Transversalidade. Seis sílabas formam o mantra que conecta as duas versões da ministra Marina Silva: a que deixou a Esplanada dos Ministérios em 2008, perdendo os anéis em vez dos dedos, e a atual, ao assumir novamente a pasta de Meio Ambiente – agora acrescida do termo “Mudança do Clima” – em posse concorrida no Palácio do Planalto nesta quarta-feira.
Quando ocupou pela primeira vez o Ministério do Meio Ambiente em 2003, Marina já falava em transversalidade, a ideia de que a preocupação com a sustentabilidade socioambiental deve percorrer e conectar vários setores das políticas públicas, da saúde à energia, dos transportes à educação. Mas sua voz não foi suficiente para garantir que o meio ambiente fosse eixo no desenho de projetos e políticas de todo o governo. Pelo contrário: a insistência de Marina sobre transversalidade a isolou. Foi tachada de “ideológica” e contrária aos interesses econômicos.
Os anos que separam uma gestão de outra mostram que a compreensão de transversalidade avançou e que Marina estava correta em bater nessa tecla. À medida que a ciência e as negociações internacionais sobre mudanças climáticas e biodiversidade avançaram, também ficou mais claro que promover o crescimento conectado à conservação de recursos naturais é o melhor caminho para garantir o desenvolvimento e a proteção das populações em um planeta mais quente.
Teria saído na frente o país que escutasse quem falava de transversalidade dez anos atrás; engavetado Belo Monte e sua coleção de violações ambientais e sociais; licenciado com mais cuidado as obras do PAC ; e colocado o plano completo de controle do desmatamento da Amazônia em curso. Agora o Brasil precisa correr atrás desse passivo e do que veio a reboque, incluindo a boiada bolsonarista, e Marina sabe disso.
“O papel do MMA não é ser um entrave às justas expectativas de desenvolvimento econômico e social de nossa população, mas de um facilitador para orientar a forma como essas demandas podem ser atendidas sem prejuízo da necessária proteção de nossos recursos naturais”, resumiu a Marina de 2023 em sua cerimônia de posse.
O legado de desmatamento e queimadas deixado por Bolsonaro é uma das maiores manchas sobre a imagem do Brasil no exterior, nublando relações diplomáticas e comerciais, em especial ligadas ao agronegócio e investimentos. Mesmo quem ainda não consegue soletrar transversalidade sabe que a recuperação da confiança internacional passa por incorporar o meio ambiente ao discurso das políticas públicas.
Alguns minutos antes de Marina discursar, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, falou em alto e bom som: “Marina, pode contar conosco, com o melhor que tem de cada um de nós ministros, porque a Casa Civil da Presidência da República expressará todos os dias, garantindo que o meio ambiente seja visto de forma transversal em todos os ministérios da República.”
Bem diferente de seus antecessores José Dirceu e Dilma Rousseff, o baiano soube entoar o canto certo para a acreana. Outros novos ministros também têm seguido a cartilha: do vice-presidente Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria e Comércio) a Carlos Fávaro (Agricultura), de Fernando Haddad (Fazenda) a Flávio Dino (Justiça), todos incorporaram a defesa ambiental em seus discursos recentes.
Claro que Marina sabe que, do discurso à prática, corre um rio do tamanho do Amazonas. Além do esperado ranger de dentes de quem ainda vê meio ambiente como impedimento à economia, esses mesmos ministros têm contas com um passado recente.
Costa, quando foi governador da Bahia, flexibilizou o licenciamento ambiental para atividades em campo ao arrepio da lei federal, facilitando o desmatamento no estado. A gestão de Dino como chefe do Executivo do Maranhão esteve envolvida em polêmicas licenças para desmatar áreas reservadas a quilombolas.
O senador Fávaro, relator do PL da Grilagem, aprovou, em seu parecer, a anistia de uma série de invasões irregulares de terras. E, na conta de Alckmin, está a criação de Ricardo Salles como personagem político, ao nomeá-lo como secretário de Meio Ambiente de São Paulo em 2016. Haja apoio à pauta ambiental transversal para apagar essa boiada.
A atual legislatura do Congresso Nacional tende a resistir às mudanças, com uma bancada ruralista forte e conservadora, e a pautas antiambientais. Está em tramitação o PL do Veneno, que amplia a liberação de agrotóxicos. Conquistar o apoio parlamentar passa necessariamente por uma negociação sobre essas questões, sob o risco de Lula 3 sofrer o mesmo baque de Dilma 1, que sangrou no embate com ruralistas em torno do novo Código Florestal, em 2012.
Mover todas essas peças em torno da transversalidade real da pauta ambiental vai exigir da Marina de hoje a força e a habilidade políticas que faltaram quinze anos atrás. Também coloca à prova o apoio de Lula ao novo MMA. De pouco vale ampliar o espaço para a ministra se os mesmos erros de outrora se repetirem no presente.
A favor dela, consta o fato de o sucesso de sua pasta servir como grande validador internacional de prestígio e respeito internacionais, o que o Brasil precisa rapidamente reconquistar. “Que a gente deixe de ser o pior cartão de visita para os nossos interesses estratégicos e passe a ser o melhor cartão de visita”, afirmou na posse. Se a história vai se repetir quinze anos depois, e a transversalidade vai ser novamente a nota de uma ambientalista só, os próximos meses dirão.