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    ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013

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Múmias da classe C

Peças adquiridas por imperadores para o Brasil são de emergentes egípcios

Rafael Cariello | Edição 84, Setembro 2013

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No início de 1826, a nau de bandeira francesa Gustave Annce zarpou de Marselha, no Mediterrâneo, tendo como destino a cidade de Buenos Aires. Entre os passageiros da longa travessia oceânica constava um certo Nicolau Fiengo, comerciante de antiguidades italiano. Um documento da época o descreve como um homem barbado de estatura mediana, cabelos grisalhos e olhos azuis. Fiengo levava consigo cinco múmias e um generoso lote de artefatos egípcios recém-escavados às margens do Nilo. Pretendia vendê-los, com bom lucro, no Atlântico Sul.

Suas expectativas eram razoáveis. Tais objetos haviam se tornado símbolo de status para a nobreza e a nascente burguesia europeia desde a incursão militar de Napoleão Bonaparte no Egito, no final do século XVIII.

O momento escolhido pelo comerciante italiano para viajar à América do Sul, contudo, não era dos melhores. No ano anterior, as Províncias Unidas do Rio da Prata, atual Argentina, haviam iniciado uma guerra contra o Império brasileiro ao tentarem retomar a Província Cisplatina, incorporada em 1821 ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Desde abril de 1825, o imperador mandava reforços para a esquadra brasileira no rio da Prata, na tentativa de bloquear o acesso ao porto de Buenos Aires. Impedida de atracar ali, a nau francesa que transportava Nicolau Fiengo fez meia-volta e, no dia 14 de junho de 1826, veio dar na costa do Rio de Janeiro.

Dois anos depois o Brasil perderia o Uruguai. Mas ganharia as múmias. No Rio, a carga do Gustave Annce foi inspecionada por funcionários da alfândega. Após dois meses de trâmites burocráticos, as peças egípcias foram finalmente liberadas, e Fiengo as expôs no Museu Real. Instado, ao que tudo indica, por José Bonifácio, dom Pedro I adquiriu as múmias no início de 1827.

Segundo o arqueólogo Antonio Brancaglion Jr., as cortes europeias apreciavam múmias e sarcófagos como se estivessem se vendo em um espelho distorcido e envaidecedor. “Era como se dissessem: ‘Olha, somos nós, a realeza, mas no passado.’” É provável que essa tenha sido uma das motivações de dom Pedro I, ao comprá-las, e também tenha contribuído para o interesse de dom Pedro II em egiptologia.

Ocorre que as múmias hoje expostas no Museu Nacional, no Rio, não pertenciam à realeza ou à elite daquela civilização. Sob milenares faixas de linho jazem integrantes da “nova classe média” egípcia, surgida durante o segundo milênio antes de Cristo.

 

No início de agosto, teve lugar no Museu Nacional o 8o Congresso Mundial de Estudos em Múmias. Dezenas de pesquisadores apresentaram seus trabalhos em dois auditórios próximos à entrada da Quinta da Boa Vista, na Zona Norte do Rio.

No segundo dia do encontro, sentado num banco de cimento com vista para as árvores do parque, o paulistano Antonio Brancaglion Jr. falou de sua paixão de infância. Calvo, com cavanhaque grisalho e óculos sem aro, ele é hoje o principal egiptólogo brasileiro, além de coordenador da pós-graduação em arqueologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O processo de mumificação, disse Brancaglion Jr., representava uma garantia de vida após a morte. Os egípcios acreditavam que o indivíduo era composto por seis partes distintas. O corpo físico era a mais frágil delas. Se não fosse preservado, o morto não se recomporia na etapa além-túmulo e deixaria de ter acesso à existência no outro mundo.

Tal método, contudo, era restrito ao rei egípcio – o faraó – e à sua corte até pelo menos o início do segundo milênio antes de Cristo. Foi quando começou um lento processo de “democratização” das técnicas funerárias. “A partir de 1700 a.C., o Egito vive um período de prosperidade”, contou Brancaglion. “As pessoas têm acesso a um número maior de bens, inclusive material funerário. Além disso, depois do ano 1000 a.C., a mumificação fica bem mais barata.”

Na primeira metade do segundo milênio, a prática já se estendia a uma espécie de classe média alta, composta por funcionários do Estado. “Mas a popularização maior só aconteceu no primeiro milênio antes de Cristo”, explicou Liliane Cristina Coelho, doutoranda em história antiga pela Universidade Federal Fluminense. Foi quando a classe C egípcia chegou ao paraíso. “Há documentos que registram brigas entre os mumificadores, nessa época, para ver quem pegava o serviço”, disse ela.

Os próprios egiptólogos usam os termos “democratização” e “classe média” em seus textos, sempre entre aspas. De todo modo os camponeses, que na maior parte da história representavam cerca de 90% da população egípcia, nunca tiveram acesso à técnica que lhes permitiria ir desta para melhor.

O Museu Nacional dispõe hoje de quatro múmias adultas e duas crianças. “São dessa ‘classe média’”, disse Brancaglion Jr. Uma delas, uma cantora sacerdotisa, foi recebida como presente por dom Pedro II em viagem à terra dos faraós. Há outros dois prováveis sacerdotes, do lote comprado pelo primeiro imperador. No livro de divulgação Egito Antigo, o historiador Paul Johnson conta que mesmo o sacerdócio, com o tempo, se democratizou. “Durante o primeiro milênio, os sacerdotes andavam em volta dos templos aos magotes, oferecendo visitas guiadas, contando histórias, vendendo amuletos.”

Talvez os sacerdotes de classe média aprovassem o método de “carnê” usado para a sua compra. Segundo o arqueólogo Moacir Elias Santos, que pesquisou a viagem de Nicolau Fiengo, dom Pedro pagou pelo lote em três prestações, divididas em parcelas que venceram depois de seis, onze e dezoito meses da aquisição.

Santos lembrou que múmias de faraós, as legítimas, só são encontradas no Egito. Mas há peças de representantes de altos estratos sociais espalhadas pela Europa e nos Estados Unidos. As múmias latino-americanas – há exemplares no Uruguai e no Chile – são em geral de classe média. Até os argentinos acabaram tendo a sua pequena coleção de mortos egípcios. “Nem esse consolo temos, então, da Guerra Cisplatina?”, perguntei. Santos protestou. “Ah, não. As múmias da Argentina são mais pobres do que as nossas.”