ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
O abade Abbot
O combate de um cientista fã de filosofia contra uma tradução ruim
Rafael Cariello | Edição 86, Novembro 2013
O físico José Ricardo Torreão trabalha com inteligência artificial. Aos 55 anos, tem o cabelo grisalho e mantém a barba branca cuidadosamente bem aparada. “O que eu faço é tentar imitar, nas máquinas, os processos da visão biológica”, ele explicou, em outubro, num café do bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro. Falava com o sotaque de Pernambuco, onde nasceu. “Já há aplicações da visão artificial. A ideia é tornar as máquinas capazes de reconhecer objetos, manipulá-los, circular nos ambientes.”
Torreão não se ocupa apenas de modelos matemáticos e algoritmos computacionais. Nas horas vagas, cultiva o hábito de ler obras de filosofia. Foi esse interesse diletante que, por acaso, o levou a se lançar numa cruzada em defesa dos direitos dos leitores, dos consumidores de livros, no Brasil.
Em 27 de dezembro do ano passado, o físico perambulava por um shopping do Recife, onde passava as festas de fim de ano, quando deparou com uma livraria. Foi até a seção de sua predileção e retirou da estante uma obra do escritor Aldous Huxley: A Filosofia Perene, publicada pela editora Globo. Nela, o autor inglês se ocupa da busca de um possível “cerne comum” a todas as religiões e crenças espirituais. São páginas em que Huxley apresenta uma “longa e profunda reflexão espiritual” na qual Deus, contudo, pouco aparece, segundo a nota introdutória do filósofo Renato Janine Ribeiro.
“É muito bom o prefácio”, avaliou Torreão. A apresentação feita por Janine Ribeiro contribuiu para a decisão de comprar a obra. “Se você fica no prefácio, pensa: essa coisa está de qualidade.”
Só que não estava. Bastaram algumas páginas de leitura para que o físico começasse a desconfiar da tradução que tinha em mãos. “O texto falava numa certa Face de Deus. Assim, com iniciais em maiúsculas. O que é isso, na filosofia oriental? Aí mencionava um tal de Abbot John Chapman. Parecia um nome próprio, Abbot pra lá, Abbot pra cá. Você vai ao Google e descobre que não tem nenhum Abbot John Chapman. Há um abade John Chapman. Abbot é abade, em inglês.”
Com a pulga atrás da orelha, Torreão resolveu adquirir o texto original, baixado em versão eletrônica. Passou a cotejar os dois livros. Logo descobriu que a tal “Face de Deus”, da tradução para o português, era Godhead, em inglês. “Em qualquer dicionário aparece que isso significa ‘divindade’”, ele disse. “A palavra tem a ver com godhood. Divindade. E o cara traduz por face de Deus.”
Havia outros erros. O que era para ser “pavoroso” (appalling, no original) virou o oposto, “atraente” (talvez por uma confusão com appealing). Um ato de abstinência (fast) virou uma “amarra”, talvez por confusão com fasten.
Indignado, o físico procurou a editora. Diz ter recebido uma resposta protocolar. Recorreu então ao Procon. Queria de volta os 45 reais que gastara com o livro. O que se seguiu, segundo ele, “foi algo que o ministro Joaquim Barbosa não teria nenhum prurido de classificar como uma chicana”.
Na audiência de conciliação, a representante da editora Globo disse que, sim, poderia devolver ao físico o valor do livro. Mas só dali a 45 dias. Torreão não quis acordo, e passou a pedir mais. “Eu queria é que a editora reconhecesse o seu erro”, disse o físico, balançando o livro comprado no Recife. “Isso é lesa-consumidor. Você não pode botar pra vender e ganhar dinheiro com uma obra desse nível. Já peguei muita tradução ruim por aí. Mas isso aqui é um pouco demais. É muito grave.”
Fez uma pausa, pousou o volume na mesa, e acrescentou: “Quando entrei no Procon, pedi o valor do livro. Mas o que eu quero, o que eu acho justo, é o seguinte: é tirar isso do mercado! E fazer um recall. Você comprou, vai ter o seu dinheiro de volta ou vai poder escolher um outro livro da editora Globo.”
O físico foi adiante e sugeriu à editora que recolhesse a obra. Disse não ter obtido resposta. Fez mais. “Entrei no Ministério Público estadual com uma representação contra a Globo. A resposta que obtive é a de que o meu pedido seria indeferido porque sempre, em tradução, haveria um elemento subjetivo.”
Poderia Torreão, um cidadão sempre zeloso de seus direitos, que já brigou com empresas de telefonia celular, luz e gás, ter exagerado? Não passava ele de um frio cientista, que desprezava o “elemento subjetivo” da tradução?
Ao Procon, a editora fez a defesa do tradutor da obra, Geraldo Galvão Ferraz. Argumentou que o profissional era “filho da militante comunista e escritora Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, e do jornalista Geraldo Ferraz, dois representantes da movimentação política da primeira metade do século XX”. Torreão desprezou tais elementos subjetivos e disse não entender o que isso tudo tinha a ver com o trabalho realizado pelo tradutor.
Nascido em 1941, com passagens por diversos órgãos de imprensa, Galvão Ferraz morreu no início deste ano. Além de trabalhar como jornalista, verteu várias obras do inglês para o português. A pedido de piauí, um tradutor avaliou um desses trabalhos, o romance O Senhor das Moscas, de William Golding. Achou que Galvão Ferraz escrevia bem e se saía “muito bem” nas descrições de paisagens. Mas, acrescentou, “ele entendeu muita coisa errada” no livro, e deu a impressão de não ir com frequência ao dicionário.
Procurada, a editora Globo não quis se manifestar sobre as reivindicações do físico. A empresa publicará, nos próximos anos, novas edições das obras de Aldous Huxley. Muitos dos livros terão a tradução revista. No caso de A Filosofia Perene, ela será inteiramente refeita.
Questionei José Ricardo Torreão sobre esse reconhecimento tácito de responsabilidade por parte da editora. Na mensagem que mandou, ele não se mostrou muito satisfeito. Too little, too late, escreveu. Horas depois, acrescentou: “Você acha que a editora Globo traduziria too little, too late como ‘também pequeno, também tarde’?”
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