ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Enigmas da cidade e da vida
Estruturalistas e culturalistas debatem favelas e células-tronco
Roberto Kaz | Edição 20, Maio 2008
Às seis e meia de um começo de noite chuvoso de abril, deu-se início à primeira reunião do ano da Academia Brasileira de Filosofia. Com sede no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, a ABF ocupa um belo casarão de salões azulejados que serviu de residência ao marechal Osório. Num auditório com mais de 100 cadeiras, apenas cinco delas estavam ocupadas. Lado a lado na primeira fileira, acomodavam-se uma arqueóloga, um engenheiro, um sociólogo e um filósofo político, todos à espera do pronunciamento do professor, filósofo e presidente da ABF João Ricardo Moderno.
Antes de entrar nos temas em pauta, Moderno justificou o quórum modesto: “Primeira reunião do ano é sempre devagar. Mas hoje, principalmente, foi um caso especial. Faleceu a esposa de um membro. O Ronaldo Mourão, que é tesoureiro, não atendeu o celular. O Aquiles Côrtes Guimarães, o secretário-geral, ficou de vir, mas ele não costuma sair à noite. O Gilberto Mendonça Telles falou que tinha exame médico. E ainda perdemos o Ubiratan Borges de Macedo no ano passado.”
Parou para ajeitar o microfone, que estava desligado. “Dá para escutar”, disseram, em coro, os quatro espectadores, sentados a menos de 2 metros. “Mas eu estou com a voz fraca, e essa sala é muito grande”, ponderou Moderno, perfeitamente audível.
Foi acudido por um técnico, que se pôs a mexer nos fios. Moderno aproveitou que a sessão ainda não iniciara oficialmente para continuar a explicação: “Evento aberto ao público chega a contar com 300 pessoas. Mas reunião, não, porque os sessenta membros estão espalhados pelo país.” Completou o raciocínio apondo evidências empíricas irrefutáveis: “Os encontros da Academia de Filologia são mais cheios, mas eles só aceitam membros que moram no Rio. Assim, perdem a dimensão nacional.” Respirou fundo e desabafou: “E aqui não tem jetom mensal de 1 mil reais, como na Academia Brasileira de Letras.” Lembrou, por fim, que parte dos membros não comparecera por haver uma reunião simultânea na ABL: “É uma mesa sobre o padre Antônio Vieira. O Carlos Nejar falou que chega depois.”
Com o equipamento de som em ordem, Moderno começou: “Em primeiro lugar, gostaria de avaliar a homenagem que fizemos em março à doutora Ellen Gracie, quando lhe outorgamos o título de doutor honoris causa desta Academia. Na ocasião, contamos com o apoio da Associação dos Notários e Registradores do Rio de Janeiro, à qual gostaria de agradecer. A Folha Dirigida deu uma ampla divulgação, o Jornal do Brasil também. Mas não houve interesse nem da TV Globo nem do jornal O Globo. Acharam que não tinha valor jornalístico.”
O professor Nelson Mello e Souza, sociólogo e vice-reitor cultural da Universidade Estácio de Sá, sugeriu: “Acho que deveríamos mandar uma carta para os outros membros, com fotos.”
A arqueóloga Maria Beltrão – “Estou aqui para mostrar que o homem pré-histórico foi o primeiro filósofo” – interrompeu, justificando-se: “Na minha vida, tive duas gripes. A segunda foi nesse dia.” Mello e Souza complementou: “Os que não puderam vir por razões justificáveis deveriam receber a carta.”
Com o acordo unânime, Moderno passou ao segundo tópico: “No dia 10 de maio, receberemos o vice-presidente José Alencar, que virá acompanhado de vários ministros e especialistas em urbanismo, para discutirmos assuntos ligados ao desemprego e à favelização.” Ao que a arqueóloga Beltrão interveio: “É bom que as pessoas saibam, senhor presidente, que aqui nós pensamos o Brasil.” “Bem lembrado”, respondeu Moderno. “Estamos aqui para mostrar como a filosofia pode melhorar o país. O governo percebeu que, para resolver problemas objetivos, tem que haver por trás um pensamento sofisticado. Já falei que podem contar conosco nesse projeto.”
O engenheiro Danton Voltaire Pereira de Souza, presidente da delegação executiva da Igreja Positivista do Brasil, perguntou qual seria a natureza do projeto. “Num primeiro momento”, esclareceu Moderno, “é apenas um seminário para pensar o caos urbano com um olhar crítico. A Academia aderiu à luta contra o desemprego.”
O filósofo político Francisco Martins de Souza, que se considera discípulo “da corrente culturalista do pensamento brasileiro”, comentou: “Antes, o pleno emprego existia nos regimes totalitários. Agora, existe nos regimes democráticos.”
Foi rebatido pelo positivista Danton Voltaire: “Colega Francisco, permita-me discordar do senhor. O mestre Augusto Comte, meu guru intelectual, dizia que o progresso supõe a liberdade.”
A arqueóloga Beltrão interveio novamente: “Mas o Childe, grande arqueólogo, mostra que a noção de progresso é relativa. Um copo não mudou muito desde o homem pré-histórico para cá. Agora, se pensarmos que a primeira arma era um osso, que progresso representa a bomba de nêutron?”
O sociólogo Mello e Souza aprofundou a questão: “A palavra ‘progresso’ é extremamente traiçoeira. Precisamos saber para quem é e de que maneira se manifesta.”
O presidente interrompeu o debate e retomou a palavra: “Bom, acho que esse assunto já está mais ou menos encaminhado. Agora devemos começar a pensar numa filosofia do desenvolvimento, melhor do que uma ideologia do desenvolvimento, pois os termos ‘ideologia’ e ‘desenvolvimento’ são antagônicos.”
“Muito bem”, congratulou-o Mello e Souza entusiasticamente. “Só se chega a tal apuro da reflexão depois de muito pensamento crítico. O homem não é um ser preconceituoso. É um ser pré-conceituado. Na idade da razão, temos que desconstruir essas idéias.”
Tomando consciência de que estaria ausente nos encontros seguintes, Maria Beltrão houve por bem fazer um parêntese: “Senhor presidente, no dia 19 eu vou a um congresso internacional em Porto Rico. Depois irei para a França, onde lançarei meu livro com prefácio do Lévi-Strauss.”
Seguiu-se um brevíssimo diálogo entre ela e o presidente:
– Você falou lá que é membro da Academia, né? – perguntou Moderno.
– Acho que sim – respondeu a arqueóloga.
– Que bom. Por último, gostaria de anunciar que lançamos um projeto de mecenato para reformar a instituição e internacionalizar a filosofia brasileira. De todas as áreas do nosso conhecimento, a filosofia é a que tem menos divulgação no exterior. Queremos traduzir livros para o alemão, inglês, francês, espanhol e, se possível, japonês.
Houve manifestações de apoio. Moderno prosseguiu: “Gostaria também de introduzir o tema a ser debatido este ano e pedir a todos os membros que preparem um texto ao longo dos próximos meses, com vistas à publicação de um livro. O tópico é ‘Humanismo e totalitarismo: o enigma da vida e do mundo’. Vamos falar de anti-semitismo e terrorismo. Grosso modo, abordaremos o problema da barbárie e da civilização.”
Às sete e meia, Moderno deu por encerrados os trabalhos e anunciou: “Na próxima quinta, como introdução ao tema, trataremos dos problemas das células-tronco e da vida.”
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