Um instrumental épico se intensifica. O compasso se acelera. Na tevê, além do rosto de Maria do Rosário (PT), o telespectador vê despontar algumas palavras-chave: “amor”, “esperança”, “coragem de mudar”. Léxico semelhante permeou as propagandas de Rogério Correia (PT): a eleição, segundo elas, era uma questão de “coragem” e “coração”. Rosário e Correia são deputados federais que se candidataram à prefeitura de Porto Alegre e Belo Horizonte, respectivamente. Ela passou para o segundo turno e perdeu; ele ficou em sexto lugar, com 4,4% dos votos. Os dois têm trajetórias e projetos diferentes para suas cidades. O que os une, além do partido, é o marqueteiro: Otávio Antunes, 47 anos, natural de São Bernardo do Campo (SP).
Antunes é o dono da Urissanê, uma agência de marketing fundada em 2017. Trata-se de uma das mais prósperas máquinas de campanha política do Brasil. Faturou 8,5 milhões de reais nas eleições de 2020, mais do que qualquer outra agência do tipo. Este ano, manteve a liderança. Já embolsou 13,9 milhões de reais com dezoito candidatos, segundo os dados parciais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O concorrente mais próximo, Estúdio Crio, recebeu 11,8 milhões – tudo pago por um único candidato, o prefeito reeleito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD).
A Urissanê tem um diferencial: atende quase exclusivamente candidatos do PT. Foi moldada dentro do partido no pós-Lava Jato, quando os poderosos marqueteiros de outrora deram lugar a agências menores, de orçamento mais modesto. Antunes, que chefiou a comunicação da Fundação Perseu Abramo e tinha bom trânsito no partido, preencheu o vácuo deixado por João Santana, preso em 2016 depois de ser condenado por recebimento de caixa 2 em campanhas.
“Quando o João Santana entra em derrocada, é como se tivessem tirado um galão do jogo. Aí um monte de galinhos ocuparam o espaço”, diz Paulo Vasconcelos, marqueteiro veterano. “O Otávio [Antunes] era, até então, um ponta de lança do João.” Ele e Antunes se conheceram durante a campanha de 2014. Na época, Vasconcelos coordenava o marketing de Aécio Neves (PSDB), enquanto o colega cerrava fileiras com Dilma Rousseff (PT), trabalhando ao lado de Santana.
Quatro anos depois, Antunes protagonizou sua primeira campanha eleitoral. Era 2018, Lula estava preso, mas mantinha a candidatura a presidente, e o PT tentava juntar os cacos do impeachment. Sem alternativas e com o dinheiro curto – as doações de empresas privadas haviam sido proibidas pelo Congresso no ano anterior –, o partido rompeu com o padrão iniciado em 2002 e não contratou uma grande agência de publicidade, como a de Duda Mendonça. Em vez disso, contratou três menores: a Leiaute, do baiano Sidônio Palmeira; a Digitale, do argentino Pablo Nobel; e a Urissanê, de Antunes. Das três, era a menos conhecida.
Antunes foi um dos “galinhos” a ascender. Ao lado de Raul Rabelo, sócio da Leiaute, ajudou a manobrar a comunicação do PT quando Lula foi substituído por Fernando Haddad na disputa. “O povo não sabia falar o nome dele. A gente fez até um vídeo brincando com isso: ‘Andrade? Haddad?’”, lembra a jornalista Martha Romano, que estreou no marketing político a convite de Antunes. “Foi uma campanha atípica. Primeiro, o Lula foi impedido de disputar. Depois teve a facada no Bolsonaro. Foram várias campanhas em uma.” Romano se tornou sócio minoritário da Urissanê, mas largou a parceria pouco depois para assumir o cargo de secretária de Comunicação na prefeitura de Diadema (SP). Tempos depois, criou na cidade sua própria agência de marketing político, voltada a candidatos de esquerda, como a Urissanê.
Embora derrotada, a campanha de Lula e Haddad em 2018 chamou atenção em países vizinhos. Antunes foi contratado, no ano seguinte, para compor a equipe publicitária de Evo Morales, que se reelegeu presidente da Bolívia. “Toda a América Latina estava querendo entender como sobrevivemos ao cerco político, jurídico e midiático. Qual era o milagre?”, relembra o marqueteiro. Desde então, ele se habituou a arquitetar campanhas em castelhano: atuou na do peruano Pedro Castillo (eleito presidente em 2021), na do colombiano Gustavo Petro (eleito em 2022) e na do argentino Sergio Massa (que perdeu a disputa para Javier Milei em 2023).
O PT, por sua vez, decidiu preservar o modelo de marketing artesanal. O deputado federal Jilmar Tatto, que em 2019 assumiu a Secretaria Nacional de Comunicação do partido, se refere ao processo como uma “estatização”. “Tinha uma agência contratada para fazer a comunicação do PT, eu tirei. É uma coisa muito séria pra deixar na mão de agência.” Na visão dele, as decisões de campanha devem vir “da política”, e não dos marqueteiros. Antunes é um pouco dos dois.
Tatto é um dos que torcem o nariz para a ingerência e o estrelismo de figurões da publicidade. “O problema dos marqueteiros, do Duda Mendonça, do João Santana, era achar que eles, e não a política, é que ganhavam a eleição.” O deputado se recorda de um episódio que causou incômodo. Foi em 2004, ano em que Marta Suplicy disputava a reeleição para a prefeitura de São Paulo. Para alavancar a campanha, lembra Tatto, Duda Mendonça propôs mudar as cores do Bilhete Único para azul. “Eu falei: ‘Nem lascando!’” A discussão foi levada a Marta, que concordou com o correligionário e manteve o bilhete nas cores originais, vermelho e branco.
“Isso é a arrogância das agências”, diz Tatto. Mas o problema ficou no passado. “O Otávio [Antunes] é prata da casa. Outro padrão”, explica. “Reduziu custos, melhorou a eficiência e há um comprometimento maior da equipe com a linha do partido. Cria menos conflito.” Tatto contratou a Urissanê para cuidar de sua campanha ao Senado, em 2018; à prefeitura de São Paulo, em 2020; e a deputado federal, em 2022. Perdeu as duas primeiras e levou a terceira.
Otávio Antunes nasceu no ABC, berço do Partido dos Trabalhadores, mas ainda na infância, após a separação dos pais, se mudou com a mãe e os irmãos para Campinas. Ele conta que a família se estabeleceu com dificuldades no novo endereço. “Cheguei a Campinas em um caminhão aberto, abraçado com minha mãe e dois cachorros. Meus três irmãos vieram na boleia.” Aos 13 anos, Antunes conheceu o movimento estudantil e se engajou na militância. Resultou que, ainda na adolescência, se filiou ao PT. Lula tinha acabado de perder a eleição presidencial para Fernando Collor, mas o partido estava em rota ascendente. Antunes se interessava por política e confeccionava, voluntariamente, materiais gráficos para a campanha.
“Eu brinco com meus amigos que [minha carreira] começou em 1994, quando fiz um fanzine pra campanha presidencial do Lula. Repeti a dose pro Toninho [candidato a prefeito de Campinas] em 1996”, diz o marqueteiro. “Eu era muito amigo do Toninho, assassinado em 2001. Até hoje, meus melhores amigos são da turma da velha guarda do PT de Campinas.” Em 2000, e novamente em 2004, Antunes se candidatou a vereador em Campinas pelo PT. Não se elegeu.
Em vez de tentar uma terceira vez, Antunes preferiu, dali em diante, trabalhar nos bastidores. Em junho de 2005, foi nomeado para um cargo de comissão do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Era formado em jornalismo e aos poucos foi se interessando pelo marketing político. Assessorou diferentes campanhas no interior de São Paulo, passando por municípios como Hortolândia, Rio Claro e Elias Fausto. “No início, eu era quase militante”, ele lembra. Profissionalizou-se sob a batuta de João Santana – que, em suas palavras, é “gênio demais”. Quando veio a crise, ocupou sua vaga. A piauí procurou Santana, mas não conseguiu contato.
“No pós-2014, a realidade bateu à nossa porta. Grandes nomes do marketing político não fariam campanha ou estavam desgastados, então [a gente] tinha muito mais espaço para ocupar. O PT procurava gente identificada com a legenda. O PSDB também”, explica Antunes. Um dos marqueteiros que ascendeu nesse período, só que na raia da direita, foi Duda Lima. Ele colaborou com a campanha de Jair Bolsonaro (PL) em 2022, produzindo materiais para tevê e rádio, e hoje está por trás da campanha de Ricardo Nunes (MDB) à prefeitura de São Paulo.
A contratação de marqueteiros ideologicamente alinhados aos candidatos é uma tendência recente no Brasil, mas não em outros países. “Isso já acontecia na Europa e, em alguma medida, nos Estados Unidos nas décadas passadas”, diz Antunes. Um desses exemplos é a Blue State Digital, agência que coordenou as estratégias digitais da campanha de Barack Obama em 2008. O grupo foi fundado com o objetivo de propagar pautas progressistas nos Estados Unidos.
Com a demanda em alta, Antunes deu baixa da Alesp em março de 2016. Ocupava, na época, o cargo de assessor especial da liderança do PT, com salário bruto de 17 mil reais. Fundou a Urissanê no ano seguinte e já amealhou clientes importantes em 2018. Além da campanha de Haddad à presidência e de Tatto ao Senado, coordenou a de Alexandre Padilha a deputado federal (dos três, foi o único eleito). A Urissanê recebeu 10 milhões de reais naquele ano.
“O PT é uma máquina política incrível. Sobreviveu a muita coisa. Mas essa vantagem, de ter vindo da política, me ajuda também quando atendo outros partidos”, diz Antunes. Sua opinião é similar à de Tatto. “Vale muito entender a comunicação política como desdobramento das decisões políticas”, diz. “Ninguém mais acredita – se é que já acreditou – que a comunicação substitui a política. É impossível. A política é o signo do tempo. Vem primeiro, sempre.”
O principal contratante da Urissanê em 2024, até aqui, foi o diretório nacional do PT. Pagou 3,9 milhões por consultorias e produção de jingles, vinhetas e slogans. Dos dezoito candidatos que contrataram os serviços da agência, doze são filiados ao PT. Os demais se distribuem entre vários partidos, a maioria deles alinhada à centro-esquerda – caso de Rodrigo Neves (PDT), eleito prefeito de Niterói (RJ), e Gustavo Petta (PCdoB), eleito vereador em Campinas (SP). As exceções são três candidatos a prefeito, um do PSD, um do PV e outro do PSDB (nenhum dos três foi eleito).
A agência de marketing atuou em algumas das maiores cidades onde o PT lançou candidato a prefeito este ano: Belo Horizonte, Porto Alegre, Campinas, Guarulhos, Campo Grande, Caxias do Sul, Pelotas, Governador Valadares, Sumaré e Uberlândia. Em três delas, o candidato petista avançou para o segundo turno (Porto Alegre, Pelotas e Sumaré); nas demais, não foi eleito. O partido teve um desempenho modesto. Elegeu mais prefeitos do que em 2020 (de 182, passou a 252), mas não conseguiu ser competitivo nas maiores capitais. Não teve candidato em São Paulo (apoiou, em vez disso, o psolista Guilherme Boulos) nem no Rio (apoiou o peesedista Eduardo Paes). Tomou uma lavada em Belo Horizonte e perdeu por larga margem no segundo turno em Porto Alegre. A única capital conquistada pelo partido foi Fortaleza, onde Evandro Leitão (PT) saiu por cima numa disputa apertadíssima.
Os 13 milhões de reais, embora façam da Urissanê a agência mais bem paga nas eleições deste ano, são pequenos se comparados às cifras de outrora. Só na campanha de Haddad à prefeitura de São Paulo, em 2012, a Polis, empresa de João Santana, faturou 30 milhões de reais (o equivalente a cerca de 59 milhões de reais, em valores atuais). Gastos dessa magnitude são impensáveis nos dias de hoje. Além do fim do financiamento empresarial, entrou em vigor em 2016 o teto de gastos para campanhas eleitorais, instituído por uma das várias minirreformas eleitorais feitas pelo Congresso. Os limites variam de acordo com o cargo e a localidade, mas, no cômputo geral, serviram para baixar os gastos. O teto da eleição presidencial de 2018 foi de 70 milhões de reais; em 2006, o PT gastou na campanha de Lula 89 milhões (em valores corrigidos, 240 milhões). “Isso não era uma preocupação. Não existia declaração de gastos e ninguém se preocupava com isso. Era completamente irrelevante”, diz Vasconcelos.
Os marqueteiros, em geral, atribuem a Duda Mendonça o auge e o ocaso das megacampanhas. “O Duda estabeleceu uma regra no Brasil. Todo mundo passou a cobrar caro também”, diz Vasconcelos. “Era coisa de cinema, com materiais exuberantes e toda aquela genialidade. E com condições pra fazer. Era jatinho pra viajar o Brasil inteiro só pra filmar. Não tinha como não custar caro. Naquela eleição de 2002 eu entendi o que era fazer bonito.” Mendonça foi denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro, em desdobramentos da Operação Lava Jato. A certa altura, firmou acordo de delação premiada com a Justiça. Morreu em 2021, aos 77 anos.
Três concorrentes da Urissanê ouvidos pela piauí explicaram que os valores cobrados pela Urissanê são compatíveis com a quantidade e a complexidade das campanhas conduzidas pela agência. “Em uma campanha, você ganha muito dinheiro, é claro. Mas também tem que contratar muitos cérebros, muitos talentos que custam caro”, diz um dos marqueteiros, que pediu para não ser identificado. Vasconcelos segue o mesmo raciocínio: “É preciso pelo menos oitenta pessoas para fazer uma campanha estadual. Se tiver que fazer áudio e vídeo, são pelo menos 120. Desses, uns 40% ficam no que a gente chama de ‘agência’, que é a concepção da campanha. São os jornalistas e o pessoal da criação. E 60% são o que a gente chama de ‘indústria’: o pessoal que vai preparar as peças de tevê e rádio. É muita gente pra contratar.”
Antunes é descrito pelos concorrentes como um homem cordial e polido, que faz o estilo low profile. Nunca deu entrevistas à imprensa tradicional. Atendeu duas breves ligações da piauí, ambas com o intuito de marcar uma entrevista – que acabou sendo feita por mensagens de WhatsApp, depois que Antunes afirmou não ter tempo para uma conversa alongada. O marqueteiro respondeu às perguntas perto da meia-noite de um sábado, no final de setembro.
No mercado do marketing político, Antunes construiu uma reputação de especialista em redes sociais e análise de métricas digitais. “O Otávio compõe equipes com pessoas muito experientes, mas também mesclando com gente que está muito empolgada e que traz novidades. Às vezes gente que é inexperiente, mas tá cheia de ideias e pode contribuir. Essa forma de mesclar eu acho muito inteligente”, diz Martha Romano, sua ex-sócia. Parte dos funcionários da Urissanê são comunicadores que aprenderam o ofício com João Santana e Duda Mendonça. Entre eles, Halley Arraes (sócio da Urissanê e responsável pela campanha de Maria do Rosário, em Porto Alegre), Lucas Peixoto (que cuida da campanha de Rodrigo Neves, em Niterói) e Pedro Santos (que trabalhou na campanha de Pedro Tourinho, em Campinas, derrotado no primeiro turno).
A “estatização” das campanhas petistas, preconizada por Jilmar Tatto, não produz um resultado estético muito diferente de outras campanhas. Os candidatos abraçam cidadãos comuns nas ruas, sorriem para a câmera, reclamam dos oponentes e recorrem a cores de fora de seu partido para formar uma identidade visual. Há exceções, é claro. O deputado federal Alencar Braga (PT), que se candidatou a prefeito de Guarulhos, fez uma campanha banhada de vermelho – uma escolha audaciosa, considerando a força do antipetismo no estado de São Paulo. “Neste final de semana, vista-se de vermelho”, disse uma postagem feita por Braga na véspera do primeiro turno. Ele votou de vermelho. Terminou a disputa em quarto lugar, com 9,7% dos votos.
Paulo Vasconcelos opina que não há mesmo diferença visível entre as campanhas feitas por grandes agências e as de nicho, como a Urissanê. São todas meio parecidas. Antunes, por sua vez, nota uma distinção entre as campanhas da esquerda e a de seus adversários. “Nosso conteúdo é sempre mais emotivo. O da direita virou mais ‘vida real’”, diz o dono da Urissanê.
Dá-lhe amor, esperança, coração e “coragem de mudar”.