“Fotógrafo e documentarista, focado na intervenção indigenista” foi como Vincent Carelli se definiu certa vez. No final de Martírio, seu documentário co-dirigido por Ernesto de Carvalho e Tita Almeida, a postura de Carelli fica clara. Após a última imagem em movimento do filme, uma legenda branca sobre fundo preto reproduz trecho da frase de Rithy Panh na qual o cineasta franco-cambojano afirma: “mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma…Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável.”
Solidariedade humana, engajamento na causa indígena e crença na possibilidade de mudar podem ser consideradas, portanto, as grandes marcas do cinema de Carelli, fundador do Vídeo nas Aldeias, cuja carreira pessoal de cineasta teve início, em 1987, com A festa da moça, documentário de curta-metragem no qual os Nambiquara retomam, diante da câmera, o hábito de furar o lábio e o nariz dos jovens.
Referindo-se às gravações feitas em 1986, no princípio de sua carreira de documentarista, Carelli diz em voz off, no início de Corumbiara (2009): “Eu estava começando, e pra mim a possibilidade de dar ao vídeo uma função de militância era o que importava.” Quando o filme foi lançado, mais de vinte anos depois, ele reafirmou essa mesma questão em outros termos. Corumbiara, disse Carelli, “é antes de tudo militante, depois ele é um filme, no sentido de que a captação é movida por uma necessidade, é a única ferramenta contra a impotência e a negação dos fatos. Era a prova técnica que a justiça precisava, era o motor de tudo.”
Pode parecer, então, que o cinema, para Carelli, é apenas um instrumento, uma “ferramenta”, a serviço de uma causa. Quando ele não consegue “ir adiante na incriminação dos culpados”, conforme diz na narração de Corumbiara, ele desiste do filme. Desiste? Na verdade, não. Ele acaba reconhecendo que “a questão não é provar ou não provar. A questão é contar a história”. Sem ter esquecido o filme do qual chegou a desistir, Cerelli resolve “retomar essa história sem fim” – essa é sua missão de documentarista, que ele cumpre com sucesso ao concluir Corumbiara e, agora, Martírio (2016).
O cinema, portanto, perdura. E o dilema entre arte e militância permanece agudo, embora, na verdade, o próprio Carelli não pareça considerar que haja algum impasse. Em entrevista ao antropólogo Ruben Caixeta, publicada no catálogo do Forumdoc.bh de 2009, principal fonte das citações feitas acima, Carelli explica que ao falar de militância está falando “do que move sua vida, seu fazer. Mas o vídeo tem que ser uma expressão artística, não pode ser um discurso militante, não pode traduzir isso no seu trabalho”, ele diz. E prossegue: “Acho inclusive que a capacidade desses filmes, desse produto de ‘intervir’ na realidade, enfim, interessar, emocionar, seduzir o público, trazer uma coisa a mais, isso tem que ser uma expressão artística. É claro que um discurso militante em filme envelhece na semana seguinte, não tem o menor interesse. Então, fazer um filme sobre o cotidiano de Shomötsi [Shomötsi (2001), documentário de Wewito Piãko sobre um Ashaninka] e nada mais, é um filme militante. É um filme capaz de mostrar isso para o público, com uma certa densidade, como é feita a vida desse sujeito, capaz de mostrar sua realidade. O fato de ter uma obra poética ou artística sobre os índios no mercado ou à disposição para as pessoas verem é um ato militante, é uma produção militante nesse sentido e não no do conteúdo ou da narrativa do filme.”
Nos termos definidos por Carelli, esse é um conceito amplo de militância que inclui tanto a função utilitária do documentário, quanto a necessidade de ser uma “expressão artística”. Resta saber se ele mesmo é capaz de cumprir ambas finalidades, tidas usualmente como dificilmente conciliáveis. Em Corumbiara, sem dúvida, Carelli realiza essa façanha, ou pelo menos se aproxima muito disso.
Talvez, pelo fato de ser a história do fracasso de uma ação militante – em última análise, colocar os fazendeiros na cadeia – aliada à proeza documental de ter gravado os encontros com os índios remanescentes dos massacres, Carelli tenha conseguido, em Corumbiara, rara conciliação entre militância e arte. A aparição dos Canoê, o surgimento dos Akunsu e a convivência com os dois grupos, aos quais é dedicada quase metade do filme; assim como o encontro com o chamado índio do buraco, que permanece arredio, são momentos, todos eles, raros na história do cinema. Essa gravações tem a força de uma epifania, são revelações extraordinárias, expressões artísticas de grande dimensão que formam um filme de valor inestimável.
Da mesma forma, a consciência, claramente expressa por Carelli em Corumbiara, de que a ação militante pode representar risco de vida para quem é gravado testemunhando contra fazendeiros, indica a ambivalência que persiste nele em relação à possibilidade de usar o documentário como “ferramenta” para alcançar resultados práticos. (continua)