Conflitos sociais violentos, incluindo protestos, tumultos, saques, vandalismo e ataques aos profissionais envolvidos com a contenção da pandemia, além de aumento da probabilidade de manifestações como passeatas e carreatas que, ainda que não violentas, diminuem o impacto de normas de distanciamento. Esses são alguns dos riscos a que a sociedade brasileira está exposta como consequência da pandemia do novo coronavírus, que já infectou 520 mil pessoas e levou à morte quase 30 mil desde que o primeiro caso foi notificado por aqui, em 26 de fevereiro. O alerta está em um estudo do pesquisador Rodrigo Fracalossi de Moraes, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), intitulado Prevenindo Conflitos Sociais Violentos em Tempos de Pandemia. Concluído em abril deste ano, o estudo analisa alguns fatores de estresse relacionados à pandemia e como eles aumentam os riscos de confrontos. Sugere a adoção de medidas que atenuem os efeitos da ansiedade associada à pandemia, provocada, entre outras razões, pelo medo de ser infectado, pela queda ou perda total da renda, pelo período prolongado de quarentena e pela falta de perspectiva com o fim da crise.
No Brasil, em plena epidemia, a crise política e os ataques diários do presidente Jair Bolsonaro a instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, insuflando seus seguidores, levaram ao enfrentamento entre bolsonaristas e seus opositores. No último fim de semana, houve manifestações contra e a favor de Bolsonaro em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Na capital paulistana, o clima se acirrou no domingo, e os dois grupos entraram em confronto. A confusão começou quando apoiadores de Bolsonaro passaram a provocar seus opositores. A Polícia Militar interveio com bombas de gás lacrimogêneo, e os manifestantes revidaram com pedras e paus.
Nos Estados Unidos, a situação está fora de controle desde a semana passada. Tudo começou no dia 25 de maio, após o ex-segurança George Floyd, um homem negro de 46 anos, ter sido preso e morto por agentes da polícia de Minneapolis, Minnesota. Floyd sofreu uma parada cardíaca após o policial branco Derek Chauvin pressionar o joelho sobre o seu pescoço, embora ele já estivesse no chão, rendido e algemado. A cena foi filmada e o vídeo viralizou nas redes sociais. Chauvin, de 44 anos, foi demitido e preso. Mas, após o crime, a onda de protestos, que começou em Minneapolis, se espalhou por todo o país e ganhou contornos mais violentos em Nova York, cuja população até dias antes estava confinada em casa por causa do coronavírus. Desde o assassinato de Floyd, em diversas cidades americanas têm ocorrido saques, incêndios e confrontos com a polícia. O governo tenta conter as ondas de protesto com toques de recolher, enquanto tropas de choques têm usado gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os manifestantes. Na segunda-feira, com os conflitos de rua saindo do controle, o presidente Donald Trump ameaçou mandar o Exército às ruas, afirmando se tratarem de “atos de terrorismo doméstico”. Já o governador de Nova York, Andrew Cuomo, disse, em uma coletiva à imprensa, que os protestos eram resultado de anos de exclusão da comunidade afro-americana e da violência a que são submetidos. Disse que os negros eram os que mais estavam sofrendo com a pandemia e criticou a enorme injustiça social no país.
Os protestos que levaram milhares de americanos às ruas não preocupam, contudo, apenas pela questão da segurança. Especialistas temem que, em razão da aglomeração, o vírus volte a se espalhar após semanas de quarentena e provoque um novo surto de infecção num país onde mais de 100 mil pessoas já morreram vítimas da doença. A população negra é a mais atingida. Para especialistas americanos, porém, a violenta explosão da população após o assassinato de Floyd foi fermentada não apenas pela revolta contra a brutalidade policial há décadas cometida contra a comunidade negra – mas também pelo sofrimento a que as pessoas já estão sendo submetidas em razão das perdas de familiares e de amigos pelo vírus.
Reportagem do New York Times de primeiro de junho mostrou ainda que essas manifestações, com aglomeração de milhares de pessoas, ocorrem justamente no momento em que alguns estados começavam cautelosamente a afrouxar a quarentena – que deixou milhões de americanos desempregados. O desemprego é mais uma razão de revolta e explosões de violência. Os prefeitos de Los Angeles e de Maryland, por exemplo, já mostraram preocupação de que os protestos resultem em uma nova onda de contaminação.
Com base na análise de várias epidemias, o estudo do Ipea alerta para explosão de conflitos envolvendo as populações mais vulneráveis. No caso específico do Brasil diante da Covid-19, o pesquisador Rodrigo Fracalossi de Moraes destaca que tem havido queda da ocupação de leitos pela doença nos hospitais particulares, enquanto nos públicos as internações pela doença só fazem aumentar. Por isso, diz, é preciso que o poder público adote medidas não apenas no campo econômico, mas também no social para reduzir o estresse provocado pela doença.
Desde o começo dos anos 2000, muitos países enfrentaram epidemias mortais, e em todas elas o estresse social provocado pela doença foi um fator desencadeador de conflitos. O pesquisador do Ipea alerta, no entanto, que o potencial da Covid-19 de desencadear conflitos violentos é muito maior do que qualquer dessas outras epidemias, pelo fato de a situação agora ser mais grave. Enquanto as mortes provocadas pelos outros vírus foram na casa dos 10 mil, número considerado alto pela Organização Mundial da Saúde, as causadas pela Covid-19 já somam 377 mil em todo o mundo. As epidemias das últimas décadas se restringiram a alguns continentes, ao contrário da atual pandemia, que se espalhou pelo planeta. O impacto na economia dos países está sendo devastador, o que deverá provocar uma recessão sem precedentes na história mundial recente.
Ao estudar as últimas epidemias, Moraes observa que os países atingidos precisaram lidar, além da doença, com os seus efeitos sociais, que desaguaram em confrontos violentos. Essas situações ocorreram durante as epidemias da Síndrome Respiratória Aguda Grave, Sars, na sigla em inglês, na China e Hong Kong e outros países do Leste Asiático como Cingapura, Filipinas, Vietnã, Malásia e Taiwan, entre 2002 e 2004; a de cólera, no Zimbábue, em 2008; e a de Ebola, que atingiu alguns países da África, entre 2013 e 2016.
Entre 2002 e 2005, a epidemia de Sars, que forçou o bloqueio de várias cidades e o isolamento social, principalmente em Pequim, foi considerada pela Organização Mundial da Saúde a primeira grande epidemia do século XXI. Peter Cordingley, então porta-voz da OMS registrou, à época, que a Sars causara “mais temor e convulsão social do que qualquer outra doença em nosso tempo”. Mesmo com um número de mortes relativamente baixo, paralisou economias, prejudicou o comércio e viagens internacionais e deixou ruas vazias nas grandes cidades. Distúrbios sociais também ocorreram no surto de Ebola que atingiu, entre 2013 e 2016, vários países africanos como Guiné e República do Congo. Na Guiné, em 2016, a falta de orientação dos órgãos governamentais levou a população a agredir os profissionais da Cruz Vermelha. Num episódio mais dramático, todos os oito integrantes de uma delegação de médicos, políticos e jornalistas foram assassinados por uma multidão enfurecida que acreditava que eles eram responsáveis pelo surto, por serem estrangeiros. Na República do Congo, 85 profissionais de saúde foram assassinados, também por serem acusados de espalhar a doença.
A atual pandemia já registrou episódios de violência. Na Ucrânia, a população, em pânico por causa da chegada de um ônibus com pessoas evacuadas da China, entrou em confronto com a polícia. Na Jordânia, uma reportagem da CNN mostrou as pessoas se agredindo nos supermercados e farmácias na tentativa de conseguir alimentos e remédios. Na Índia, agentes públicos foram atacados.
No caso da Covid-19, Moraes afirma que duas características aumentam a probabilidade de conflitos sociais violentos: a queda abrupta da renda de um número muito elevado de pessoas e o confinamento de grande parte da população, muitas vezes em espaços reduzidos. Por isso, diz ele, é fundamental a ação do poder público para ajudar na redução do estresse provocada pela inevitável necessidade de confinamento e pela crise econômica dele decorrente. “Desde o início da pandemia, todas as publicações têm chamado a atenção para a importância de se proteger esses grupos, preservando a renda, garantindo empregos e dando estímulos sociais às empresas”, diz ele.
Para o pesquisador, a população mais pobre, que vive em locais de menor assistência médica e hospitalar, é a que mais sofre – por medo de ser infectada, pela falta de atendimento médico e pela redução do nível de emprego e renda. As medidas de isolamento, fundamentais para preservar a saúde e a vida dessas populações, criam outro fator de ansiedade, com a perda de renda e o aumento do desemprego. Esse impacto se dá principalmente entre os trabalhadores de fábricas, comércio, vendedores de rua e profissionais da cultura e entretenimento. Os informais, que representam 40% da mão de obra do país, são os mais prejudicados. No Brasil, o estudo cita como pontos de tensão a dificuldade dos micro e pequenos empresários para acesso ao financiamento e a dificuldade da população para ter acesso ao programa de auxílio emergencial. Nas filas da Caixa Econômica Federal, a aglomeração de pessoas em busca do auxílio aumentou o risco de contaminação.
Outro ponto de tensão – historicamente verificado em epidemias – é o aumento de casos de violência doméstica contra mulheres e crianças durante o período de confinamento. Moraes afirma que ao menos três fatores contribuem para o aumento desse tipo de violência: o estresse provocado pela pandemia, o aumento do número de horas de convivência e a dificuldade de acessar abrigos ou outros serviços de ajuda. Países como Brasil, China, Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e Estados Unidos reportaram aumento do números de casos desse tipo violência.
O estudo recomenda ainda a elaboração de uma estratégia de saída da quarentena para ajudar a tranquilizar a população e os agentes econômicos. A incerteza sobre a duração do isolamento, dizem as experiências passadas, aumenta mais o estresse, já que as pessoas não conseguem planejar suas vidas. O risco da falta de estratégias conjuntas dos governos federal e estaduais é a saída caótica e descontrolada da quarentena, em grande parte realizada por pessoas que não respeitam as medidas sanitárias, o que pode aumentar a contaminação. A ausência desse plano de ação conjunta da União, estados e municípios, tem sido, justamente, um dos maiores entraves para o Brasil enfrentar a doença e sair da crise com menos efeitos colaterais.
Uma das sugestões do pesquisador para a organização da volta à rotina é o escalonamento dos trabalhadores – começando, por exemplo, com trabalhadores entre 20 e 49 anos, não pertencentes a grupos de risco. Outra sugestão é aumentar a testagem para saber quem corre risco de ser infectado ou de transmitir o vírus, além de identificar comunidades e regiões em que o número de casos seja baixo, permitindo que elas, progressivamente, voltassem à normalidade. Países como China, a Coreia do Sul e Cingapura estão monitorando por GPS os indivíduos que não devem sair de uma área designada e que devem reportar duas vezes por dia seu estado de saúde.
Para o Brasil, Moraes sugere a criação de grupos de experts para elaborar estratégias de saída. Novamente, isso exigiria a coordenação do governo federal, com a participação dos outros entes federativos. O próximo passo seria a criação de forças-tarefa para a implementação dessas estratégias. Mas a descoordenação na saída da quarentena explicita desentendimentos entre o governo federal, estados e municípios. O que só serve, na opinião de Moraes, para agravar os riscos de conflitos violentos.