minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    No laboratório úmido e fétido da Moscamed, na Bahia, são produzidos mosquitos para carregar genes fatais que matarão sua própria cria. O objetivo é controlar a população ILUSTRAÇÃO: WELLCOME LIBRARY_LONDON

anais da ciência

A solução do mosquito

A engenharia genética pode acabar com a dengue?

Michael Specter | Edição 76, Janeiro 2013

A+ A- A

Poucas pessoas, a menos que viajem com um microscópio eletrônico, notariam algum dia o ovo de um mosquito Aedes aegypti. No entanto, esses insetos nos seguem por todo canto. Eles podem se reproduzir em uma colher de chá de água, e seus ovos já foram encontrados em latas, garrafas de cerveja, barris, jarros, vasos de flores, xícaras, tanques, banheiras, bueiros, cisternas, fossas, bocas de lobo e tanques de criação de peixes. Eles acasalam no orvalho de lírios-aranha, orelhas-de-elefante, goiabeiras, folhas de palmeiras, nos buracos de rochas e em recifes de corais. Mais do que em qualquer outro lugar, talvez, o Aedes aegypti se desenvolve nos sulcos úmidos e escondidos de pneus de carros usados.

Quando adultos, os mosquitos são estranhamente bonitos: negros, com manchas brancas no tórax e anéis brancos nas pernas. Os Aedes, porém, estão entre as criaturas mais mortíferas da Terra. Antes do descobrimento da vacina nos anos 30, o mosquito transmitiu o vírus da febre amarela a milhões de pessoas com uma eficiência devastadora. Na Guerra Hispano-Americana, no final do século XIX, os soldados dos Estados Unidos sofreram mais mortes causadas pela febre amarela do que pelo fogo inimigo.

O mosquito também transmite dengue, uma das doenças virais que se disseminam mais rapidamente no mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a dengue infecta pelo menos 50 milhões de pessoas por ano [no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, foram 764 mil casos diagnosticados em 2011]. Para os que têm sorte, um episódio de dengue parece uma forma leve de gripe. Mais de meio milhão de pessoas, entretanto, ficam gravemente enfermas por causa da doença. Muitas desenvolvem a febre hemorrágica, que causa vômito e, com frequência, sangramento nasal, na boca ou na pele [no Brasil, houve 2 802 casos confirmados em 2011]. A dor pode ser tão lancinante que a virose tem o apelido de febre quebra-ossos.

Não há vacina, cura ou tratamento eficaz para a dengue. O único modo de combater a doença tem sido envenenar os insetos que a transportam. Isso significa envolver jardins, ruas e parques públicos em uma nuvem de inseticida. Agora há outra abordagem, promissora, mas experimental: uma empresa de biotecnologia britânica chamada Oxitec desenvolveu um método de modificação da estrutura genética do macho do mosquito Aedes que consiste basicamente em transformá-lo em um mutante capaz de destruir sua própria espécie.

 

Alguns meses atrás, estive em um laboratório úmido e fétido da Moscamed, uma instituição de pesquisa com insetos na cidade brasileira de Juazeiro (BA), que possui uma das maiores taxas de incidência da dengue do mundo. Um recipiente plástico do tamanho de uma xícara de café expresso estava sobre o banco à minha frente, repleto de algo parecido com tapioca preta: uma massa granular e glutinosa contendo milhões de ovos do mosquito modificado da Oxitec. Juntos, os ovos pesavam 10 gramas, o equivalente ao peso de três moedas de 5 centavos.

A Oxitec, abreviação de Oxford Insect Technologies, basicamente transformou a Moscamed em uma linha de montagem entomológica. Em um espaço estritamente controlado e excessivamente úmido, os mosquitos são chocados, criados e alimentados com uma combinação de sangue de cabra e ração para peixe, e então se reproduzem. Depois disso, os técnicos do laboratório destroem as fêmeas que eles criaram e libertam os machos para irem atrás do verdadeiro e único propósito da vida: encontrar fêmeas na natureza para se acasalar. Os ovos fertilizados por esses machos modificados geneticamente serão chocados normalmente, mas logo depois, e bem antes que os novos mosquitos possam voar, os genes fatais irão prevalecer, matando todos os insetos. O objetivo é ao mesmo tempo simples e audacioso: controlar a população nativa do Aedes aegypti e exterminá-la juntamente com as doenças que carrega.

Os mosquitos modificados, conhecidos oficialmente como OX513A, levam uma vida breve mas privilegiada. O processo inteiro, da criação à destruição, demora menos de duas semanas. Os ovos, de menos de 1 milímetro de comprimento, têm coloração branca leitosa após serem postos. Depois de algumas horas eles ficam endurecidos, adquirem uma cutícula protetora e se tornam brilhantes e pretos. Olhando ao redor do laboratório, notei prateleiras forradas com lençóis brancos compridos; cada lençol estava coberto por dezenas de milhares de pontos do tamanho de um alfinete que pareciam algum tipo de código de computador. Os ovos podem sobreviver desse modo por um ano; depois de quatro dias, entretanto, eles são mergulhados em potes cheios de água a 27°C – temperatura que permite aos ovos chocarem em menos de uma hora.

“Esses mosquitos são relativamente fáceis de criar e transportá-los não custa quase nada”, disse Andrew McKemey, gerente de desenvolvimento técnico da Oxitec, enquanto me conduzia pelo laboratório. McKemey, um homem magricela que vestia camisa verde de algodão fino e calça cargo cáqui, passa boa parte do tempo no Brasil, ensinando os cientistas locais a manufaturar o principal produto da empresa. O laboratório produz cerca de 4 milhões de ovos mutantes por semana, e logo irá aumentar a produção para 10 milhões. “Isso é só o começo”, disse McKemey. “Em teoria, podemos fazer centenas de milhões de mosquitos neste lugar.”

O estudo de campo, que começou um ano atrás, é fruto de uma colaboração entre a Moscamed, a Oxitec e a Universidade de São Paulo. Os resultados preliminares são impressionantes: o grupo coletou recentemente uma amostra de ovos em dois bairros onde os mosquitos de laboratório foram soltos, e descobriu que 85% deles eram geneticamente modificados. Com um número grande o suficiente desses ovos, a população de Aedes diminuiria, assim como a incidência da dengue. “Isso não é uma panaceia”, disse-me Giovanini Coelho, coordenador do Programa Nacional de Controle da Dengue do Ministério da Saúde. “Não estou afirmando que essa medida sozinha irá solucionar o problema ou que não haja riscos. Sempre há riscos – por isso começamos com estudos pequenos em bairros isolados geograficamente. Mas as pessoas estão morrendo aqui, e esse mosquito é resistente a muitos inseticidas. Precisamos de fato de algo melhor do que temos.”

Em Juazeiro, onde poucas famílias não foram afetadas pela dengue, a equipe da Moscamed e seus mosquitos são tratados com reverência. Os pesquisadores dirigem vans brancas com fotos dos mosquitos pela região e a palavra “transgênico” pintada na lateral. Tentam visitar todas as casas das áreas onde soltam os mosquitos, para explicar que os OX513A “são insetos amigáveis que protegem você contra a dengue” e que, como os cientistas estão atacando os Aedes aegypti onde eles vivem, debaixo de sofás e nos quintais, os mosquitos modificados podem matar seus pares sem fazer mal a outra planta ou animal.

É uma abordagem elegante para uma crise na saúde que ameaça boa parte do mundo, mas será necessário mais que sucesso biológico para fazê-la funcionar. Isso porque o OX513A não é como os outros mosquitos. Na verdade, é diferente de todos os demais seres da Terra – uma criatura alada, feita pelo homem e depois solta na natureza. Apesar da promessa científica do experimento, muitas pessoas consideram o minúsculo inseto o arauto de um mundo onde animais são feitos por cientistas sem nome, criados em béqueres e então liberados na natureza – com consequências impossíveis de predizer ou controlar, não importa quão nobre seja a intenção.

“Esse mosquito é o monstro do doutor Frankenstein puro e simples”, disse Helen Wallace, diretora-executiva da organização ambientalista britânica GeneWatch. “Abrir a caixa e deixar essas criaturas feitas pelo homem voarem livremente traz riscos que nem começamos a contemplar.”

 

Há mais de 3 mil espécies de mosquito, mas a ampla maioria não se interessa por nós, alimentando-se de frutas podres e outras fontes de açúcar. Apenas algumas centenas de espécies, incluindo o Aedes aegypti, precisam de sangue para sobreviver. (Os machos nunca picam, mas sem uma refeição constituída de sangue as fêmeas ficariam impossibilitadas de nutrir os ovos.) Os hábitos de acasalamento dos mosquitos podem ser brutais. “Na maioria dos encontros bem-sucedidos, o casal fica tão firmemente atado que o macho tem dificuldade de escapar no final”, escreveu Andrew Spielman, falecido entomologista da Universidade Harvard, em seu livro Mosquito: The Story of Man’s Deadliest Foe [Mosquito, a História do Mais Letal Inimigo do Homem], publicado em 2001. “Alguns machos menos afortunados só conseguem se libertar deixando os órgãos sexuais para trás.” Ainda assim, Spielman também notou que as trocas breves podem ser altamente produtivas: “Um único minuto de paixão permite à fêmea produzir todos os ovos férteis que ela irá colocar na vida.”

Nunca houve uma máquina de matar tão eficiente. Pesquisadores estimam que mosquitos tenham sido responsáveis por metade das mortes na história humana. A malária responde pela maioria dos casos, mas mosquitos também transmitem muitas outras infecções potencialmente fatais, incluindo febre amarela, dengue, chikungunya, filariose, febre do vale do Rift, febre do Nilo Ocidental e vários tipos de encefalite. Apesar de nossa sofisticação técnica, os mosquitos representam hoje um risco maior para um número mais alto de pessoas. Como a maioria dos outros patógenos, os vírus e parasitas carregados por mosquitos evoluem rapidamente para resistir aos pesticidas e medicamentos. Muitos inseticidas já usados contra o Aedes aegypti são agora considerados inócuos.

O Aedes aegypti é uma espécie invasora nas Américas. Ele provavelmente chegou em navios que traficavam escravos a partir da África no século XVII, trazendo junto a febre amarela. Os mosquitos procriaram com facilidade nos barris de água potável dos barcos. Durante o século XVIII, uma grave epidemia de febre amarela varreu a Nova Inglaterra e a Filadélfia, assim como outras cidades portuárias americanas; foi necessário mais um século para se descobrir que os mosquitos eram os portadores da doença. [No Brasil, houve surtos no Nordeste já no século XVII e uma grande epidemia no Rio, então capital imperial, no século XIX.]

O controle tradicional dos mosquitos quase erradicou o Aedes aegypti (e as doenças que ele carregava) dos Estados Unidos cinquenta anos atrás. Mas a globalização tem sido boa para os mosquitos, especialmente para espécies como o Aedes aegypti, que viaja com facilidade e pode ficar inativo por meses em recipientes. Nos últimos anos, o mosquito e a dengue retornaram ao Texas, ao Havaí e à Flórida. A doença também foi transmitida pela primeira vez na França e na Croácia.

“Transportamos o mosquito pelo mundo em bilhões de pneus usados”, disse-me Paul Reiter, professor de entomologia médica no Instituto Pasteur, em Paris. Reiter é um dos maiores especialistas mundiais em história natural de doenças transmitidas por mosquitos. Antes de se mudar para a França, passou mais de duas décadas no Departamento de Dengue dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, devotando uma surpreendente parte do seu tempo ao estudo de pneus. Ele descobriu que estes eram incubadores ideais de mosquitos: os pneus absorvem calor, retêm água da chuva e nutrem bactérias nas poças que criam. O crescimento exponencial da dengue – o número de casos comunicados à Organização Mundial da Saúde cresceu trinta vezes desde 1965 – pode, pelo menos em parte, ser atribuído ao enorme crescimento das exportações de pneus.

O Aedes aegypti não voa para longe nem vive muito tempo; um viajante hábil se moveria poucas centenas de metros e, em média, sobreviveria como adulto por dez dias. Mas o Aedes é um inseto particularmente astuto. A maioria dos mosquitos faz barulho o bastante para acordar um homem adormecido, e é lenta a ponto de não conseguir dar mais de uma picada antes de ter que escapar ou ser esmagado por um golpe raivoso. O Aedes aegypti se alimenta de dia e ataca à noite; em geral fica rente ao chão e prefere picar as pessoas nos tornozelos e pernas.

O mosquito é extremamente sensível ao movimento – quando alguém se move, ele também o faz, em geral atacando a vítima várias vezes durante cada refeição e depositando patógenos em cada picada, o que, por sua vez, aumenta o risco de que contraia a dengue de pessoas infectadas e depois transmita a doença para outras pessoas. (Diferentemente da maioria dos mosquitos, que podem depositar centenas de ovos em uma superfície flutuante do tamanho de um grão de arroz, o Aedes aegypti em geral deposita seus ovos em vários locais, aumentando, desse modo, a chance de que alguns sobrevivam.)

A dengue sempre foi considerada uma doença tropical. Mas seu meio de transporte, o mosquito, raramente vive a mais de 100 metros da principal fonte de sustento do vetor – nós –, e como nosso perfil demográfico mudou, pode-se dizer a mesma coisa do mosquito. O Aedes aegypti se adaptou à cidade com grande destreza. Mesmo os pesticidas modernos mais eficientes com frequência não chegam aos locais de reprodução urbanos tão bem escondidos. “A dengue é uma doença terrível, simplesmente terrível”, afirmou Reiter. “E nenhum dos métodos utilizados até agora para controlá-la está funcionando. Nenhum.”

 

Não é fácil para um ovo se tornar um OX513A. A maioria foi geneticamente modificada nos laboratórios da Oxitec, no interior da Inglaterra, próximo a Oxford, onde cientistas, trabalhando com agulhas de vidro tão pequenas que só são visíveis sob um poderoso microscópio, inserem dois genes em ovos não maiores que um grão de sal. Um dos genes carrega instruções para manufaturar uma quantidade muito maior de uma proteína do que seria necessário para manter novas células saudáveis; os resultados são letais. Os cientistas mantêm esse gene sob controle e os mosquitos, vivos, por meio da inserção do antibiótico tetraciclina na comida dos insetos. A droga se liga à proteína e age como um interruptor que pode ligá-la e desligá-la. Enquanto a tetraciclina está presente, os mosquitos vivem e se reproduzem normalmente. Uma vez liberados do laboratório, entretanto, o antídoto se vai; o gene letal fica descontrolado. Dentro de dias os machos, juntamente com quaisquer ovos que eles ajudem a criar, irão morrer. Na verdade, a Oxitec já modificou todos os ovos de Aedes aegypti de que o mundo pode precisar.

O outro gene é um marcador fluorescente – a versão molecular de um ferro em brasa – que ajuda a diferenciar os mosquitos normais dos modificados. Não é possível ver nada a olho nu, mas sob o microscópio as larvas emitem um brilho vermelho intenso, como um tênue letreiro de neon. A maioria dos ovos alterados irá morrer. Outros não conseguirão incorporar os novos genes em seu DNA; esses são inúteis, pois o processo funciona apenas quando os genes alcançam as células germinativas necessárias para os ovos se reproduzirem. A tarefa é difícil e tediosa: os técnicos podem passar por milhares de ovos para atingir apenas um que irá passar os novos genes à próxima geração de mosquitos. Mas, uma vez que um número suficiente de ovos seja corretamente modificado, eles podem, depois de muitas gerações, produzir milhões de mosquitos mutantes.

Os OX513A são criados na relativa suntuosidade do laboratório. Depois de incubados, eles são movidos das placas de Petri para tanques do tamanho de um aquário caseiro. Os machos são alimentados com açúcar; as fêmeas, primeiramente atraídas pelo odor do suor humano, recebem sangue de cabra obtido semanalmente de um abatedouro próximo. “Graças a Deus existe esse lugar”, falou rindo McKemey. “Não dá para fazer mosquitos sem sangue.” No espaço exíguo da sala dos fundos onde ele estava, todos os ovos ao redor se metamorfoseavam em larvas, eclodindo em bandejas compridas usadas por padeiros para armazenar os pães. Do outro lado da sala, em baldes transparentes e cheios de água, cobertos com gaze, milhares de larvas tentavam freneticamente sair dos casulos, o último estágio antes de se tornarem mosquitos adultos.

Os mosquitos adolescentes têm cabeça enorme e olhos proeminentes; sob o microscópio parecem cavalos-marinhos ou versões de ETs em miniatura. Enquanto ainda estão contidos no casulo, suas asas transparentes ficam pregadas atrás do corpo. Nesse ponto, o mosquito já começou a respirar pelo sifão, um tubo espiralado e segmentado que é introduzido na superfície da água como um snorkel. No momento certo, a pupa inspira, expande o abdômen, rompe o casulo e emerge como adulto. “É emocionante”, disse McKemey, enquanto observávamos os mosquitos jovens fazerem a primeira tentativa de voar. “Nunca me canso disso.”

 

A inspiração para o mosquito da Oxitec surgiu de um método de controle de pragas chamado técnica de esterilização de mosquitos, que foi usado durante décadas. Bilhões de insetos, todos esterilizados por ondas de radiação, foram criados em laboratórios como o da Moscamed e soltos para acasalar na natureza. Em 1982, o uso do método erradicou com sucesso a larva da mosca-varejeira – um parasita que ataca a carne de animais de sangue quente – da América do Norte. Mas é difícil usar a radiação adequadamente em insetos tão pequenos como os mosquitos. Se se administrar muito pouco, eles permanecerão viris; uma carga muito poderosa pode deixar os insetos tão frágeis que eles não estarão aptos a competir pelas fêmeas.

No início dos anos 90, Luhe Alphey, cientista chefe da Oxitec, investigava a genética do desenvolvimento da Drosophila, a mosca-das-frutas comum. Um dia, Alphey, hoje professor visitante de zoologia em Oxford, cruzou com um colega que conversava sobre a técnica de esterilizar insetos. Ele, que conhecia pouco sobre esse campo, começou a pensar sobre como substituir a radiação pelas técnicas da biologia molecular moderna. Alphey é reservado, com uma mecha de cabelo castanho e olhos pensativos; é quase possível ver seu cérebro trabalhando enquanto ele decifra um problema científico. Seu objetivo não era exatamente esterilizar os machos, mas alterar seus genes de modo que qualquer descendente morresse. Se ele pudesse realizar isso sem usar radiação, argumentou, os insetos estariam aptos para a competição sexual pelas fêmeas da natureza.

Alphey enfrentou vários obstáculos científicos. Ele teria de separar apenas os machos. (Como as fêmeas dos mosquitos mordem, as fêmeas modificadas geneticamente poderiam, em teoria, passar novas proteínas para os seres humanos, com consequências desconhecidas.) “Eu estava começando a pensar numa solução que tivesse a ver com a radiação”, revelou. “Pensei: ‘E se o sistema de engenharia letal pudesse ser voltado especificamente para determinado sexo?’ Acontece que as fêmeas do Aedes aegypti são consideravelmente maiores que os machos. Isso foi um golpe de sorte, pois significa que é possível separá-los com facilidade com base no seu tamanho.”

Uma vez soltos, os machos teriam de viver tempo suficiente para inseminar as fêmeas, e eles precisariam ser saudáveis o bastante para competir com os machos da natureza. “Você quer que o inseto procrie com sucesso no laboratório, mas dependa de um antídoto que não estará mais disponível na natureza”, explicou Alphey. “Era difícil saber como fazer isso.” Mas o acaso interveio novamente: ele precisou ir a um seminário em que pesquisadores descreveram o uso de tetraciclina como um interruptor capaz de desligar um gene. “A molécula impede que o gene mortal funcione”, disse Alphey. “Era uma solução perfeita.”

Em 2002, a Oxitec se tornou uma empresa independente da universidade. Alphey começou a falar em encontros sobre doenças tropicais e em países infestados pela dengue; ele também reuniu apoio de investidores privados e de instituições filantrópicas ligadas à saúde pública, incluindo a Gates Foundation e a Wellcome Trust. Em 2010, a empresa coordenou uma série de estudos de campo nas ilhas Cayman, soltando 3,3 milhões de mosquitos alterados geneticamente em 16 hectares de terra. O OX513A se tornou o primeiro mosquito modificado posto em liberdade no planeta. O número de mosquitos Aedes aegypti selvagens na área caiu 80% em cinco meses. Foi apenas um teste de viabilidade; ninguém sabia como o método poderia atingir a ecologia da região ou se reduziria de fato a incidência de dengue. Os ativistas ambientais temiam que a liberação de mosquitos modificados pudesse desencadear uma série de eventos que ninguém fosse capaz de controlar.

“Eles não sabem como isso vai funcionar no ambiente real”, afirmou Silvia Ribeiro, diretora na América Latina de uma organização ambientalista chamada ETC Group. “E uma vez que os mosquitos são liberados, não há como apanhá-los de volta.” Em 2010, a Oxitec começou um estudo de campo menor na Malásia. Mas o experimento brasileiro foi o maior teste até o momento, e lançou as bases para a batalha da Oxitec para entrar no mercado mais importante do mundo: os Estados Unidos.

 

Em 2009, Key West, na Flórida, sofreu seu primeiro surto de dengue em 65 anos. Houve menos de trinta casos confirmados – um número insignificante se comparado aos milhões de infectados anualmente na América do Sul, na África e na Ásia. Há apenas 25 mil residentes permanentes em Key West, mas, com mais de 2 milhões de visitantes por ano, a cidade depende dos turistas. Estive lá durante as férias da primavera, que não é o melhor momento para visitar o local a menos que se tenha algum interesse particular em festas regadas a cerveja, tequila ou covers da banda Eagles.

“Eles sustentam esta cidade”, disse a dona de uma banca de cigarros enquanto observávamos montes de estudantes bronzeados descerem a avenida Truman em direção ao bar Jimmy Buffett’s em Margaritaville, o marco zero do estilo de vida relaxado de Key West. “Às vezes a coisa fica feia por lá”, continuou. “Mas afaste os turistas e somos apenas um monte de quiosques de comida mexicana, bares e barracas de praia.”

Mesmo um surto leve de dengue em Key West acionou o alarme. Depois de 2009, o Distrito de Controle de Mosquitos de Florida Keys acrescentou dez inspetores à batalha contra o Aedes aegypti. Em 2010, o número de casos na região dobrou. “Temos um potencial evidente para surtos graves de dengue”, disse-me Michael S. Doyle, entomologista e diretor-executivo do distrito. Ele se mudou para Key West em 2011, depois de passar cinco anos nos Centros para Controle de Doenças dos Estados Unidos. “Parte do nosso problema é a imagem da dengue”, explicou. “Algumas centenas de casos aqui poderiam devastar o turismo.”

“Imagine”, continuou. “Alguém em Milwaukee está navegando por sites da internet e pergunta à mulher: ‘Aonde devemos ir nas férias, querida, a Key West ou a algum lugar no Caribe?’ E a mulher responde: ‘Ei, me lembro de ter ouvido alguma coisa sobre dengue em Key West.’”

Estávamos em um café não muito longe da casa de Ernest Hemingway, o local mais visitado por turistas na cidade. Como muitos prédios públicos, o café tem janelas abertas e sem telas de proteção; os mosquitos dançam no ar ao nosso lado. “Vivemos com janelas e portas abertas”, ressaltou Doyle. “E eles convivem conosco. Somos um hospedeiro ideal.”

Doyle é um homem de voz suave, que usa óculos sem aros e um bigode aparado com esmero. Ele assinalou que, quando se trata de contrair dengue, o modo como as pessoas vivem é tão importante quanto o local onde moram: de 1980 a 1999, o Texas comunicou 64 casos de dengue ao longo do rio Grande, enquanto havia mais de 60 mil casos nos estados mexicanos do outro lado do rio. “Na verdade, a população de Aedes aegypti era maior no Texas”, explicou. Mas os texanos tinham tela nas janelas (e as mantinham fechadas), dirigiam carros com ar-condicionado e passavam pouco tempo nas ruas.

Doyle desejava baixar o risco de um surto de dengue em Key West, mas o distrito já gastava mais de 1 milhão de dólares por ano com inseticida, e ele relutava em jogar mais produtos químicos nos jardins dos moradores. Então um colega assistiu a um encontro da Sociedade Americana de Medicina e Higiene Tropical e contou a ele sobre o OX513A. “Lembro-me de pensar que, se isso realmente funcionasse, seria uma imensa vantagem sob vários pontos de vista”, disse. “Outras técnicas são mais dispendiosas e têm maior custo ambiental. Os dados pareciam confiáveis, e com certeza precisamos mudar o modo de pensar sobre o controle de mosquitos.”

Em março, Doyle convidou Luke Alphey, fundador da Oxitec, e Hadyn Parry, seu chefe executivo, para explicar sua técnica em um encontro na cidade. Seria a primeira de uma série de audiências destinadas a explorar a possibilidade de testar os mosquitos em um bairro relativamente isolado de Key West. “Eu realmente não sei o que esperar”, disse-me Alphey no início do dia da reunião. “Mas espero que o pessoal de Key West compreenda que até agora contou com a sorte. Porque está vivendo em um mar de dengue.”

Opositores se mobilizaram horas depois de saberem do encontro. Panfletos com cores chamativas, que afirmavam que a comissão de controle de mosquitos “planejava soltar e testar mosquitos geneticamente modificados (feitos pelo homem) em você, sua família e no meio ambiente”, foram colados em metade dos muros da cidade. Antes da reunião, encontrei Chris O’Brien, uma mulher cuidadosamente despenteada, com cabelo na altura dos ombros e olhos azuis escrutinadores. Estava vestida com as cores pêssego e rosa, associadas ao sul da Flórida, e também usava coturnos. Chris é uma “concha”, gíria que descreve as pessoas nascidas, criadas e que passaram a vida em Key West. Seus filhos e netos são conchas também.

“As pessoas convivem com os mosquitos aqui”, disse ela. “Sempre convivemos. Passamos dois anos sem ter casos de dengue e talvez, no máximo, teremos alguns casos. Não é um problema grave. Certamente não justifica trazer para cá um inseto artificial do qual sabemos tão pouco. Corremos mais risco de sermos atropelados do que de pegar a doença.”

 

É impossível prever a probabilidade de um surto de dengue com base no número de infecções passadas. Para haver o surto só é preciso a presença do mosquito e do vírus. Key West tem muito do primeiro; o resto é questão de um controle epidemiológico agressivo – e do acaso. Uma vez que os mosquitos infectados comecem a picar seres humanos, uma epidemia pode surgir em semanas, já que o vírus se movimenta do vetor para o hospedeiro e vice-versa.

Chris O’Brien, como muitos de seus colegas que protestavam, havia recebido informações da organização não governamental Amigos da Terra sobre o conceito de introduzir criaturas feitas pelo homem no meio ambiente local. “Como vamos saber se as fêmeas não vão procriar e morder as pessoas?”, indagou O’Brien. “Elas teriam enzimas no corpo que não existem na vida real. O que aconteceria se nos picassem? Livrar-se da dengue seria maravilhoso, é claro, mas o que aconteceria se tivéssemos sucesso e esses mosquitos fossem simplesmente banidos da Terra? Eles não fazem parte de uma cadeia alimentar?”

Essas são preocupações sensatas. Mas ambientalistas são rápidos em ressaltar que os Aedes aegypti estiveram nos Estados Unidos por 200 anos mais ou menos, tempo insuficiente para uma espécie causar impacto evolutivo. Muitos biólogos argumentam que, se o Aedes aegypti ou mesmo todos os mosquitos desaparecessem, o mundo não sentiria sua falta, e outros insetos logo preencheriam seu nicho ecológico – se eles tiverem um. “Mais que a maioria dos outros seres vivos, o mosquito é uma criatura interesseira”, escreveu Andrew Spielman. “Ela não areja o solo, como as formigas e minhocas. Não é uma polinizadora de plantas importante, como as abelhas. Nem sequer serve como alimento essencial para outros animais. Não tem outro ‘propósito’ que não seja perpetuar sua espécie. O fato de os mosquitos atormentarem os seres humanos é realmente secundário para eles, que estão apenas sobrevivendo e se reproduzindo.”

Nem todo mundo concorda com a afirmação de Spielman. “A modificação genética leva a efeitos intencionais e não intencionais”, afirma Ricarda Steinbrecher, da EcoNexus, uma organização de pesquisa sem fins lucrativos e de interesse público, sediada na Inglaterra. Em uma extensa carta aos reguladores do governo da Malásia, ela enfatiza que poderia haver impactos adicionais “se todos os mosquitos forem eliminados juntos”. Por exemplo, o que aconteceria aos peixes, sapos, outros insetos e aos artrópodes que se alimentam de larvas e de mosquitos adultos? “E se as interações entre eles e outros organismos no meio ambiente mudassem?”, escreveu. “Também é o caso de se perguntar o que vai preencher seu espaço ou ocupar seu nicho se os mosquitos-alvo forem eliminados. Será que outras pragas irão aumentar? Será que as doenças que eles transmitem hoje terão capacidade de trocar de vetores? Será mais fácil ou mais difícil controlar esses novos vetores?”

Seria irresponsabilidade utilizar amplamente insetos transgênicos sem respostas adequadas a essas questões, mas a maioria delas foi abordada em avaliações de impacto ambiental e em pesquisas independentes. Se os resultados fossem submetidos ao escrutínio dos biólogos, a resposta esmagadora seria: os benefícios potenciais superam de longe os riscos. Não há pássaros, peixes ou outros insetos que dependam exclusivamente do Aedes aegypti. Ele não poliniza flores nem regula o crescimento de plantas. Não é, nos Estados Unidos, o que os entomologistas chamam de “espécies-chave”.

“É francamente difícil ver o lado negativo”, disse-me Daniel Strickman, diretor do programa nacional em entomologia veterinária e médica do Serviço de Pesquisa Agrícola dos Estados Unidos. “Meu trabalho é tentar prevenir doenças humanas modificando o comportamento de mosquitos e matando-os. Sou parcial, contra os mosquitos. E o Aedes aegypti causa danos imensos. Epidemias de dengue assoladoras afetariam muito nossa economia. Se voltássemos aos dias da febre amarela neste país, veríamos que tivemos verdadeiras consequências demográficas. Cidades inteiras morreram. A expectativa de vida em algumas regiões foi reduzida.” Strickman acrescentou: “Olho para essa nova abordagem e não há nada mais ecológico. É direcionado a apenas uma espécie. Se a única questão é o que vai acontecer se acabarmos só com essa espécie de mosquito, não me parece uma decisão difícil.”

Mark Q. Benedict, entomologista na Universidade de Perugia que pesquisou insetos modificados geneticamente durante anos e escreveu sobre eles, concorda. “Há perguntas não respondidas e sempre haverá”, definiu. “Mas também há perguntas não respondidas sobre o efeito de inseticidas nas crianças, e os usamos todos os dias para matar os mesmíssimos mosquitos. É importante lembrar: já estamos tentando matar essa espécie, e por um bom motivo. O risco envolvido em eliminá-la é muito, muito pequeno. O risco em deixá-la se multiplicar é enorme.”

 

Os ambientalistas expressaram preocupação sobre o que poderia acontecer se algumas fêmeas modificadas sobrevivessem e, quando picassem pessoas, injetassem nelas uma proteína alterada. A Oxitec separa machos das fêmeas, mas, com tantos mosquitos, algumas fêmeas geneticamente modificadas inevitavelmente escapam – a Oxitec considera que o número dessas fêmeas é de uma em 3 mil. “Esse é um cenário terrível, e não temos nenhum dado publicado que responda a essa pergunta”, disse-me Eric Hoffman, especialista em política para alimentos e tecnologia da Amigos da Terra.

Hoffman acompanhou os experimentos da Oxitec. Reiter, o entomologista do Instituto Pasteur, diz que nenhuma proteína introduzida nos mosquitos transgênicos penetra em suas glândulas salivares – o que significa que ela não pode ser espalhada para os seres humanos por meio da picada dos mosquitos. Além disso, ele não reconheceu nada na estrutura genética dos mosquitos modificados que pudesse causar danos aos seres humanos. Todavia, ele e outros estão ansiosos para ver publicados trabalhos que tenham sido feitos por grupos não ligados à Oxitec e que confirmem essas conclusões.

A questão mais importante levantada pela criação do OX513A é quem irá regulá-lo e de que modo isso será feito. No Brasil, um único órgão do governo – a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – supervisiona a aprovação de todos os organismos geneticamente modificados. Nos Estados Unidos, entretanto, a estrutura regulatória é muito mais complexa. Não está claro se os mosquitos modificados serão considerados animais, e, portanto, submetidos à jurisdição do Departamento de Agricultura, ou uma droga, que deverá ser controlada pela FDA, a Food and Drug Administration [Agência de Alimentos e Medicamentos].

“Estou ansioso por uma situação regulatória clara nos Estados Unidos”, disse-me Alphey, que quase não consegue controlar sua frustração com o processo. “Só queremos ir adiante quando tudo estiver em seu devido lugar.” Para a consternação de muitos, a Oxitec recentemente solicitou a aprovação de seu mosquito à FDA. “Estamos preocupados com o fato de a Oxitec ter sido muito vaga em seus comunicados públicos”, disse Hoffman. “Eles dizem que esses mosquitos são estéreis, mas eles não são, já que inseminam as fêmeas. São geneticamente modificados, e o público precisa saber disso.”

A Oxitec de fato chama os mosquitos OX513A de estéreis, mas não nega que eles sejam geneticamente modificados; quase todas as suas publicações dizem praticamente isso. “Não há nenhum termo leigo para ‘transmite um gene autocida que mata a prole’”, disse Alphey. “‘Estéril’ é o termo comum mais próximo. O OX513A é estéril praticamente da mesma forma que insetos esterilizados por radiação são estéreis.” Hoffman não chega a chamar a afirmação de Alphey de enganosa, mas certamente não concorda com ela. “Este país simplesmente não tem as leis ou as regulamentações necessárias para que esse projeto avance agora”, resumiu.

Em Key West, os cientistas da Oxitec, juntamente com Doyle e sua equipe do Distrito de Controle de Mosquitos, enfrentaram uma sala lotada no Harvey Government Center. Era um dia quente e ensolarado, e muitos dos presentes tinham saído do trabalho mais cedo para estar ali. Doyle explicou como seria um experimento de pequena escala, a Oxitec defendeu sua técnica; e então a palavra foi aberta ao público.

A reunião degringolou numa discussão emocional e algumas vezes rancorosa. A Oxitec – uma pequena empresa que surgiu de um departamento universitário de zoologia – foi retratada como um conglomerado internacional que deseja “brincar de Deus” e colocar o paraíso americano em perigo. Os insetos foram descritos como “mosquitos Frankenstein”. Mais de uma dúzia de pessoas se levantou para falar; nenhuma defendeu o projeto ou reconheceu que, se ele tivesse sucesso, reduziria uma ameaça à saúde e aliviaria a grande dependência de inseticidas que os Estados Unidos têm. Quase unanimemente, as pessoas com quem conversei disseram que presumiam que a decisão já tinha sido tomada. Mas nada havia sido decidido. Cada pergunta feita na reunião ou escrita mais tarde foi encaminhada aos reguladores estaduais para sua consideração.

“Parte meu coração pensar que vocês têm coragem de virem aqui e fazerem isso com nossa comunidade”, afirmou uma mulher. “Qualquer coisa geneticamente modificada não deve ser tocada. Sinto que…”, ela apontou para Doyle e seus colegas no palco, “a cabeça de vocês já está feita. Sei disso. Eu consigo sentir isso. Sinto a vibração.” Ela recebeu aplausos estrondosos. Outro participante do encontro, Rick Worth, foi até mais direto. “Eu estou me lixando para sua porcaria científica”, falou. “Vocês não vão enfiar pela minha garganta uma coisa que eu não quero. Não sou uma cobaia.”

 

Uma tarde antes de ir embora do Brasil, me vi passando devagar pelas ruas de terra esburacadas de um bairro chamado Itaberaba, em companhia de Aldo Malavasi, o diretor bastante animado da Moscamed. Itaberaba fica a poucos quilômetros do Centro de Juazeiro e, enquanto dirigíamos, alto-falantes na frente do carro anunciavam nossa chegada. “Estamos aqui para falar sobre o projeto do mosquito transgênico”, diziam os alto-falantes. “Estamos aqui para explicar esse programa para vocês e responder às suas perguntas.” Malavasi, um homem grande e carismático, disse: “Só há um modo de conseguir que as pessoas fiquem do seu lado: conversando com elas. Essa é uma tecnologia nova e isso é assustador. Mas também traz possibilidades tremendas. As pessoas não são idiotas. Explique a elas, assim elas poderão decidir.” A Moscamed falou com quase todo mundo que morava nas áreas afetadas. Quando uma equipe deixava uma casa, entalhava os contornos de um mosquito no batente da porta, assim os colegas saberiam quais casas ainda precisavam ser visitadas.

A Bahia é uma das regiões de produção frutífera mais importantes do Brasil. Passamos por depósitos repletos de goiabas, mangas, limões, abacaxis e mamões. O cheiro de fruta podre enchia o ar úmido. Nessas cidades, as pessoas moram em casebres pequenos, pintados de cores vivas, e parece que pelo menos um membro de cada família já teve dengue. É mais fácil explicar a elas a utilidade de um mosquito modificado do que, por exemplo, a de um milho modificado. “Você diz às pessoas que está mexendo com soja ou milho e elas desconfiam”, explicou Malavasi. “Isso é diferente. Elas sofreram na pele.”

A aceitação da engenharia genética depende claramente do produto. Seus oponentes evocam com frequência uma interpretação unilateral do “princípio da precaução”, que argumenta contra a introdução de atividades no meio ambiente que, em teoria, poderiam causar danos à saúde dos seres humanos. É difícil rebater essa visão, mas também o é o fato de que a dengue atinge dezenas de milhares de pessoas por ano, que a ameaça vem aumentando e que não há tratamento ou cura. A preocupação com os riscos teóricos tende a inibir qualquer discussão sobre os possíveis benefícios da engenharia genética.

Muitas pessoas, especialmente no mundo ocidental rico, se opõem a modificar os alimentos, mas nunca há reclamações quando o mesmo processo científico é usado para fazer insulina ou remédios para o coração. “Às vezes eu perco a paciência com esses debates”, disse Paul Reiter, que assessorou a Oxitec. “As objeções muito raramente têm a ver com a ciência ou a segurança da pesquisa. É uma oposição provocada pelo medo. Entendo isso, mas essa tecnologia foi usada de diferentes maneiras durante anos.” Ele estava se referindo à técnica de esterilização de insetos. “A abordagem da Oxitec é mais segura e mais benigna do ponto de vista ambiental”, reiterou Reiter. “Se a expressão ‘geneticamente modificado’ não estivesse ligada a ela, não creio que as pessoas se importassem.”

Malavasi dá de ombros quando levanto a oposição. “Sei que isso soa como ficção científica”, assumiu. “E não sou ingênuo. Mas, para nos livrarmos do vírus, temos de nos livrar dos mosquitos. E, pelo menos em um experimento pequeno, está funcionando.” Ele observou que o nome do programa – Projeto Aedes Transgênico – não foi acidental. “Colocamos a palavra ‘transgênico’ no nome para todo mundo ver”, revelou. “Não escondemos nada.”

Paramos em um local qualquer em uma rua sem placa. Estava um calor opressivo quando saímos do carro; um pequeno córrego borbulhava no acostamento. “Estamos no céu dos mosquitos”, atestou Malavasi. Enquanto falávamos, uma equipe da Moscamed começou a descarregar de trás da van vários tupperwares do tamanho de travessas. Os recipientes tinham tampas de plástico, que foram abertas uma por uma, libertando milhares de mosquitos machos. Cada vez que uma tampa era aberta, montes de insetos minúsculos pousavam, rapidamente, nos pesquisadores – não para picar, mas para se orientar. Era a primeira vez que eles experimentavam a liberdade. Por um momento, pareciam relutantes em voar. Então, quase como um só corpo, depois de pairarem por alguns segundos no ar úmido da tarde, formaram um tipo de tapete voador, e decolaram para cumprir seu destino.