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    ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009

esquina

A vergonha bate à sua porta

Na Espanha, quem deve tem medo de pinguim

Clarissa Vasconcellos | Edição 29, Fevereiro 2009

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Em Madri, toca o interfone num apartamento em Goya, bairro de classe média alta. Da calçada, ao ouvir a voz metálica que lhe pergunta quem é, Manfred Gunther devolve a pergunta: “Senhor Fulano?” Sim, de dentro do apartamento fala o senhor Fulano, um pobre homem prestes a receber a pior notícia do dia, se não do mês ou do ano. “Venho em nome do departamento jurídico do El Cobrador del Frac“, Gunther comunica.

É provável que mais ninguém ouça a troca de palavras entre os dois, mas Fulano sabe que está frito. Postado na entrada do prédio, seu interlocutor é um cavalheiro de fraque, gravata-borboleta, cartola e uma maletinha de circo na qual se lê em letras brancas:El Cobrador del Frac. Quem olha a certa distância acha que Manfred Gunther lembra um pinguim falante – e sabe que, neste momento, ele se esmera em declinar as particularidades da dívida que Fulano contraiu com o banco tal. Sem hesitar, Fulano, empresário do ramo da construção, afirma que entrará em contato com o banco imediatamente.

Ele sabe as consequências de não o fazer. O pinguim ficará horas diante de sua porta, simpaticão, distribuindo cartões de visita aos outros moradores do prédio, a vizinhos de outros prédios, aos porteiros, ao sujeito da banca de jornal – o mundo em que Fulano se move saberá que ele é caloteiro.

Nada como a humilhação pública para pôr a consciência moral nos trilhos. O figurino meio circense, meio expressionismo alemão é o responsável pela fama dessas figuras que há mais de vinte anos atazanam a alma de espertalhões e patifes espanhóis. (De uns tempos para cá, também de seus irmãos portugueses – a empresa abriu filial em Lisboa.)

 

O diretor comercial do El Cobrador del Frac, Juan Carlos Granda, não revela o valor dos serviços prestados pela firma, mas diz que é possível ganhar até 40% em cima das dívidas. Há situações em que é preferível comprar a dívida inteira, mediante um desconto; o crédito devido passa a ser deles. Já chegaram a coletar 700 mil euros de uma só vez.

Numa sala da empresa, entre cabeças empalhadas de ursos, alces e leões, o homem que comanda 350 cobradores não veste fraque, mas um terno impecável. Sobre a mesa de Granda repousam cerca de vinte pastas de processos. São vinte vítimas a serem expostas publicamente nos próximos dias.

Trezentos e cinquenta carros com faixas em preto-e-branco e o logotipo espalhafatoso da firma aguardam o momento de deixar o pátio da sede ou a garagem dos cobradores, que já saem de casa vestidos a caráter. Quando um deles estaciona diante de uma loja ou residência, os madrilenos sabem que vem embaraço dos bons pela frente. “O fraque impõe respeito e nos diferencia”, explica Granda.

O cobrador fardado só entra em ação quando todos os outros meios de persuasão se esgotaram. Se o caloteiro é renitente, fraque nele. A idéia é aplicar a maior pressão psicológica possível. Se o devedor diz estar em reunião, o pinguim sorri e, depois de distribuir cartões à direita e à esquerda, vai atrás dos sócios ou acionistas da empresa. Apresenta-se sempre com educação e, com voz mansa, explica quem é. Depois parte. Se for o caso, volta no dia seguinte. E no outro. Sempre gentil, mas sempre ali, vestido de pinguim, alardeando ao mundo que ali dentro mora ou trabalha um caloteiro. A campana pode durar vários dias, até que a dívida seja paga.

Às vezes se adotam táticas mais agressivas. Um casal demorou a pagar os 75 mil dólares da festa de casamento. O cobrador de fraque não hesitou. Conseguiu a lista de convidados e ligou para cada um deles, dizendo que a fatura teria de ser dividida pelos comensais. Tiro e queda: o casal se horrorizou a tal ponto que deu jeito de pagar na hora.

Em tempos de crise, o negócio vai de vento em popa. As receitas até setembro do ano passado cresceram 45% e, neste ano de bancarrota generalizada, El Cobrador del Frac dará inveja à Apple, à Sony e à GM: o crescimento estimado é de 50%. “Há casos que se resolvem em 48 horas e outros que demoram até dez anos”, conta Granda, entre interrupções de dois celulares que não param de tocar.

Em situações críticas, ele diz, é preciso ser insistente, mas sem jamais desrespeitar o código de conduta. Nada de ameaças físicas, é evidente. Se o devedor ficar agitado, o cobrador deve ir embora. A suavidade funciona tal qual tortura chinesa. Não há como se livrar de um homem de cartola e maletinha que nada faz senão sorrir diante da sua porta.

Juan Carlos Granda se orgulha de portar a tocha de uma nobilíssima tradição. O mais célebre cobrador da história era espanhol: Miguel de Cervantes Saavedra. “O D. Quixote não seria o que é se ele não tivesse trabalhado como arrecadador de impostos”, diz, acrescentando que vem de Cervantes a inspiração para o uniforme dos funcionários: “Ele coletava dívidas vestido de preto e branco.”

A idéia deu tão certo que El Cobrador del Frac agora tem concorrência. O sujeito que atrasou a conta do armazém ou o cliente que não pagou o fornecedor corre o risco de se ver encurralado por El Torero del Moroso [O Toureiro do Inadimplente], por um monge em hábitos do século XVIII do El Monasterio de Cobro [O Mosteiro da Cobrança] ou pelo Zorro, de capa, máscara e espada. Tonto ainda não apareceu, mas, como o negócio está prestes a se expandir nos Estados Unidos, não deve tardar.