir quanto puder para impedir a exibição pública de Marighella no país.
Se a própria O2 dá sinal de receio, e caso não haja mobilização a favor do filme, como Marighella poderá ser exibido no circuito comercial de salas de cinema do Brasil, o que sempre teria sido “objetivo principal” da produtora, segundo a nota oficial? A O2 e a distribuidora Paris Filmes declaram que “vão seguir trabalhando para que isso aconteça”. De que maneira, porém, não esclarecem.
Mesmo sem ter base para opinar sobre o mérito das solicitações da produtora feitas em agosto à Ancine, e que foram negadas, é possível dizer que elas comprovam o excessivo grau de dependência que o cinema brasileiro tem do Estado. Além disso, esses vetos aos pedidos da O2 atestam a incompatibilidade existente entre a função reguladora e a de fomento quando reunidas no mesmo órgão de governo. Comprometida com o fomento do projeto Marighella desde 2014, quando aprovou a captação de recursos através da Lei do Audiovisual, a Ancine tem obrigação de cooperar para que o filme seja lançado no país, ao invés de criar entraves a esse compromisso pelo qual também é responsável.
No contexto atual, porém, em particular no caso de Marighella, os vetos parecem fazer parte do conjunto de restrições que vêm sendo feitas pelo governo federal, incluindo desde a intenção declarada de fechar a Ancine até a de “filtrar” o conteúdo de projetos incentivados, além do corte de 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual para 2020. Apesar dessa redução drástica, a garantia de R$ 415,3 milhões seria significativa caso fosse assegurada autonomia e obtida maior eficiência do órgão fomentador.
Lamento não poder comentar o próprio Marighella, em vez de me ater às circunstâncias que o cercam, pois, apesar de reiterada manifestação de interesse da minha parte, não me foi dado acesso ao filme. Temo que essa tática de avestruz, que denota insegurança dos produtores quanto ao resultado de bilheteria, possa agravar a situação e dificulte ainda mais encontrar os meios necessários para garantir que o filme seja difundido entre nós, em vez de condenado ao ineditismo.
Na impossibilidade de formar juízo pessoal sobre Marighella, recorri à cobertura da crítica internacional publicada em fevereiro, após a estreia no Festival de Berlim. Li aleatoriamente alguns comentários, ciente de que podem não refletir sequer a média da opinião sobre o filme, mesmo quando levantam questões de interesse.
A Variety de 15 de fevereiro dá conta da preocupação dos produtores naquele momento, temendo que “a crescente tensão política no Brasil [pudesse] atrapalhar o lançamento doméstico de Marighella”. Andrea Barata Ribeiro, produtora do filme, teria dito: “Nós vamos lutar por isso. Nós queremos lançar Marighella no Brasil logo depois de Berlim. Se for necessário, vamos lançá-lo de forma independente recorrendo a crowdfunding.”
O que terá impedido o financiamento da distribuição da forma anunciada? Terá sido a posição da Paris Filmes que, segundo o mesmo The Guardian, em 20 de fevereiro, declarou “não ter nenhuma previsão de data para o lançamento do filme e estar esperando o momento certo, em função do calendário competitivo de estreias”?
A Variety publicou também uma crítica que define Marighella como uma “biografia hagiográfica”. O tom do texto é impertinente e as restrições são duras, mas levanta questões políticas e estéticas importantes a serem debatidas. Sem poder discordar dos termos do crítico da Variety, ou eventualmente endossá-los, por não ter visto o filme, deixo de reproduzi-los aqui.
Em entrevista à DW, Mário Magalhães diz que “não cabe ao autor de uma biografia jornalística ser juiz ou promotor acusador ou advogado. Cabe ao autor contar a história. Não foi uma biografia [escrita] para promover o Marighella. Não faço juízo de valor sobre a escolha dele pela luta armada”.
O diretor Wagner Moura, coautor do roteiro de Marighella, escrito com Felipe Braga, parece ter adotado posição diversa de Magalhães, amparado na liberdade concedida ao filme por ser obra definida como ficção, sem os mesmos compromissos do jornalismo ou do documentário. Daí Marighella ser, necessariamente, polêmico, em especial no Brasil dos nossos dias – direito dos seus autores que deve ser respeitado, concordando ou não com o tratamento dado ao personagem principal.
Para Magalhães, “as pessoas falam muito de Marighella, mas costumam conhecer muito pouco sobre ele. Seria existencialmente interessante e intelectualmente indispensável que elas conhecessem mais para poderem se pronunciar. O filme vai ser uma grande oportunidade para isso”.
Que essa oportunidade lhe seja garantida, é o que se espera.