no domingo eu vi meu pai morrendo um pouco por dentro. Eu estava no meu quarto, me preparando para sair, quando o ouvi gritando da sala. Corri, para encontrá-lo sentado no sofá, com as costas curvadas em direção ao chão, e as mãos pressionando a cabeça. A tevê, diante dele, mostrava o Museu Nacional pegando fogo – naquele momento, ainda não completamente. Meu pai alternava choro, urros e a frase “O Museu Nacional não…”, tudo ao mesmo tempo.
Devo ter ido ao Museu Nacional quando era pequeno, embora não me lembre. Depois, ameacei voltar algumas vezes, com a desculpa de levar minha irmã de 5 anos, ou o filho, também de 5 anos, de uma amiga querida. Acabou não acontecendo. Apesar da ausência, eu sabia bem da importância que tinha aquele acervo. Costumo escrever sobre bichos, e costumo ir muito ao Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (o equivalente paulistano ao Museu Nacional – só que menor em escala, importância e abrangência temática). Já tive o privilégio de ver, por dentro, os acervos de aves e de insetos da instituição paulistana. Sei que ali não estão 200 anos de história – como se convencionou falar, com relação ao acervo do Museu Nacional –, mas pelo menos 200 milhões de anos. Cada ossada e cada animal empalhado, desses museus, nos ajudam a entender de onde viemos, e quem somos.
Já o meu pai foi várias vezes ao Museu Nacional. Ele é editor de livros – alguns sobre natureza, outros sobre as expedições científicas ocorridas no Brasil no século XIX. Passou grande parte da vida conversando com biólogos e antropólogos de lá. Lembro como ele gostava de contar sobre o dia em que participou de uma reunião dos pesquisadores: o especialista em aracnídeos parecia ter oito braços, como uma aranha, o encarregado dos répteis virava o pescoço num tranco, como o lagarto, e por aí em diante (não me lembro se os bichos eram realmente esses, mas pouco importa).
Para além disso, meu pai sempre acreditou no Brasil. Ele nasceu num 7 de setembro, em 1950, e cresceu em meio à euforia do pós-guerra, da bossa-nova, da construção de Brasília. Sua mãe – minha avó – que era o arrimo da família, trabalhava com educação. Enfiou-lhe na cabeça, desde cedo, que ele seria presidente do país (ou na pior das hipóteses, ministro da Cultura). Meu pai acreditou. Trabalhou com Darcy Ribeiro, tombou árvore, prédio, casa e chegou a ser secretário de Cultura e Esporte nos anos 90, quando Marcello Alencar foi eleito governador do Rio de Janeiro pelo PSDB. Nesse período de secretário, meu pai inaugurou alguns complexos esportivos, apelidados de vilas olímpicas, em municípios da Baixada Fluminense. Lembro-me, mais ou menos aos 15 anos de idade, de ir à inauguração de uma dessas vilas, que tinha pista de corrida, campo de futebol e um painel gigante do artista plástico Rubens Gerchman. Lembro-me também de assistir ao meu pai discursando, ao lado do governador, num tom ufanista. Ele dizia que as coisas, quando feitas com dignidade, sobreviviam, porque a população passava a zelar por elas. Eu nunca acreditei nessa frase.
Nasci em 1982. Cresci em meio à hiperinflação do governo Sarney. Depois veio Fernando Collor. Em seguida Itamar Franco, que me marcou com os causos do Fusca e do Carnaval ao lado de Lilian Ramos. Só com a chegada de Fernando Henrique Cardoso ao comando do Executivo passei a entender que presidente não era necessariamente inimigo. Nos anos Lula, tive um hiato de fé na política. Depois voltei ao meu velho cinismo – talvez acentuado pelo fato de que passei dez anos da minha infância e adolescência vendo minha mãe perecer de um câncer. Entendi, desde cedo, que a esperança não era a última que morria.
Já meu pai, não. À Policarpo Quaresma, ele continuou acreditando no Brasil. Fez mais museu, organizou mais exposição, deu aula em faculdade, embargou obra em terreno público etc. e tal. Uns dois anos atrás, chegou a ligar para o atual governador do Rio, quando os patos e cisnes do Parque Guinle correram risco de morte, se não me falha a memória, por causa de uma contaminação na água. “Pezão, você não quer ficar conhecido como o governador que matou os patos do Parque Guinle”, ele falou, pelo telefone. (Os patos estão lá até hoje; o aposto era lucro à luz de tudo que ocorreu no Rio desde então).
Por isso eu entendi de cara a dor que meu pai sentiu quando viu o Museu Nacional queimando. Não era só o fim do palácio “da família imperial que nos deu a independência”, como escreveu o prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Não era, também, só “um dia trágico para a museologia de nosso país”, como declarou, em nota, o presidente Michel Temer (atribuo a Dilma Rousseff e ao governador Luiz Fernando Pezão tanta responsabilidade quanto a Temer por essa tragédia medonha).
O que terminava, ali, era a fé do meu pai – para mim já há muito morta – numa ideia de país. Terminava a possibilidade de poder revisitar o acervo mais importante do nosso passado. De poder fazer novas pesquisas, novas exposições, novos livros, enfim, de poder descobrir novos fatos sobre nós mesmos. Era o nosso lastro cultural indo pelos ares. Cheguei a comentar, com ele, que era como se o Brasil tivesse sido diagnosticado com morte cerebral (depois soube que a candidata Marina Silva usou um termo até melhor, por medieval e violento que é: “lobotomia”).
Sentei-me ao lado do meu pai, e ficamos assistindo à execução da História na tevê por assinatura (a Globo passava o Fantástico, e o SBT, o Programa Silvio Santos). Por volta de meia-noite resolvemos desligar. Dei-lhe um abraço apertado, como fazemos de vez em quando. Meu pai, que é um garotão de 67 anos, me disse que pela primeira vez na vida se sentia velho. Falou também que dessa vez pensava em desistir do Brasil. Depois emendou com uma frase que eu nunca vou esquecer: “Hoje eles mataram a minha esperança.”