
Falcatruas: a facilidade de acesso ao Judiciário abre as portas para todo tipo de fraude, inclusive de esquemas com laboratórios, médicos e advogados, unidos para desviar milhões do SUS CRÉDITO: VÂNIA MIGNONE_2024
O complexo: parte V_no banco dos réus
O número de ações judiciais contra o SUS cresce a cada ano
Allan de Abreu | Edição 221, Fevereiro 2025
O aposentado José Paulo de Souza Magalhães, de 57 anos, não tem dúvidas de que só está vivo por causa de duas decisões judiciais que lhe deram o direito de obter, via Sistema Único de Saúde (SUS), dois medicamentos muito caros, utilizados no tratamento de um câncer na tireoide. “Se fosse depender do fornecimento regular de remédios pelo poder público, eu já estaria morto há muito tempo”, diz.
Pernambucano, Magalhães mudou-se para São José do Rio Preto, no interior paulista, ainda jovem, nos anos 1980, em busca de melhores condições de vida. Em 2013, trabalhava como porteiro no Centro da cidade quando começou a sentir dores nos ombros e no pescoço. Procurou postos de saúde da rede pública local, onde os médicos, com base em exames de raio X, diagnosticaram uma tendinite. Cinco anos depois, como as dores não haviam parado, Magalhães recorreu à Santa Casa de Misericórdia. Uma tomografia constatou neoplasia na tireoide.
O tumor foi quase todo retirado em cirurgia, exceto uma pequena parte muito próxima da veia jugular, que leva o sangue do cérebro para o coração. Para evitar a metástase daquele resquício do câncer, Magalhães tinha que tomar o medicamento vandetanibe, fabricado por três laboratórios, entre eles o AstraZeneca, que deu ao seu produto o nome comercial de Caprelsa. Do contrário, segundo um laudo do médico Gustavo Girotto, havia “risco de progressão de doença e morte”.
Uma caixa de Caprelsa com trinta comprimidos, na dosagem indicada para Magalhães, custava 27 mil reais na época – dezesseis vezes o salário mensal do porteiro, que ganhava 1,7 mil reais (hoje, a caixa do remédio custa cerca de 30 mil reais). Magalhães procurou então a Secretaria de Saúde de São José do Rio Preto, onde foi informado que o Caprelsa não constava na lista de medicamentos fornecidos gratuitamente pelo SUS. “Eu me desesperei, achei que não fosse ter mais jeito”, lembra. “Perdi 30 kg, era só pele e osso. O médico me disse que, se eu não iniciasse o tratamento logo, não sobreviveria mais um ano.” Como último recurso, o porteiro, que se aposentou por causa da doença, procurou o Instituto Nair Pereira, uma ONG de sua cidade que é referência no auxílio jurídico a pessoas com doenças crônicas.
A ONG surgiu em 1993 com o nome de Grupo de Amparo ao Doente de Aids (Gada) para fornecer cuidados básicos e paliativos a soropositivos. À época, São José do Rio Preto vivia uma epidemia da doença – chegou a ser o segundo município do país com a maior incidência de Aids, em números proporcionais. Em 2000, o Instituto Nair Pereira ingressou com os primeiros pedidos na Justiça para garantir dieta e fraldas para soropositivos. Desde então, já entrou com mais de 20 mil ações judiciais, solicitando ao SUS medicamentos, tratamentos e insumos para pacientes com todo tipo de doença rara e crônica. Cerca de 95% dessas ações judiciais foram favoráveis aos pacientes, segundo Rogério Vinícius dos Santos, um dos advogados do instituto. O caso de Magalhães faz parte desse rol de sucesso.
Em março de 2019, a 2ª Vara da Fazenda Pública de São José do Rio Preto determinou que a prefeitura local fornecesse o medicamento regularmente ao porteiro aposentado. O tumor foi controlado, Magalhães ganhou peso, mas dois anos depois, em 2021, o vandetanibe deixou de fazer efeito – e o câncer voltou. Um novo parecer médico recomendou outro medicamento, chamado levomalato de cabozantinibe, que também não está na lista do SUS e custa ainda mais caro: o tratamento de Magalhães ficaria em 142 mil reais mensais. A Justiça foi novamente favorável ao pedido. “Eu sou muito grato ao que o Instituto Nair Pereira fez por mim”, diz Magalhães, que continua em tratamento.
Mas nem tudo são aplausos na história da ONG. Ao longo dos anos 2000, ela ingressou com ações na Justiça para obter da prefeitura e do governo paulista produtos como adoçante (para uma paciente diabética), xampu Johnson’s para um homem que dizia ter “olho seco” (um desconforto que, segundo oftalmologistas, é tratado com colírios e não com xampus) e uma lista de compras que incluía 24 litros de leite da marca Batavo e três copos de requeijão cremoso para uma menina que sofria de osteogênese imperfeita (mais conhecida como “doença dos ossos de vidro”). Tudo com verba do SUS. “Se o médico indicou, é porque há motivo. O doente tem direito, seja Viagra ou remédio para câncer”, disse na época o presidente da ONG, Júlio César Caetano, ao jornal O Estado de S. Paulo.
Essa dualidade no trabalho do Instituto Nair Pereira reflete as contradições da judicialização do SUS – sistema que gasta mais de 200 bilhões por ano em seu funcionamento geral e foi concebido para atender todos os brasileiros, sem exceção. Uma decisão da Justiça, por um lado, pode salvar a vida de pacientes em estado grave e sem condições financeiras para custear tratamentos caros, como o do porteiro Magalhães. Por outro, corrói o erário público – com pedidos às vezes de remédios eficazes, outras vezes de remédios supérfluos e até inócuos –, desorganizando o orçamento do SUS e privilegiando poucas pessoas em detrimento da coletividade.
O número de ações judiciais contra o SUS tem crescido ano a ano. Em 2024, foram 345 666 novas demandas no Judiciário, 67% a mais do que quatro anos antes, quando houve 206 214 ações, de acordo com números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os gastos do poder público com essas demandas também têm aumentado: passaram de 126 milhões de reais em 2020 para 500 milhões de reais em 2023 (o equivalente a 0,27% do orçamento total do SUS para o ano), segundo o Ministério da Saúde. “O problema não é a judicialização em si, já que o direito à saúde é constitucional, mas a avalanche de pedidos, que não só atravanca o Judiciário como impacta o funcionamento do SUS, ao realocar para alguns os poucos recursos que deveriam beneficiar a todos”, afirma Daiane Lira, conselheira do CNJ e coordenadora do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde.
Coordenador do programa de saúde do Instituto de Defesa dos Consumidores, Lucas Andrietta tem outra visão do problema: ele avalia que a busca pelo Judiciário para garantir medicamentos ou tratamentos do SUS decorre diretamente de falhas na saúde pública no país. “A incorporação de novos remédios ou tratamentos é muito lenta e burocrática, o que, em muitos casos, obriga o paciente a recorrer à Justiça”, diz ele. Mesmo no caso de remédios e procedimentos já previstos na própria tabela do SUS, há negligência do poder público em oferecê-los à população. “A judicialização é o sintoma de falhas estruturais. É uma ideia cruel achar que a pessoa que recorre à Justiça estará consumindo recursos que são coletivos. Todas as pessoas têm direito à saúde, e cada paciente tem uma necessidade”, diz Andrietta. “Nossa sociedade é complexa e desigual, com muitas deficiências básicas. Não é à toa que muitos procuram o Judiciário em busca de produtos muito simples, como fraldas geriátricas.”
A base jurídica da judicialização é o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que define a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. As primeiras demandas à Justiça começaram já no início dos anos 1990, sobretudo por parte de soropositivos em busca do fornecimento gratuito dos antirretrovirais (chamados, na época, de “coquetel antiaids”). A pressão judicial fez com que esses medicamentos fossem incorporados à lista de distribuição do SUS, em 1996.
Nos anos 2000, surgiram as distorções nas demandas via Judiciário, motivadas sobretudo pela baixa qualidade dos laudos médicos e pelo desconhecimento técnico dos próprios juízes a respeito da real necessidade dos pedidos. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Secretaria de Estado de Saúde foi obrigada a fornecer protetor solar de uma marca francesa e esmalte de unha antialérgico. Em 2004, um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) constatou que, no ano anterior, a fim de cumprir decisões judiciais, o estado do Rio Grande do Sul gastou na compra de um medicamento para o tratamento de hepatite C a mesma quantia dispendida no programa de farmácia do estado. Devido a casos assim, na virada da década de 2000 para a de 2010, os custos com a judicialização explodiram. Em 2008, os gastos do Ministério da Saúde com demandas judiciais bateram em 70 milhões de reais. Em 2011, já eram 208 milhões, um aumento de 200%.
Na tentativa de criar bases mais objetivas para balizar as decisões judiciais, em 2010 o CNJ definiu os primeiros parâmetros a serem adotados pelos magistrados no julgamento de demandas envolvendo o SUS, como instruir os processos judiciais com relatórios médicos e ouvir os gestores públicos antes de tomar qualquer decisão. O conselho também determinou a criação, em cada tribunal, de um grupo de consultoria técnica – formado por médicos e farmacêuticos –, que recebeu o nome de Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), ao qual os juízes deveriam recorrer no caso de dúvidas técnicas sobre pedidos específicos.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, um dos estados com maior volume de demandas judiciais ao SUS, criou o seu NatJus apenas em 2018. Em 2023, os consultores atenderam 6 mil pedidos de magistrados paulistas. “Todo pedido de medicamento ou tratamento é aflitivo para o juiz, porque é preciso sopesar a real necessidade do paciente com a eficácia médica do que ele pede. Então, ter a possibilidade de se consultar com especialistas é fundamental para uma decisão rápida e justa”, diz a desembargadora Claudia Chamorro Reberte Campaña. Para evitar a judicialização, o TJ paulista, além de adotar em 2022 o NatJus, criou um site em parceria com o governo estadual para a solicitação de medicamentos já incluídos na tabela do SUS por via administrativa.
Ainda assim, a criação de parâmetros técnicos para as decisões judiciais não melhorou a qualidade das sentenças dos magistrados. Em 2015, uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em seis tribunais estaduais constatou que a maior parte das decisões não tomou como referência as normas do CNJ nem recorreu ao NatJus do seu respectivo estado. Os gastos do SUS com processos não pararam de crescer ano a ano, até explodirem em 2015: chegaram a 1 bilhão de reais, cinco vezes mais do que no início daquela década.
Nessa mesma época, espalhou-se o boato de que a fosfoetanolamina seria eficaz no tratamento de qualquer tipo de câncer, o que as pesquisas científicas contestavam. Apesar disso, o Judiciário foi inundado de pedidos de acesso gratuito ao medicamento. Entre 2015 e 2016, foram 13 mil ações judiciais contra o poder público e também contra a USP, que fabricava a substância (conhecida como “pílula do câncer”). Pressionado pelo Congresso, em abril de 2016, o governo federal cometeu um erro: promulgou uma lei que autorizava a produção e a prescrição do medicamento, inclusive pelo SUS. Quatro anos mais tarde, a lei foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O abuso nos pedidos parecia não ter limites. Em São Paulo, o advogado Anderson Vieira Costa ingressou em 2016 com ação na 1ª Vara da Fazenda Pública em nome da sua mulher, Jaqueline Dias Costa, pedindo que a Secretaria da Saúde do estado fornecesse via SUS um medicamento de alto custo (2,5 mil reais mensais, em valores da época) para o tratamento da cachorra da família. Jully, uma golden retriever, tinha anemia hemolítica, doença autoimune em que o próprio organismo destrói os glóbulos vermelhos do sangue. “A impetrante [Jaqueline] e seus familiares têm plena consciência que não se trata de um ser humano, mas é com certeza um integrante da família, tão importante quanto os outros membros desta família”, argumentou o advogado. A Justiça negou o pedido.
Para efeito de comparação, no Reino Unido – cujo Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) inspirou a criação do SUS –, demandas como essas dificilmente seriam ajuizadas. Contra o Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (Nice, na sigla em inglês), responsável pela inclusão de medicamentos e tratamentos no NHS, constam apenas seis ações judiciais nos tribunais superiores britânicos. Todos os pedidos de inclusão de medicamentos ou tratamentos na rede pública de saúde britânica foram negados pela Justiça.
O advogado e pesquisador Peter Roderick, da Universidade Newcastle, na Inglaterra, diz que há dois fatores principais que explicam a discrepância entre a situação brasileira e a britânica. O primeiro é o alto custo para ingressar com uma ação na Justiça do Reino Unido. Segundo é a ausência no país de uma previsão constitucional que defina a saúde como um direito do cidadão (embora existam normas infraconstitucionais que tratam desse direito). Além disso, explica Roderick, o Nice dispõe de ferramentas para reivindicar os serviços do NHS por via administrativa, sem a necessidade de acionar a Justiça.
A facilidade do acesso ao Judiciário no Brasil também abre portas para fraudes de todo tipo – inclusive de esquemas com laboratórios farmacêuticos, médicos, advogados e associações, que se reúnem para enganar a Justiça e desviar milhões dos cofres do SUS. Pesquisadores das universidades de Brasília (UnB) e do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisaram um conjunto de 196 ações judiciais movidas entre 2006 e 2010. Todas pediam um remédio para tratar mucopolissacaridoses – doenças degenerativas raras, causadas pela falta de certas enzimas. A análise constatou que um único advogado era o responsável por um terço das demandas, embora seus clientes estivessem dispersos pelo país. Para os pesquisadores, isso “sugere a existência de algum tipo de rede que coloca em contato pacientes e advogados. […] Uma hipótese que merece ser cogitada é a de que essa rede seria financiada pela indústria farmacêutica ou pelos distribuidores dos medicamentos”.
Em 2007, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo constatou um aumento considerável no número de ações judiciais na região da cidade de Marília. Um terço dos processos solicitava o fornecimento de dois medicamentos: o efalizumabe, do laboratório Merck Serono, e o infliximabe, do Mantecorp, para portadores de psoríase grave, uma doença que produz lesões na pele. Ao analisar os pedidos médicos desses produtos, a Secretaria da Saúde constatou que vários deles eram feitos por um mesmo profissional, o dermatologista Paulo César Ramos, embora as assinaturas de cada receita fossem diferentes (em alguns pedidos, nem havia assinatura).
A secretaria logo suspeitou de fraude e repassou as informações para a Polícia Civil, que instaurou inquérito para apurar o caso. Descobriu-se que quase todas as ações eram protocoladas por dois advogados de uma associação de portadores de vitiligo e psoríase de Marília e que os relatórios médicos tinham todos o mesmo texto (posteriormente, a polícia constatou que parte dos pacientes nem tinha psoríase). Em depoimento, a então presidente da associação, Luci Helena Grassi Santos, disse que em 2006 foi procurada por um representante da Merck Serono, que lhe ofereceu um medicamento novo para a psoríase. Porém, como o produto era caro, seria necessário ingressar na Justiça para que o SUS o custeasse. Segundo a polícia, o médico Paulo César Ramos foi cooptado para prescrever a medicação, e dois advogados pagos pelo laboratório ficaram responsáveis por ingressar com as ações na Justiça. No ano seguinte, mais dois laboratórios, Mantecorp e Wyeth, aderiram ao esquema, para que seus produtos também fossem demandados judicialmente por meio da associação.
Com o passar do tempo, segundo a polícia, Ramos nem se deu mais ao trabalho de produzir e assinar os laudos médicos, função que ficou a cargo dos próprios representantes dos laboratórios. Em 5 de agosto de 2008, em conversa telefônica interceptada com autorização judicial, Dalton Araújo Pereira, do Mantecorp, pediu à secretária do médico 28 folhas de receituários já assinadas. “Você não quer o bloquinho, não?”, perguntou a secretária, que em seguida riu da situação. “Então, é que eu preciso assinadas”, retrucou Pereira. “Umas 30, 32 folhas. Se eu errar alguma coisa aqui, aí fica difícil refazer, entendeu?” A secretária respondeu: “Tudo bem.”
O prejuízo do SUS com os pedidos fraudulentos do grupo foi estimado em 63 milhões de reais, em valores da época. Poucas semanas depois daquele diálogo telefônico, nove pessoas foram presas pela Polícia Civil, entre elas o dermatologista, a presidente da associação de Marília e o representante do Mantecorp. “Pela primeira vez na história, as indústrias farmacêuticas foram postas em público, […] revelando sua real natureza […]: são conglomerados industriais, que vivem e sobrevivem exclusivamente do lucro. É o lucro pelo lucro, para obter mais e mais lucro”, escreveram os procuradores-gerais do estado Luiz Duarte de Oliveira e José Luiz Souza de Moraes. No total, treze pessoas foram condenadas por estelionato e associação criminosa pela 2ª Vara Criminal de Marília, mas absolvidas pelo Tribunal de Justiça, com o argumento de que não havia no Código Penal o crime de “estelionato judicial”.
Fraudes envolvendo a judicialização do SUS alcançaram até o Hospital das Clínicas, em São Paulo, o maior complexo hospitalar da América Latina. Entre 2009 e 2014, segundo o Ministério Público Federal (MPF), o então diretor administrativo do hospital, Waldomiro Pazin, associou-se ao neurologista Erich Talamoni Fonoff e à empresa Dabasons Importação, Exportação e Comércio para fraudar o SUS em pelo menos 4,8 milhões de reais, em valores da época. Fonoff, de acordo com o MPF, induzia portadores do mal de Parkinson a acionarem a Justiça, solicitando o implante, em caráter de urgência, de um marca-passo no cérebro, importado pela Dabasons.
Depois do aval judicial, o dispositivo era adquirido pelo diretor administrativo do hospital via SUS a preços superfaturados – e implantados nos pacientes. Ao todo, o neurologista implantou mais de vinte marca-passos com autorização judicial, que renderam aos envolvidos na fraude, segundo o MPF, cerca de 1,2 milhão de reais em propina, paga pela empresa. (O marca-passo, pelo menos, trouxe benefícios efetivos aos pacientes.) O neurologista Fonoff, o diretor Pazin e dois executivos da empresa Dabasons – o diretor Victor Dabbah e a gerente de vendas Sandra Ferraz – foram denunciados por corrupção, fraude em licitação e associação criminosa. A ação, que tramita em sigilo, ainda não foi julgada.
Os casos são repetitivos. Em 2013, um aumento exagerado de ações em São José dos Campos, no interior de São Paulo, revelou que a Andora, uma associação nacional de “pacientes de doenças raras e crônicas” com sede em Curitiba, pedia na Justiça um remédio para o colesterol fabricado pela americana Aegerion Pharmaceuticals. Era caríssimo: 40 mil reais mensais. A maioria das ações se baseava em laudos de um mesmo médico, José Eduardo Guimarães. Aos investigadores do caso, os pacientes contaram que, ao fim da consulta, eram contatados por um tal de James Ramos de Siqueira, representante comercial da Aegerion, que lhes pedia documentos e dados pessoais – mais tarde, usados para propor a ação judicial. O médico, o representante comercial e o diretor da Andora, Bruno Scarpari Hatschbach, estão sob investigação da Polícia Federal.
No Rio Grande do Sul, a fraude envolvia o serviço de atendimento em casa. As empresas que davam essa assistência em Palmeira das Missões, cidade de 33 mil habitantes no noroeste gaúcho, propagandeavam que os idosos podiam ter cuidados domiciliares “de forma gratuita”. Advogados entravam com ação judicial, ganhavam, e o SUS era forçado a contratar as empresas. Uma investigação descobriu que metade dos pacientes nem precisava de cuidados em casa. Uma interceptação telefônica comprovou que as próprias empresas produziam os laudos médicos – assinados por um médico “parceiro” –, que serviam para embasar os pedidos judiciais. Todos os envolvidos chegaram a ficar cinco dias presos, mas a investigação acabou arquivada a pedido do Ministério Público, para o qual não ficou configurado o crime de estelionato.
As análises dos padrões nos pedidos judiciais, que levantaram as suspeitas nos governos paulista e gaúcho, são exceção no país. Consultado pela piauí via Lei de Acesso à Informação, o próprio Ministério da Saúde admitiu não ter ferramentas para analisar nomes e dados pessoais ou profissionais de pacientes, médicos e advogados, bem como o rol de itens mais demandados do SUS via Judiciário. “Uma tarefa de tal natureza demandaria alocação de considerável contingente de força de trabalho do departamento, o que não disponibilizamos no momento, pois toda a prioridade está em dar tratamento às decisões judiciais. Logo, inexiste um sistema de gestão de processos que possa dispor das informações de modo estratégico e com cruzamentos”, diz Juliana de Oliveira Moreira, coordenadora de Análise e Monitoramento de Demandas Judiciais do ministério.
Em nota, a assessoria do Ministério da Saúde informou que “embora [o Judiciário] seja uma via importante, considerando casos em que o direito à saúde ou as políticas públicas não são acessadas, a judicialização tem gerado deslocamento de grandes recursos de políticas amplas de acesso para cobrir decisões individuais, muitas vezes com terapias sem benefícios clínicos ou segurança comprovados”. Desde 2023, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão que assessora o Ministério da Saúde na inclusão de novas tecnologias no SUS, incorporou 46 novos produtos e tratamentos ao sistema: 15 são indicados para doenças raras, 11 para a área de oncologia, 7 para doenças crônicas, 9 para doenças infecciosas e 4 para outras enfermidades.
A indústria farmacêutica tem outras formas de sangrar os cofres do SUS. Em 2005, três laboratórios – Shire, Genzyme e BioMarin – usaram 42 pacientes, entre eles sete crianças, para testar três medicamentos contra os vários tipos de mucopolissacaridoses, todos causados pela falta de certas enzimas. Essas enfermidades não têm cura e podem acarretar aumento do crânio, deficiência mental, cardiopatia e problemas na visão.
Os resultados dos testes foram positivos, mas, em vez de manter o tratamento mesmo depois do fim das pesquisas, como manda uma resolução do Conselho Nacional de Saúde, os laboratórios suspenderam os medicamentos que vinham fornecendo gratuitamente – e orientaram os pacientes a procurar a Justiça para obtê-los no SUS. Dos 42 pacientes, pelo menos 19 entraram com ação. Todos ganharam. O SUS então passou a arcar com uma despesa, segundo estimativa da época, de mais de 10 milhões de reais.
Para a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP), ao forçar os pacientes a acionarem a Justiça para conseguir os medicamentos, os laboratórios terceirizaram ilegalmente ao SUS uma obrigação que era deles. “Com isso, as três empresas atingiam, a um só tempo, em uma só tacada, dois objetivos ilícitos: livrar-se da obrigação de prestar assistência farmacêutica àqueles que entregaram suas vidas, suas esperanças, às experimentações clínicas bem-sucedidas; e tirar disso lucratividade, através da obrigatoriedade imposta aos poderes públicos de custear a aquisição daquilo que deveria ser de dispensação graciosa”, escreveram os procuradores Luiz Duarte de Oliveira e José Luiz Souza de Moraes em ações judiciais movidas contra os três laboratórios. Nos processos, a PGE-SP pediu ressarcimento aos cofres públicos dos valores gastos com os medicamentos demandados judicialmente. O Tribunal de Justiça negou o pedido, com o argumento de que as empresas não tinham obrigação legal de manter a medicação depois do fim do estudo.
Dois dos três medicamentos utilizados no controle das mucopolissacaridoses nos pacientes-cobaias estiveram no centro de outra polêmica relacionada à judicialização do SUS. Agora, porém, com os laboratórios Genzyme e Shire na condição de vítimas. Em outubro de 2017, o Ministério da Saúde abriu licitação para a compra de cinco medicamentos, com o objetivo de atender a demandas judiciais impetradas por 152 pacientes pelo Brasil. As empresas Global Gestão em Saúde s.a. e Tuttopharma llc, esta última com sede na Flórida, apresentaram os melhores preços e foram declaradas vencedoras dos certames.
Começou aí um enredo que teria desfecho trágico. Já no fim daquele mês, depois das assinaturas dos contratos com as duas empresas, a Genzyme, a Shire e a Multicare Pharma, fabricantes dos medicamentos, informaram ao Ministério da Saúde que a Global não tinha autorização para vender os produtos no Brasil. Mais grave ainda, a Genzyme afirmou que os lotes dos medicamentos que a Global dissera que iria fornecer ao governo federal não correspondiam aos produtos fabricados pelo laboratório.
O então ministro da Saúde, Ricardo Barros, porém, atropelou todo o processo. Apesar do alerta dos laboratórios, ele manteve a compra, chegou a antecipar 19,9 milhões de reais à Global e demitiu um servidor que se recusou a fazer o pagamento. Quando a Global disse que importaria os medicamentos de qualquer jeito, Barros pressionou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para autorizar logo a importação. Chegou até mesmo a sugerir aos pacientes que acionassem a Anvisa na Justiça. A quizumba do ministro retardou tanto a entrega dos remédios (comprados, por fim, de outras empresas) que ao menos catorze pacientes morreram devido à demora.
“As razões da demora na finalização dos processos administrativos de compra dos referidos fármacos – e na entrega dos medicamentos – […] não decorreram de circunstâncias alheias à vontade dos agentes públicos envolvidos, tampouco de caso fortuito ou força maior, mas, sim – e infelizmente – de motivos não republicanos até então inconfessáveis”, escreveu a procuradora do mpf Luciana Loureiro Oliveira, na ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro Barros e cinco servidores do Ministério da Saúde. A procuradora solicitou à Justiça que condenasse os réus a ressarcirem os 19,9 milhões de reais aos cofres públicos. O processo ainda não foi julgado.
Ao analisar o recurso de um morador de Xaxim, no interior catarinense, que solicitava ao SUS o fornecimento de três medicamentos para o controle da epilepsia refratária, o STF decidiu transformar o julgamento em tema de repercussão geral. Ou seja: a decisão passaria a balizar futuras decisões judiciais no país.
Em setembro do ano passado, o STF definiu que o Judiciário só pode determinar o fornecimento de produtos e tratamentos que estejam na lista do SUS. Caso o produto ou tratamento necessário não conste na lista, o paciente precisa obedecer a seis requisitos, entre eles comprovar que não conseguiu obter, pela via administrativa, o medicamento no órgão público responsável; que há evidências científicas sobre a segurança e eficácia do remédio; e que a decisão da Conitec rejeitando a inclusão do produto no SUS foi ilegal ou que há “demora excessiva” na análise da comissão. O STF também determinou a criação pelo governo federal e pelo Judiciário de um banco de dados, acessível à população, com todas as demandas por produtos do SUS, pela via judicial ou administrativa.
“Queremos reduzir a judicialização, mas queremos reduzir com consistência, não deixando as pessoas desprovidas na proteção do seu direito”, disse o ministro do STF Gilmar Mendes à CNN. Para o advogado Rogério Vinícius dos Santos, do Instituto Nair Pereira, contudo, o STF resolveu fechar a porta da Justiça aos pacientes, em vez de discutir melhorias na gestão do SUS. “Com tantos requisitos, somente aqueles que puderem pagar por um bom laudo médico terão alguma chance de sucesso nos pedidos. Como uma pessoa carente vai conseguir comprovar a eficácia científica de um medicamento e a ineficácia de outro?”, questiona.
Rogério Santos não tem dúvida: depois dessa decisão do STF, se o porteiro José Magalhães apresentasse hoje sua demanda por medicamento para tratar do câncer na tireoide, ele dificilmente teria êxito, devido aos obstáculos. “É uma faxina social. O Judiciário limitou-se a resolver o seu próprio problema. Quanto à população sem condições de comprar um medicamento caro, que ela morra.”
A série O complexo conta com o apoio da Umane, uma associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas sobre saúde pública.
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