
Estratégia: tendemos a só ver a excelência do SUS nos tratamentos de alta complexidade, mas muitas das medidas de maior impacto na saúde pública são atitudes e procedimentos simples CRÉDITO: VÂNIA MIGNONE_2024
O complexo: parte final_A tecnologia e o dilema
O SUS já se provou capaz de oferecer terapias de alta complexidade, mas enfrenta o desafio: como universalizar esses procedimentos?
Bernardo Esteves | Edição 222, Março 2025
Grávida de vinte semanas, a assistente administrativa Josilene Januário Soares queria fazer um ultrassom morfológico, que revelaria o sexo de seu terceiro filho. Como não tinha convênio médico, ela tentou agendar o exame pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. Não conseguiu. Teve que fazê-lo em uma clínica particular em Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde mora há mais de três décadas. O exame, feito em novembro de 2017, mostrou que Soares estava esperando um menino. Revelou também que Matheus – o nome que ela escolheu para o filho – tinha uma malformação na medula que poderia comprometer o movimento de suas pernas.
A mielomeningocele acontece quando o tubo neural do feto não se fecha da forma esperada e a medula espinhal fica exposta. A malformação pode trazer complicações motoras e neurológicas para o bebê – no caso de Matheus, a perna esquerda parecia não estar se mexendo durante o ultrassom. Se a malformação for diagnosticada cedo o bastante, é possível fazer uma cirurgia no feto – ainda dentro do útero – para fechar o tubo neural e proteger a medula. É uma neurocirurgia de alta complexidade que envolve uma numerosa equipe multidisciplinar. Pode custar mais de 250 mil reais se feita em um hospital particular.
Para Josilene Soares, a janela em que seria possível realizar a intervenção se fecharia dali a poucas semanas. Ela recorreu outra vez ao SUS. E, desta vez, conseguiu: sem desembolsar um único centavo, foi a primeira gestante a passar pela cirurgia intrauterina no Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IEC) – um hospital público no Rio de Janeiro –, feita com a participação de médicos da Maternidade-Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Matheus foi operado em 19 de dezembro, num procedimento transmitido ao vivo no auditório do IEC para um público de médicos e residentes curiosos com a cirurgia inédita. Josilene Soares recebeu alta a tempo de passar o Natal em casa. A boa notícia veio num exame de ultrassom feito duas semanas depois: “Matheus deu um pinote com as duas pernas”, recordou a mãe numa entrevista por vídeo à piauí, em fevereiro passado. “Isso dava a possibilidade de que meu filho pudesse andar.” Hoje, Matheus tem 7 anos, consegue andar apoiando-se em barras ou com a ajuda do andador, embora também use cadeira de rodas. Se não tivesse sido operado, perderia o movimento das pernas e nem conseguiria se sustentar em pé.
O menino nasceu com hidrocefalia, o acúmulo de um líquido chamado liquor no cérebro, que é uma complicação comum em pacientes com a sua doença. Recebeu o tratamento mais comum para casos assim: a instalação de uma válvula que drena o líquido e o leva para o abdome. A manutenção do equipamento também é feita pelo SUS em consultas periódicas no IEC. Mas o SUS não banca todas as atividades complementares que Soares oferece ao filho – como sessões periódicas de hidroterapia. Ela só consegue pagar por essas atividades porque recebe o Benefício de Prestação Continuada, um auxílio do INSS para famílias de baixa renda que têm pessoas com deficiência.
No dia em que recebeu o diagnóstico da malformação de seu filho, a gestante quis saber do radiologista o que isso significava. A resposta a aterrorizou: “Ele não vai andar, não vai falar, não vai fazer nada.” O profissional estava estigmatizando a doença e exagerando as sequelas. O próprio Matheus trataria de desmentir o médico depois de nascer. Hoje, Soares evoca o episódio com bom humor, mas o tom catastrófico deixou um trauma duradouro. “Sou doida para levar o Matheus para ele ver como esse menino fala”, disse a mãe.
Ao final da entrevista, Soares fez questão de mostrar Matheus, um menino de cabelo arrepiado e sorriso fácil que estava em cima de uma cama, batendo as pernas freneticamente. “Mostra para ele que você já anda”, a mãe disse ao filho. O menino desceu da cama e começou a contorná-la, apoiado no colchão. Ele contou que estava de férias e sentia saudades da escola. “Mas ele não gosta de estudar”, reclamou a mãe. Ao que Matheus respondeu de imediato: “Eu gosto é de fazer bagunça.”
Em seu gabinete no Instituto Estadual do Cérebro, o neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho mostrou à piauí alguns vídeos de crianças pequenas caminhando animadas. Todas tinham tido mielomeningocele durante a gestação e foram operadas ainda no útero. A cirurgia intrauterina já virou parte da rotina do instituto público. Depois de Matheus, cerca de quarenta crianças passaram pelo mesmo procedimento, segundo os cálculos do diretor. Niemeyer Filho explicou que os problemas motores associados a essa malformação acontecem porque, durante a gestação, a medula fica em contato com o líquido amniótico, que envolve o feto. A depender das características da lesão da medula, as crianças estão condenadas a nascer paraplégicas. “Mas se forem operadas até o quinto mês de gravidez, elas têm 50% de chance de evitar isso, o que faz uma diferença enorme.”
Niemeyer Filho explicou que a ideia da criação do instituto – batizado em homenagem a seu pai, Paulo Niemeyer (1914-2004), pioneiro da neurocirurgia no Brasil – era ter um centro de referência para a realização de procedimentos neurológicos de alta complexidade na rede pública estadual de saúde. As tecnologias médicas têm se tornado extremamente custosas, e todo dia surge um aparelho novo. “Não há nada que seja barato nos equipamentos de neurocirurgia, tampouco é possível equipar todos os hospitais com esses aparelhos”, disse Niemeyer Filho. “Do ponto de vista econômico fazia sentido concentrar essa tecnologia num único centro.” A iniciativa se inspirou em exemplos como o Instituto do Coração, em São Paulo.
Inaugurado em 2013, o IEC passou por uma ampliação dez anos depois, com a incorporação de um novo prédio. Agora, conta com 110 leitos, metade dos quais dedicados à terapia intensiva. “Estamos fazendo em torno de dez cirurgias por dia, ou mais de 2 mil por ano”, disse o médico. “A grande maioria são cirurgias complexas, e todas são feitas exclusivamente pelo SUS.”
O instituto dispõe de cinco salas de cirurgia equipadas com aparelhos de ressonância magnética e microscópios alemães comprados com recursos públicos. Os aparelhos custam cerca de 1 milhão de dólares cada e facilitam muito o trabalho dos neurocirurgiões. “Eles ampliam muitas vezes o campo de visão e têm uma luminosidade especial para você operar em profundidade”, explicou o médico, enquanto mostrava slides de cirurgias feitas com o equipamento. O microscópio é usado, por exemplo, em operações para tratar aneurismas, malformações das artérias que podem ser fatais em caso de ruptura, mas também para a remoção de tumores. “Isso aqui é um tumor da glândula pineal, que fica numa região extremamente profunda, bem no centro do cérebro”, disse o neurocirurgião, mostrando uma imagem ampliada com muita nitidez. “A gente jamais teria essa visão operando sem o microscópio; parece que ela está na sua mão.”
O IEC faz ainda cirurgias para tratar epilepsia e o mal de Parkinson, com a instalação de uma espécie de marca-passo no cérebro que contém o tremor dos pacientes. Foi lá também que se fez a separação de craniópagos, gêmeos que nasceram unidos pela cabeça, o que exigiu nada menos que nove cirurgias. “Eles ficaram internados aqui por mais de dois anos, porque entre uma cirurgia e outra era preciso esperar que se adaptassem à separação e repetissem todos os exames para poder fazer a próxima.”
O instituto comandado por Niemeyer Filho foi construído com recursos estaduais do governo fluminense e é administrado por uma organização social contratada pelo estado. Seus pacientes são selecionados pelo sistema de regulação gerenciado pela Secretaria Estadual de Saúde. A maior parte vem das cidades do Rio de Janeiro, mas há também casos de pacientes de outros estados – como os gêmeos unidos pelo crânio, que vieram de Roraima.
Como a realidade cotidiana da grande maioria dos usuários do SUS continua sendo a das filas intermináveis e o difícil acesso a procedimentos complexos, nem sempre é possível diagnosticar a mielomeningocele a tempo. Na verdade, o caso de Matheus é uma exceção. Quando o diagnóstico demora demais, é preciso operar o bebê logo depois do nascimento para poupá-lo de complicações mais severas. Também nesta situação o SUS tem uma alternativa. O Instituto Fernandes Figueira (IFF), unidade da Fiocruz no Rio de Janeiro dedicada à saúde da mulher, da criança e do adolescente, oferece o serviço – que também é uma intervenção de alta complexidade. “O bebê nasce, segue para a uti Neonatal, é preparado para a operação e no mesmo dia vai para o centro cirúrgico pediátrico”, diz a neurocirurgiã Tatiana Protzenko, que costuma conduzir o procedimento no IFF, instituição onde é feita mais da metade dos partos de crianças com essa malformação na coluna.
O trabalho começa com o esclarecimento às gestantes sobre o que é aquela malformação e como vai ser a vida da criança. Muitas mães chegam apavoradas com o que leram na internet ou ouviram sobre as complicações da doença. Tatiana Protzenko conta a elas que nem todas as crianças têm problemas motores ou cognitivos, e explica que algumas nascem com hidrocefalia, que é tratada com válvulas. Podem ter também a bexiga neurogênica, que leva à perda involuntária de urina, uma disfunção que se contorna com o uso de uma sonda, que em alguns casos pode ser manuseada pela própria criança.
A neurocirurgiã contou que, recentemente, durante o atendimento periódico de crianças com mielomeningocele, ela chamou em seu consultório uma paciente. “Entrou uma moça bonita e maquiada, com um vestido branco de crochê e uma sandalinha rasteira”, descreveu Protzenko. Ela achou que fosse a mãe, e perguntou onde estava a criança. A moça esclareceu que a paciente era ela mesma. A neurocirurgiã foi checar o prontuário e viu que a menina tinha feito 18 anos, e aquela era sua última consulta no IFF. Ela disse à médica que não tinha nascido com hidrocefalia e, portanto, não usava válvula. E, mesmo que tivesse bexiga neurogênica, tampouco precisava usar fralda, pois operava ela mesma a sonda que esvaziava a bexiga. Protzenko quis saber o que ela queria fazer da vida. A moça respondeu: “Estou prestando vestibular para direito.”
Os dois institutos – o IEC e IFF – são exemplos de excelência do SUS. A moça do vestido branco de crochê teve um atendimento de alta qualidade. Josilene Soares, mesmo que tivesse uma vida abastada, não poderia ter dado a Matheus um tratamento melhor do que aquele que recebeu de graça, provando que o SUS é capaz de cumprir a vocação proposta pela Constituição de 1988 de garantir a todos os cidadãos o direito à saúde, inclusive se eles precisarem de procedimentos dispendiosos e sofisticados. Mas essa é a metade cheia do copo. A metade vazia é que seus serviços não conseguem ser universalizados, dadas as enormes dificuldades de replicar o atendimento em escala nacional pelo sistema público.
Quando dá para universalizar, o efeito é ainda mais notável.
O Sistema Nacional de Transplantes, que integra o SUS, é o maior programa público do gênero do mundo. Em 2023, foram feitos 29,2 mil transplantes no Brasil, sendo que quase 9 em 10 foram bancados pela rede pública. As filas são organizadas por estado e os receptores são cadastrados em ordem cronológica, mas prioridades podem ser estabelecidas em função da gravidade do caso ou da proximidade geográfica entre doador e receptor. As filas são fiscalizadas pelo Sistema Nacional de Transplantes e valem inclusive para os pacientes que fizerem a cirurgia na rede particular.
No caso do transplante de rim, o perfil genético do paciente também é levado em conta. “Quando aparece um doador, a Secretaria de Saúde vê, dentre aqueles que estão na fila, qual tem mais compatibilidade genética com o órgão doado e avisa o centro onde o paciente está matriculado para transplante e vai ser submetido à operação”, disse à piauí o nefrologista José Medina, especialista em transplante de rim da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Medina é também um dos criadores do Hospital do Rim, na capital paulista, inaugurado em 1998 e mantido por uma organização filantrópica, a Fundação Oswaldo Ramos. Em 2022, o hospital fez 957 transplantes de rim, o que equivale a 18% das operações desse tipo feitas em todo o país naquele ano. “É o centro que mais faz transplantes de rim no mundo inteiro”, disse o nefrologista, lembrando que 80% dos pacientes são atendidos pelo SUS. Além disso, o hospital ajudou a formar centenas de especialistas que hoje estão fazendo transplantes de rim em todo o Brasil.
Para Medina, no caso dos transplantes, a complexidade maior não reside tanto na cirurgia propriamente dita, mas no desafio logístico de organizar a operação, quando cada minuto vale muito para a sobrevivência do paciente. “Há uma série de questões que envolvem o sistema todo até chegar à cirurgia”, disse. “Tem o processo de seleção imunológica do paciente, a busca do órgão de doador falecido, o sistema de captação de órgãos, o diagnóstico de morte encefálica, a abordagem da família”, enumerou.
Além disso, existe o complexo processo de acompanhamento do paciente depois do transplante. “Ele precisa tomar remédio a vida toda para evitar que o órgão seja rejeitado, e são remédios imunossupressores que abaixam a resistência e aumentam o risco de o paciente ter infecção ou adquirir outra doença”, continuou Medina. O nefrologista observou que o SUS fornece a medicação para o resto da vida do paciente, o que não acontece em todos os países. Medina compara um transplante a um casamento. “Você cuida do paciente a vida toda, quer ele seja do SUS, quer tenha convênio.”
O desafio de incorporar novas terapias cada vez mais custosas ao SUS – e torná-las universais – é mais crítico no caso do combate ao câncer. Na verdade, combate aos cânceres, já que usamos a mesma palavra para designar um conjunto de centenas de doenças que, embora tenham em comum a proliferação descontrolada das células, podem ter características muito diferentes. “Hoje em dia você não identifica mais o câncer pelo órgão afetado, mas sim pela molécula ou proteína do tumor”, disse o médico Luiz Antonio Santini, ex-diretor do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Isso significa que você vai ter tratamentos cada vez mais personalizados”, continuou o médico, que foi também um dos articuladores da criação do sistema público de saúde brasileiro, história que ele contou no livro SUS: uma biografia (Record), escrito a quatro mãos com o historiador Clóvis Bulcão.
O combate ao câncer costumava se estruturar em torno de três abordagens: a cirurgia para remoção do tumor, a radioterapia ou a quimioterapia para matar suas células. Até a virada do século, porém, os tratamentos eram muito radicais. Havia opções limitadas de quimioterápicos, e o tratamento frequentemente matava também células saudáveis de outros tecidos. “A partir dos anos 2000 houve uma verdadeira revolução nesse processo”, explicou Santini. “Se até então a ideia era usar a dose máxima de medicamentos que o paciente suportasse, hoje a ideia é utilizar o mínimo específico para cada tipo de tumor.”
Dentre as novidades dessa revolução, está o desenvolvimento daquilo que ficou conhecido como medicina personalizada ou de precisão. Nessa abordagem, o médico receita tratamentos talhados sob medida para o perfil genético do paciente e do tipo de tumor, levando em conta a suscetibilidade da pessoa às diferentes alternativas terapêuticas. O arsenal dos oncologistas cresceu também com o desenvolvimento de uma série de tratamentos conhecidos como imunoterapia, que estimulam as células de defesa do paciente a atacar o tumor. Dentre as possibilidades abertas nesse campo, está a terapia gênica, que altera os genes das células de defesa, de modo a torná-las mais letais contra o câncer. Essas novidades estão aumentando a sobrevida dos pacientes, mas na maioria dos casos têm custos muito elevados, o que dificulta sua incorporação ao SUS.
A partir dos anos 2010, essas tecnologias passaram a estar disponíveis no Brasil pelo sistema de saúde suplementar, nome que se dá à rede privada de saúde, acessível por meio de planos e convênios. “Nesse momento começa um grande descolamento tecnológico entre o que é oferecido para diagnóstico e tratamento de câncer no SUS frente à saúde suplementar”, disse o oncologista Carlos Gil Ferreira, presidente do Instituto Oncoclínicas. “Esse descolamento se acentuou muito de 2018 para cá, principalmente por causa do advento da imunoterapia.”
No tratamento do câncer de pulmão, sua especialidade, Ferreira estima que o gap tecnológico entre o SUS e a rede privada seja de quinze anos. Em outras palavras, só agora os pacientes da rede pública estão tendo acesso a tratamentos que, quinze anos atrás, já estavam disponíveis para os clientes dos melhores planos de saúde. Ferreira é coautor de um estudo que analisou os aparelhos de radioterapia usados no SUS e concluiu que são obsoletos na maioria e insuficientes para atender toda a população.
O oncologista notou que os procedimentos mais modernos não estão totalmente ausentes do sistema público: alguns deles podem ser encontrados em instituições de excelência como o Inca, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) ou o Hospital de Amor (antigo Hospital de Câncer de Barretos), no interior paulista. Mas estão longe de ser representativos do atendimento que um paciente de câncer recebe na maioria dos hospitais públicos. Fora das instituições de excelência, os pacientes dificilmente conseguirão fazer, por exemplo, os testes genéticos dos tumores que identificam alvos para um tratamento direcionado. “O acesso dos pacientes do SUS à medicina de precisão é limitado, porque eles não têm acesso ao teste ou à droga para a qual o teste vai direcionar”, disse Ferreira.
Sediado num prédio no Centro do Rio de Janeiro, o Inca é um dos centros de referência do SUS para o tratamento de câncer. É uma instituição federal vinculada ao Ministério da Saúde que tem ainda a função de formular a política nacional de prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer, além de avaliar novas terapias que serão adotadas pelo SUS, como explicou o diretor do Inca, o oncologista Roberto de Almeida Gil, em seu gabinete, numa tarde de janeiro. Para isso, os especialistas medem aquilo que chamam de custo-efetividade dos tratamentos, calculando quanto custarão e que benefícios podem trazer aos pacientes.
Roberto Gil deu o exemplo das imunoterapias, indicadas para mais de cinquenta tipos de tumores, mas cujo custo chega a dezenas ou centenas de milhares de reais por paciente. Nesse caso, o que o instituto faz é tentar definir prioridades para a indicação da modalidade de terapia que será adotada pelo serviço público. “A função do Inca não é oferecer aos pacientes tratamentos que eles não encontram em outros centros do setor público, mas ser um validador das tecnologias que efetivamente devem ser incorporadas ao SUS”, disse Roberto Gil.
O Inca foi pioneiro na adoção da cirurgia robótica para tratamento de câncer e continua integrando à sua rotina novas técnicas cirúrgicas que garantem mais qualidade de vida aos pacientes depois da intervenção para a retirada do tumor. Dentre outros tratamentos de ponta incorporados ao arsenal terapêutico do instituto, estão procedimentos da chamada radiologia intervencionista, que combate o tumor de forma mais precisa, menos invasiva e com menos efeitos colaterais. “Mas não adianta fazer só no Inca, o desafio é estender para o resto da rede”, afirmou Roberto Gil. Oferecer um tratamento que só atende a poucas pessoas fere a universalidade, a integralidade e a equidade, que são os princípios do SUS. “É claro que salvar uma pessoa é importante, mas você só será transformador se atender a todas as pessoas que têm aquela doença.”
Uma das formas que o Inca tem de avaliar novas terapias é participando dos ensaios clínicos para testar sua segurança e eficácia – os resultados desses testes é que vão definir se eles serão aprovados pelas agências regulatórias para uso oncológico, pré-requisito para que sejam incorporados ao SUS. No âmbito de um desses ensaios clínicos, o instituto está se preparando para testar um dos mais novos e badalados tratamentos contra o câncer: a terapia com células CAR-T.
Nessa terapia, células de defesa do paciente de câncer são tiradas de seu sangue e geneticamente modificadas fora do corpo. Depois de receberem um gene que as ensina a reconhecer as células tumorais que precisam atacar, as células de defesa são reintroduzidas no paciente (CAR-T é a sigla em inglês que designa essa modificação genética). “A gente leva essas células para o laboratório e insere nelas um gene que vai fazer com que reconheçam e eliminem o tumor”, explicou o biomédico Martin Bonamino, que coordena o ensaio clínico no Inca. Bonamino disse que as células passam a ter em sua membrana uma proteína capaz de identificar o alvo – a célula tumoral. “É como uma chave e fechadura”, comparou o pesquisador. “Na hora que encaixar, ela vai matar a célula que tiver o alvo.”
A terapia com células CAR-T tem mostrado resultados promissores em outros testes, mas seu alto custo é um entrave para a adoção mais ampla. O tratamento pode chegar à casa de 1 milhão de dólares (ou quase 6 milhões de reais) por paciente. Na abordagem a ser testada no Inca, porém, a modificação genética das células será feita no próprio instituto, com tecnologia transferida pelo Hospital da Criança da Filadélfia, nos Estados Unidos, parceiro da instituição brasileira nesse projeto. “A ideia é reduzir em pelo menos dez vezes o custo do tratamento para cada paciente”, disse Bonamino. “Essa é a conta que todo mundo está fazendo para tentar oferecer isso no sistema público.”
O tratamento será testado em 32 crianças e jovens de até 20 anos que têm uma forma aguda de leucemia, incapaz de responder a outras terapias. Os pesquisadores estão aguardando o sinal verde da Anvisa para seguir com os testes, e a expectativa é que tenha início no segundo semestre deste ano. O projeto vem se somar a outra iniciativa para testar a terapia com células CAR-T, também no âmbito do SUS, feita por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
Um levantamento feito pelo Observatório de Oncologia calculou o custo direto do tratamento do câncer para os cofres públicos – uma conta que deixa de fora os gastos com ações preventivas. Em 2022, diz o estudo, o SUS gastou 3,9 bilhões de reais nessas ações, sendo mais de três quartos para tratamento ambulatorial e quase um quarto com cirurgias e internações. Mesmo que a terapia gênica com células CAR-T viesse a ser incorporada ao SUS com a redução de custos projetada pelos pesquisadores, o impacto orçamentário da sua adoção não seria desprezível. E aí está o maior dilema para a incorporação de novas terapias ao SUS: a vocação do sistema de oferecer assistência universal aos cidadãos se depara com uma realidade de recursos limitados e incapazes de bancar os melhores tratamentos para todos.
Os gastos do SUS com o câncer tendem a aumentar, pois a incidência da doença vem crescendo com o envelhecimento da população. Para complicar, o custo dos procedimentos também vem encarecendo, como mostrou o levantamento. De 2018 a 2022, o valor médio gasto pelo SUS com cada procedimento aumentou 400%, fenômeno que os autores do estudo atribuem à descoberta de novos medicamentos e ao uso cada vez mais frequente das novas tecnologias disponíveis.
Roberto Gil chamou a atenção para outro fator importante. “Na medicina, nada é substituível, é tudo acumulativo”, afirmou o oncologista. “O ultrassom não acabou com o raio X, e depois vieram a ressonância, a tomografia e agora o PET-scan, mas não abandonamos as outras.” Diante dessa profusão de opções, os gestores do sistema público precisam saber quando recorrer a qual ferramenta. Roberto Gil costuma receber pacientes que chegam com PET-scans que ele considera desnecessários, pois não trazem informações relevantes além das que já constavam na tomografia. “O PET-scan talvez mostre que o paciente tem dez metástases, e não oito, mas isso não muda nada: o tratamento é o mesmo, o prognóstico é o mesmo.”
O SUS vive um dilema bastante claro: deve gastar milhões de reais de um caixa sempre estrangulado para bancar o uso de tecnologias avançadíssimas que beneficiam pacientes com doenças raras? Ou deve se empenhar em investir em iniciativas que beneficiam milhões de pacientes e nem precisam de tecnologias tão dispendiosas? Para aqueles cuja vida depende de um tratamento caríssimo a pergunta soa cruel, mas esse é um dilema que todos os sistemas públicos de saúde vêm enfrentando com a aceleração do avanço da tecnologia na medicina.
No Brasil, a decisão sobre o que será incorporado ao arsenal terapêutico do SUS é missão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), criada em 2011. Seus membros são indicados por quinze instituições que atuam na saúde pública, incluindo diferentes departamentos do Ministério da Saúde e associações que reúnem secretarias estaduais e municipais de saúde. A Conitec analisa os pedidos levando em conta as evidências científicas sobre a eficácia e segurança do tratamento, mas também faz uma avaliação econômica dos seus custos e benefícios em comparação com as tecnologias que já fazem parte do SUS. A piauí quis saber como a Conitec se pauta para conciliar o direito universal à saúde e as limitações orçamentárias do sistema de saúde, mas não recebeu resposta.
Em 2022, a Conitec decidiu incorporar ao SUS o Zolgensma, que é usado para o tratamento da atrofia muscular espinhal de tipo 1 e tem a fama de ser o medicamento mais caro do mundo, com preço de tabela de quase 12 milhões de reais por paciente. Essa doença genética degenerativa rara afeta 1 em cada 10 mil nascidos vivos. Acontece quando a criança nasce com mutações no gene que produz a proteína responsável por proteger os neurônios motores. Isso impede o envio de impulsos nervosos da coluna vertebral para os músculos e pode afetar a locomoção e até a respiração do paciente. O medicamento tem a finalidade de estabilizar a progressão da doença, que é incurável.
O Zolgensma é uma forma de terapia gênica, assim como o tratamento com células CAR-T. Uma dose única do medicamento é aplicada por via intravenosa no paciente, injetando nele cápsulas de vírus que carregam cópias funcionais do gene defeituoso. A Conitec avaliou que o remédio teve bons resultados, com impacto positivo na respiração, mastigação, movimentos da língua, deglutição, reflexo de vômito e articulação da fala dos pacientes. Indicou o tratamento para bebês de até 6 meses que não precisam de ventilação mecânica invasiva por mais de dezesseis horas por dia.
A ideia da incorporação do Zolgensma ao SUS inspira pânico no médico José Carvalho de Noronha, que foi secretário de Saúde do Rio de Janeiro no governo de Moreira Franco e integrou o primeiro escalão do Ministério da Saúde no segundo governo Lula. As inovações na tecnologia médica só lhe interessam se for possível universalizá-las. Para Noronha, a excelência do SUS não está em distribuir remédios caríssimos para um punhado de pacientes. “Será excelência se eu conseguir ampliar o alcance das novas tecnologias e resolver problemas críticos de saúde”, disse o médico.
Noronha lembrou-se de um conto distópico de ficção científica do cineasta Cacá Diegues, recentemente falecido, publicado pela piauí (Seleção artificial, piauí_26, novembro de 2008). No conto, os avanços prodigiosos – mas também caríssimos – da medicina acabam por criar uma nova espécie humana, o Homo ricus, que tem acesso às novas tecnologias, enquanto o Homo sapiens volta ao estado de barbárie, já que as grandes corporações médicas pararam de fabricar os fármacos convencionais, pois não lhes trazem lucro. Fica clara a lição que podemos tirar dessa história: se a humanidade se dividir em castas em função do acesso aos tratamentos médicos, a história não vai terminar bem.
Antes da incorporação do Zolgensma ao SUS, algumas famílias com crianças com atrofia muscular espinhal recorreram à Justiça para reivindicar o acesso ao medicamento – afinal, a Constituição garante a todos os cidadãos o direito à saúde sem impor qualquer tipo de condição ou limitação. Mesmo depois da incorporação da terapia, os casos de judicialização envolvendo o Zolgensma continuaram, agora vindos de famílias que querem o medicamento para pacientes que não se enquadram nas indicações definidas pela Conitec.
A questão da judicialização do acesso aos medicamentos caros – que foi tema da quinta reportagem desta série (No banco dos réus, piauí_221, fevereiro) – acaba por dividir os usuários do sistema de saúde em duas classes. Ela separa aqueles que têm ou não condições de contratar advogados e fazer valer seu direito à saúde, como disse à piauí o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, que foi um dos idealizadores do SUS e o primeiro presidente da Anvisa. “Ainda temos que caminhar mais para ter um sistema de incorporação de tecnologia em saúde que seja igual para ricos e para pobres”, afirmou Vecina.
Quando o poder aquisitivo determina o acesso aos tratamentos, o ideal de um sistema de saúde pautado pela universalidade, integralidade e equidade vai ficando mais distante. “A ideia original não é a de um SUS só para os pobres, mas sim de um SUS para todos, pegando todo o leque das intervenções, incluindo a atenção primária, secundária e terciária, que é de grande complexidade”, disse o médico e gestor Reinaldo Guimarães, professor aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) que fez parte do primeiro escalão do Ministério da Saúde nos dois primeiros governos Lula. Guimarães disse ser um entusiasta do SUS, o que não o impede de enxergar suas fragilidades e limitações. “O fato de não estar tudo bem não deve nos levar a abdicar da ideia de um SUS para todos”, afirmou.
Se o caso é construir um sistema de fato universal e equânime, os gestores não deveriam poupar esforços para minimizar as disparidades regionais que constituem um dos principais gargalos do SUS. O mesmo sistema que comporta instituições de excelência no combate ao câncer no Rio e em São Paulo tem grandes dificuldades para oferecer procedimentos básicos aos pacientes que vivem longe dos grandes centros. “Há pessoas que têm que percorrer 4 mil km por semana para terem acesso à radioterapia”, disse o médico Luiz Antonio Santini.
Quando o Zolgensma foi aprovado em 2019 pela FDA, a Anvisa americana, Jorge Bermudez, especialista em saúde pública da Fiocruz, questionou a incorporação do fármaco ao SUS. “Cifras como a pleiteada para esse medicamento nos parecem fora de qualquer realidade e se tornam proibitivas, mesmo em países ricos”, escreveu Bermudez num artigo. Para ele, o custo do remédio visava ao “lucro extorsivo e desmedido” da empresa farmacêutica que havia desenvolvido o fármaco (a Novartis, que ele não nomeou no artigo). “A pergunta que se faz necessária é: vamos tratar as crianças ou a indústria?”
Bermudez não é o único a apontar o dedo para as grandes fabricantes de medicamentos – um conjunto de multinacionais sediadas nos Estados Unidos e na Europa que os especialistas às vezes designam pelo nome coletivo de big pharma. Na entrevista à piauí, Reinaldo Guimarães, da Uerj, disse que a indústria farmacêutica tem apostado alto nos medicamentos caros para doenças raras, o que está pressionando sistemas de saúde mundo afora. “As doenças raras são importantes, mas são raras”, disse. “E há doenças que são importantes e não são raras.” Também nesses casos, as farmacêuticas dão seu jeito de levar a melhor sobre os sistemas de saúde.
É o caso do diabetes, uma doença crônica que atinge 1 em cada 10 brasileiros. O tratamento é conhecido e não envolve muita complexidade: é preciso injetar insulina, hormônio que controla os níveis de açúcar no sangue, que são anormalmente altos nos portadores de diabetes. Mais de 90% do mercado global de insulina está nas mãos de três multinacionais: a americana Eli Lilly, a dinamarquesa Novo Nordisk e a francesa Sanofi. “Essas empresas estão deixando de produzir as formas mais baratas de insulina para colocar no mercado as mais caras”, disse Guimarães. A insulina mais cara é veiculada na forma de canetas, que são mais práticas e menos dolorosas para os pacientes. São dolorosas, porém, para os cofres públicos. “Isso pressionou de maneira brutal os sistemas de saúde, mesmo em países multimilionários, como os Estados Unidos.”
O orçamento do Ministério da Saúde para a compra de insulina neste ano é de 1 bilhão de reais, um aumento de 25% em relação aos 799 milhões de reais gastos no ano passado. Dos 32 milhões de unidades recebidos pelo ministério no segundo semestre de 2024, cerca de um terço veio na forma de caneta. Para Guimarães, o caso da insulina é paradigmático da atuação das gigantes do setor, que tomam suas decisões visando à maximização do lucro, sem levar em conta a natureza do seu negócio. “Só que essa indústria não produz parafusos, ela fabrica produtos essenciais para a vida humana.”
Por trás disso, está o fenômeno conhecido como financeirização da indústria farmacêutica. Cada vez mais, os quadros de acionistas da big pharma são ocupados por representantes de grandes gestoras de ativos – como a BlackRock, a maior do gênero no mundo, que administra um volume de recursos correspondente, segundo estimativas, a cinco vezes o tamanho do PIB brasileiro. Guimarães disse que as farmacêuticas concorrem entre si, mas alguns de seus acionistas institucionais – grandes fundos financeiros e gestoras de ativos – têm participação em várias delas. “Esses é que são os donos da bola”, afirmou. “Se não compreendermos isso, vamos ficar patinando para descobrir por que a big pharma tem uma posição absolutamente antiética com relação a seu produto final.”
A capacidade do SUS para resistir à pressão das grandes multinacionais farmacêuticas seria maior se o Brasil tivesse uma indústria médica mais robusta, o que não é o caso. “O país tem todas as condições de ter a sua própria indústria no campo da saúde, mas nunca fez isso”, disse o sanitarista José Gomes Temporão, pesquisador da Fiocruz e ministro da Saúde no segundo governo Lula. “E isso porque predominou ao longo das décadas uma visão de que o Brasil deveria ser o celeiro do mundo, exportando commodities.” O resultado dessa opção é uma grande dependência do Brasil às tecnologias médicas, o que ajudaria a explicar por que o país não conseguiu replicar em maior escala as instituições de excelência que oferecem tratamentos de ponta. Essa vulnerabilidade ficou evidente no início da pandemia, quando os brasileiros sofreram com a falta de medicamentos, respiradores e até equipamentos de proteção individual. “O SUS ficou de joelhos”, disse o ex-ministro.
Temporão questiona a visão convencional que classifica os procedimentos médicos como sendo de baixa, média e alta complexidade em função da sofisticação tecnológica envolvida. “Será que fazer uma neurocirurgia é mais complexo do que ser médico de família na periferia violenta de Recife, Rio de Janeiro ou São Paulo?”, perguntou o ex-ministro.
Uma tecnologia de ponta ou um procedimento altamente sofisticado são maravilhas do avanço da medicina, mas há iniciativas de aparência modesta que, no entanto, são igualmente complexas e ainda têm a vantagem de beneficiar milhares, milhões de usuários. Nisso, o SUS é farto em exemplos. O sanitarista Paulo Buss, ex-presidente da Fiocruz que foi um dos artífices do sistema público de saúde, cita o caso do Programa Farmácia Popular do Brasil, que oferece remédio gratuito para diabetes, asma, hipertensão, osteoporose, colesterol alto, rinite, doença de Parkinson e glaucoma, além de anticoncepcionais. Buss notou que a hipertensão e o diabetes são doenças crônicas que podem levar a complicações mais sérias, e que seu controle tem um impacto significativo na qualidade e na expectativa de vida do paciente. “A gestão do sistema é extremamente sofisticada do ponto de vista político e tecnológico, embora exista uma falsa impressão de que ela não é complexa”, disse o sanitarista.
Marcia Castro, demógrafa especializada no estudo da disseminação das doenças, cita uma série de iniciativas do SUS que também envolvem desafios logísticos complexos e alcançam resultados impressionantes. A começar pela Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, gerenciada pelo Instituto Fernandes Figueira, da Fiocruz. A rede estabeleceu uma logística nacional para a coleta, o processamento e a distribuição de leite humano para bebês prematuros ou de baixo peso que não podem ser amamentados por suas mães. Para a pesquisadora, essa é uma iniciativa única no gênero em todo o mundo – tanto que o Brasil exporta o know-how adquirido no programa, que existe há mais de oitenta anos, para outros países. “Essa rede é muito bem organizada e salva a vida de muitas crianças”, disse Castro, que é professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
A pesquisadora menciona também a rede de doação de sangue para os hemocentros distribuídos por todo o país. Antes da criação do SUS, os bancos de sangue pagavam pelas doações e nem sempre faziam os testes necessários para se certificar de que o material não estava contaminado por vírus ou bactérias. Como resultado dessa política, muitos hemofílicos e outros pacientes que receberam transfusão de sangue contraíram HIV no início da epidemia de Aids. “O SUS chegou e botou ordem na casa”, disse Castro. “Hoje em dia ninguém recebe um centavo para doar sangue, o material é analisado e é tudo regulado nos hemocentros.”
Castro lembra outra iniciativa notável do SUS que nem sempre é valorizada: o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que atende a situações de emergência e casos de risco de vida, incluindo o envio de ambulâncias para transportar o paciente até o hospital gratuitamente. O serviço contrasta com a situação dos Estados Unidos, onde a demógrafa mora. “Aqui você paga os olhos da cara por uma ambulância, tanto que muita gente vai se arrastando para o hospital para não ter que pagar.”
O sanitarista Gonzalo Vecina cita a assistência do SUS às pessoas que vivem com o vírus HIV como um de seus destaques. “A história do combate à Aids talvez seja a mais importante do SUS. O sistema garante acesso a coisas caras para todo mundo e praticamente não há judicialização.” O SUS tem incorporado com rapidez novidades que surgem no arsenal contra o HIV. Desde 2017, o sistema oferece a profilaxia pré-exposição (PrEP), comprimidos diários que as pessoas tomam para se proteger, caso se exponham ao vírus. A PrEP contribuiu para frear a disseminação do HIV em vários países. Ela é apontada como grande responsável pela queda de 48% do número de novos casos do vírus em São Paulo entre 2018 e 2023. Agora, o SUS estuda incorporar uma nova forma de PrEP, uma injeção bimestral que reduz em 96% o risco de infecção pelo vírus. Além disso, o sistema oferece o tratamento com antirretrovirais, testagens e distribuição de preservativos.
Muitos dos especialistas ouvidos pela piauí também chamam a atenção para o Estratégia Saúde da Família (ESF), o programa de atenção básica do SUS em que profissionais de saúde vão até a casa das pessoas para prestar assistência (o programa foi descrito na reportagem Mãos à obra, piauí_220, janeiro). Gonzalo Vecina frisa que o ESF oferece uma porta de entrada para o sistema de saúde, o que é indispensável ao seu bom funcionamento, e por isso mesmo deveria ser ampliado, para atingir até 80% da população. Reinaldo Guimarães considera o programa uma tecnologia social de impacto radical. “A maior inovação tecnológica do SUS se chama Estratégia Saúde da Família”, afirma.
Tendemos a só enxergar a excelência do sistema nos tratamentos de alta complexidade e tecnologia de ponta, mas muitas das medidas de maior impacto na saúde pública são atitudes e procedimentos mais simples. No caso do câncer, as novas terapias são promissoras e muito bem-vindas, mas o SUS salvaria muito mais vidas se fosse capaz de agilizar o tempo transcorrido entre o diagnóstico e o início do tratamento. “O tempo médio de início desse tratamento hoje pelo SUS pode chegar a seis meses ou mais”, diz José Gomes Temporão. “E, enquanto o paciente espera o momento de começar o tratamento, a doença vai evoluindo.”
Fazer o diagnóstico precoce do tumor é outra medida que pode ter um impacto profundo no prognóstico do paciente. “Quanto mais cedo você diagnosticar a doença, maior a chance de o tratamento ser efetivo”, disse o oncologista Roberto Gil, do Inca. Aí também o gargalo está nas filas para fazer os exames. Temporão disse que o governo está tentando atacar esse gargalo com o Programa Mais Acesso a Especialistas. O programa foi lançado em abril do ano passado pela ministra Nísia Trindade, mas sua eficácia ainda está por ser traduzida nas estatísticas do SUS.
Quando deu entrevista à piauí, o sanitarista Paulo Buss contou a história de dois matutos que estavam pescando à beira de um rio quando viram uma criança se afogando, trazida pela correnteza. Rapidamente os dois se lançaram na água para salvá-la. Dali a pouco, uma nova criança veio em apuros pelo rio. Novamente os dois trataram de acudi-la. Quando a terceira criança apareceu ao longe, um dos matutos já ia pulando na água quando viu o outro saindo na direção oposta. “Vai me deixar aqui, compadre?”, protestou ele. Ao que o outro respondeu: “Você salva a criança que eu vou ver quem é que está jogando elas no rio!” Para Buss, a história serve de lição para os sistemas de saúde. “As enfermidades não têm raízes apenas biológicas ou genéticas, elas têm também raízes sociais.” Os sistemas de saúde precisam atentar para essas causas também, ou vão continuar tirando as crianças do rio sem saber quem está tentando afogá-las.
Mesmo que um indivíduo tenha uma predisposição biológica a uma doença, ele pode adotar uma série de condutas que não requerem muitos recursos ou tecnologia e podem melhorar sua qualidade de vida, como se alimentar de forma equilibrada, praticar exercícios, não fumar e evitar o consumo excessivo de álcool. São medidas que os especialistas classificam como promoção da saúde – no fundo, é a boa e velha prevenção. “As pessoas ficam esperando que a tecnologia vá resolver seus problemas”, diz o oncologista Roberto Gil. “Acabam não fazendo o essencial para se cuidar.”
A série O complexo conta com o apoio da Umane, uma associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas sobre saúde pública.
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