Atenção primária: cerca de 85% dos profissionais de enfermagem que trabalham no SUS são do sexo feminino; a maioria é parda ou preta e atua na função de técnicos e auxiliares CRÉDITO: VÂNIA MIGNONE_2024
O complexo: parte IV_mãos à obra
Quem é a multidão que movimenta o SUS – esse que, caso fosse uma empresa privada, seria o maior empregador do mundo
Mônica Manir | Edição 220, Janeiro 2025
A enfermeira Maria da Conceição Mendonça Costa estava em Areia Branca, a cidade sergipana onde nasceu, quando recebeu o telefonema, no início de maio do ano passado. Do outro lado da linha, o secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Adriano Massuda, disse: “Vamos para o Rio Grande do Sul. Toma o primeiro voo, sem saber quando volta.” Os gaúchos estavam enfrentando a maior catástrofe climática de sua história, com chuvas e inundações que haviam começado em abril e atingiriam 478 municípios, deixando 183 mortos e desalojando mais de 400 mil pessoas. Costa fez as malas e partiu. Em 5 de maio, quatro dias depois do telefonema, a Força Nacional iniciou seus trabalhos no estado.
Costa é consultora técnica da Força Nacional, que ela ajudou a idealizar, e foi coordenadora no Rio Grande do Sul da logística e do planejamento do Comando de Operações de Emergência durante as enchentes de 2024. A Força Nacional foi criada há mais de uma década pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para atuar exatamente em situações como a que o Rio Grande do Sul enfrentava: desastres de grandes proporções e circunstâncias epidemiológicas graves. Nos dias seguintes à sua chegada em Porto Alegre, a Força Nacional reuniu mais de seiscentos servidores públicos voluntários, provenientes de todo o território brasileiro – a maior parte do Nordeste.
“Encontramos mais de 6 mil pessoas num mesmo abrigo”, diz Costa, ao lembrar o trabalho naqueles dias dramáticos. “A face era de dor, não só pela perda da casa, mas pela perda de identidade. Eram desabrigados sociais.” Durante 92 dias, a Força Nacional em conjunto com a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, voluntários e trabalhadores de outros programas do Ministério da Saúde ergueram quatro hospitais de campanha e montaram equipes volantes, que fizeram cerca de 25 mil atendimentos e 66 remoções aéreas, resgatando pessoas ilhadas ou isoladas em áreas de risco.
Nos primeiros vinte dias, a equipe de Costa, que no início ficou baseada em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, mal conseguia dormir. A enchente havia danificado e extraviado prontuários médicos. Era preciso rastrear pacientes crônicos, localizar quem fazia rádio ou quimioterapia, quem tomava imunossupressores, as gestantes que poderiam dar à luz a qualquer momento. Nem todos os voluntários suportaram a rotina intensa e o testemunho de tanto sofrimento. “Tivemos que ‘repatriar’ alguns profissionais porque a saúde mental deles não aguentou”, lembra Costa.
Uma cena marcou a enfermeira: os caixões desenterrados pela força da enchente que flutuavam no cemitério na Ilha da Pintada, antiga vila de pescadores, hoje mais conhecida por suas mansões. “A tragédia é democrática”, disse ela à piauí, meses mais tarde, depois de desfilar no Sete de Setembro, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, representando a Força Nacional com nove colegas, todos vestidos de macacão azul-celeste. Dez colegas, ali, representavam uma multidão – a multidão que, na hora das catástrofes, ou durante a mais comum das rotinas diárias, faz girar a monumental máquina do SUS.
Monumental não é uma hipérbole. O SUS emprega 2 526 667 pessoas, segundo dados mais recentes. Se fosse uma empresa privada, o SUS seria o maior empregador do mundo. Sua força de trabalho supera o Walmart, a empresa que, em termos globais, ocupa o primeiro lugar em número de trabalhadores, com 2,1 milhões de funcionários. Se fosse uma cidade, a massa que trabalha no SUS formaria o quarto maior município do Brasil, depois de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. E a imensa maioria dessa legião é formada por mulheres, à razão de três para cada homem.
O leque de trabalhadores do SUS inclui uma grande variedade: médicos de diferentes especialidades, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde, agentes de combate às endemias, agentes indígenas de saúde e de saneamento, biomédicos, biólogos, fisioterapeutas, cirurgiões-dentistas, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos, parteiras, esteticistas, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, médicos veterinários, nutrólogos, cuidadores, mães sociais e técnicos, muitos técnicos – em enfermagem, em farmácia, em saúde bucal, em vigilância sanitária, de laboratório, em radiologia, em órteses e próteses, em óptica e optometria, em segurança do trabalho, em nutrição e dietética. Desse conjunto, 43% têm vínculo permanente com o SUS, e a maioria (57%) é terceirizada.
Costa tem 55 anos e é a 12ª de uma família de dezoito filhos. Foi sua mãe – a única atendente de enfermagem do SUS de Areia Branca – que a inspirou a seguir na mesma profissão. Em 2022, Costa ajudou a criar uma das primeiras unidades do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) habilitadas pelo Ministério da Saúde, a de Aracaju, cujo modelo foi estendido a outros sessenta Samus no país. De fala acolhedora e olhar firme, emoldurado por grandes óculos quadrados, ela faz parte da turma de profissionais que está no centro da operação do SUS. Dos 2,5 milhões de empregados do sistema, quase a metade – 1 174 813 pessoas – é composta de enfermeiros, técnicos ou auxiliares de enfermagem.
“O nosso ponto forte, o ponto forte do SUS, é estabelecer uma relação concreta com os pacientes”, diz a enfermeira Antonilde Maria Ribeiro Pereira Beccaro, de 46 anos, que também é formada em direito e atua há 22 anos na saúde. Sua carreira começou no município de Bequimão, na Baixada Maranhense, a 75 km de São Luís. “A miséria era absurda”, recorda Beccaro. Entre 2002 e 2004, período em que trabalhou na região, ela cuidava da população do Ramal do Quindíua, um quilombo onde as casas eram de taipa e os moradores dispunham de um único poço de água. A mortalidade infantil era trágica: para cada 10 crianças, entre 4 e 5 morriam antes de completar 1 ano. No caminho para o trabalho, a enfermeira via os pequenos caixões sendo levados para os cemitérios.
No povoado, ela aferiu a pressão arterial de pessoas com 70 anos ou mais pela primeira vez na vida delas. Identificou os hipertensos e diabéticos. Os moradores do quilombo passaram a ter medicamentos e vacinas, que eram carregados nas costas pela enfermeira e outros funcionários. “Se você perguntar para uma pessoa atendida pelo programa Estratégia Saúde da Família quem é o representante do SUS na vida dela, ela sabe quem é”, diz Beccaro, que agora trabalha em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no Centro de São Luís. O programa Estratégia Saúde da Família, a que a enfermeira se refere, fornece assistência essencial à população e cuida da prevenção de doenças.
Grande parte dos profissionais de enfermagem, seguindo a concentração populacional do país, está nos três maiores estados da região Sudeste – São Paulo, Rio e Minas. Em quarto lugar, vem o Rio Grande do Sul e, em seguida, a Bahia. Segundo uma pesquisa com trabalhadores tanto do sistema público quanto do privado, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2016 (e que ainda hoje serve de referência sobre a categoria), a maioria é parda ou preta (53%) e atua principalmente na função de técnicos e auxiliares. Cerca de 85% são mulheres.
Eles (ou elas) estão em todos os lugares. A maioria trabalha em hospitais, UBS, unidades de urgência/emergência, unidades ambulatoriais/policlínicas e em ensino e pesquisa. Outra parte trabalha nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), em unidades de diagnóstico e terapia ou no serviço que atende em domicílio, o Melhor em Casa. Há um piso salarial definido para todo o país. Para cumprir jornadas de 44 horas por semana, os enfermeiros ganham pelo menos 4 750 reais. Os técnicos de enfermagem, 3 325. E os auxiliares, bem como as parteiras, 2 375.
Mas não se sentem devidamente recompensados, sobretudo depois do advento, em 1998, das chamadas Organizações Sociais de Saúde. As OSS são entidades sem fins lucrativos que fazem a gestão de uma unidade de saúde em nome do Estado, do qual recebem um repasse mensal para fornecer abastecimento e mão de obra – contratada por processo seletivo e regida pela CLT. “Hoje, quando falamos de SUS, estamos falando das OSS”, reclama o enfermeiro Jefferson Erecy Santos Caproni, que preside o SinSaúdesp, o sindicato que representa técnicos e auxiliares de enfermagem em São Paulo. A maioria dos filiados ao sindicato hoje trabalha em OSS.
Em outubro passado, o SinSaúdesp até promoveu uma paralisação para protestar contra precariedades no trabalho via OSS. “Não há igualdade nos valores da alimentação, seja no vale-refeição, seja na cesta básica”, diz Caproni. De acordo com Mário Bonciani, médico do trabalho do SinSaúdesp, o tratamento desigual se reflete na saúde dos profissionais terceirizados. Problemas como lombalgias chegam a 58% do total de reclamações, seguidos pelos transtornos mentais, como ansiedade e depressão (39%). “A minha avaliação é que, depois do advento das OSS, o quadro piorou porque se perdeu a capacidade de ver o trabalhador com mais cuidado”, diz Bonciani.
Em que pesem as condições de trabalho, a bravura desses profissionais ficou evidente para grande parte dos brasileiros durante a pandemia de Covid. Estudo realizado por três pesquisadores da Fiocruz, um da Unifesp e outro da Universidade Estácio de Sá, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, informa que enfermeiros, técnicos ou auxiliares compuseram quase a metade – 49,5% – dos profissionais de saúde mais acometidos pela pandemia entre 2020 e 2021. Em todo o país, 670 deles morreram de Covid – sobretudo mulheres pretas e pardas entre 36 e 60 anos de idade.
O traumatologista Tadeu Ferreira Soares, de 48 anos, trabalha no SUS em São Paulo, em dois hospitais: no Santa Marcelina – que é filantrópico e atende pelo sistema público nos casos de emergências e traumas – e no Hospital Geral Itaim Paulista, que é porta aberta. Ele conta que gostaria de trabalhar somente no SUS, mas faz também cirurgias particulares na unidade Pompeia do Hospital São Camilo, na Zona Oeste, e no Hospital Central Leste, da Rede D’Or São Luiz, em Guaianases, extremo Leste da metrópole. “Mas não é pelo dinheiro”, diz. “É porque, para algumas coisas que eu gosto de fazer, como eletivas de hérnia inguinal por videolaparoscopia, não tenho material disponível. Só tenho no sistema privado.”
Soares é um dos 417 725 médicos do SUS, dos quais 111 557 têm vínculo permanente com o sistema, segundo os dados mais recentes, do Ministério da Saúde. O restante – a maioria – é terceirizado. Soares é um apaixonado pelo SUS. Ele diz que trabalhar no sistema público é o que lhe garante sanidade. “Sempre quis trabalhar com pacientes graves, doentes bem críticos”, afirma. “Além disso, operar pessoas humildes me dá uma grande satisfação, porque sinto que, naquele momento, eu posso ajudar a pessoa.” Na sua especialidade, a ajuda, em geral, é mesmo dirigida a pessoas mais pobres. No Brasil, as lesões físicas causadas por acidentes de trânsito ou por violência são tratadas principalmente pelo SUS, cujos hospitais são o destino preferencial das vítimas. “Trauma é doença de pobre e de bandido”, diz Soares. “Um baleado só será levado para o Sírio-Libanês, por exemplo, se ele tiver levado um tiro em alguma rua bem perto do hospital, e olhe lá.”
O traumatologista, que é também professor de cirurgia geral e atendimento pré-hospitalar na Faculdade Santa Marcelina, ilustra seus casos no SUS com fotos das operações que realizou, como se estivesse em uma sala de aula. Pelo celular, mostra à piauí uma laparotomia – conhecida como “cirurgia de barriga aberta” – feita em um ex-presidiário que trocou tiros com a Polícia Militar. O paciente chegou às três da manhã ao Hospital Geral Itaim Paulista e às quatro estava na mesa de cirurgia. “Mais de 90% dos baleados que chegam até mim são bandidos, mas não posso julgar. Minha missão é salvar a pessoa”, diz.
Sem que tenha computado os casos de forma sistemática, Soares percebe que o número de policiais baleados diminuiu bastante nos seus plantões, enquanto o de bandidos aumentou. Também subiu o número de feminicídios e suicídios. A quantidade de motociclistas acidentados cresceu vertiginosamente nos hospitais públicos. Só em 2023, foram mais de 140 mil. Se dependesse de Soares, as motos seriam banidas.
Há quatro anos, o médico costumava passar de 18 a 24 horas por dia no centro cirúrgico. Hoje não ultrapassa as 12 horas diárias. Seu corpo não aguenta mais que isso. Em janeiro de 2020, pouco antes de ser detectado o primeiro caso de Covid no Brasil, ele foi infectado pela bactéria hospitalar Streptococcus pyogenes, talvez por meio de uma agulha, durante uma cirurgia. Soares ficou 58 dias no hospital, catorze deles na UTI. No sétimo dia, seus pés começaram a necrosar. As suas mãos foram poupadas pela pyogenes, mas os dedos dos pés e os calcâneos (ossos do calcanhar) foram amputados. Com dificuldade para obter as próteses e fazer a reabilitação como deveria, em razão do lockdown, ele demorou um ano para reaprender a andar, algo que faz hoje com certa desenvoltura nos terrenos mais planos. “Estou vivo, e continuo na cirurgia geral. Tem um maluco aqui”, diz, referindo-se a si próprio.
Ele reconhece que muitos de seus colegas médicos evitam o SUS não exatamente por causa da falta de recursos, mas porque querem mais status e melhor salário. “Em São Paulo, trabalhando como cirurgião geral no SUS 100% puro, 60 horas semanais, com um plantão noturno eventual ou uma cobertura de fim de semana, dá para tirar um líquido entre 25 mil e 28 mil reais por mês.” O valor não condiz com as pretensões de muitos alunos dele. Alguns lhe perguntam o que fazer para ganhar na casa dos seis dígitos. Ele atribui essa ambição financeira em parte ao fato de muitos de seus alunos serem filhos de pessoas abastadas. Querem conjugar uma conta bancária robusta com consultórios em áreas nobres da cidade e celebrização no Instagram. Para Soares, porém, é ilusório querer atingir um patamar salarial superior a 100 mil reais mensais.
Sua opinião é corroborada pela pesquisa Demografia médica no Brasil 2023, feita pela USP em parceria com a Associação Médica Brasileira. Segundo o levantamento, os médicos ganhavam, em 2020, em média, 30 mil reais por mês. Os mais velhos, com idade entre 51 e 60 anos, declaram um rendimento maior, na casa dos 40 mil reais. Os mais novos, com idades inferiores a 30 anos, ficam na faixa dos 12 mil.
Segundo a Demografia médica no Brasil, no primeiro ano depois da residência médica, 55,7% dos profissionais pretendem atuar ao mesmo tempo no serviço público e no privado. Somente 24,6% têm a intenção de trabalhar principal ou integralmente no SUS. As coisas mudam quando os mesmos médicos dizem o que planejam fazer cinco anos depois da residência: 38,9% querem atuar preferencialmente no setor privado. Apenas 12,1% pensam em se dedicar ao SUS. E o grande fornecedor de vagas de residência é o SUS, que absorve mais de 65% dos médicos-residentes. Eles ganham uma bolsa de 4 106,09 reais por 60 horas semanais de serviço, e escolhem entre 55 especialidades. As favoritas são: clínica médica, pediatria, cirurgia geral e ginecologia/obstetrícia.
Apesar de tudo, a maior parte dos médicos é como o traumatologista Tadeu Soares. Considerando-se a totalidade dos médicos que vivem no Norte e no Nordeste, um enorme contingente deles trabalha no SUS. No Pará, por exemplo, os médicos do SUS correspondem a 81,7% do total de médicos do estado. Já em outras regiões do país, o total dos que trabalham no SUS continua expressivo, mas não tanto quanto no Norte, Nordeste e estados do Centro-Oeste, como Goiás e Mato Grosso do Sul. É o caso do Espírito Santo, onde 68,5% dos médicos atuavam no SUS em 2021 – índice alto, mas bastante inferior ao do Pará. Os números constam do artigo Heterogeneidade da distribuição dos profissionais de saúde no Brasil e a pandemia Covid-19, de autoria dos professores Anselmo Luís dos Santos, Marcelo Manzano e André Krein.
Certas regiões do país são chamadas de “desertos médicos”, porque nelas esses profissionais são muito poucos ou inexistentes. Com o objetivo de suprir de médicos esses locais, o SUS criou em 2013 o Mais Médicos, aberto inclusive à candidatura de profissionais estrangeiros. O corporativismo de boa parte dos médicos explodiu. Eles não queriam trabalhar nos grotões do país, mas também não queriam que o mercado fosse aberto a recrutados fora do país – e, por razões ideológicas, menos ainda se os profissionais viessem de Cuba. Apesar da resistência, o programa conseguiu alocar em menos de um ano 14 462 profissionais em 3 785 municípios.
O governo de Jair Bolsonaro tentou abolir o Mais Médicos, implementado pelo PT, mas não conseguiu. No governo Lula, o programa foi reativado, com a abertura de mais 15 mil vagas, e não demorou a ser expandido. Hoje, o programa alcança presidiários, por meio das equipes de Atenção Primária Prisional, e as pessoas em situação de rua, com os grupos do Consultório na Rua. De acordo com dados de novembro passado, há 26 756 mil médicos vinculados ao Mais Médicos, a maioria do sexo feminino (14 363). Em torno de 33,5% deles atuam em municípios de alta vulnerabilidade. Os profissionais formados no Brasil são maioria (62%) e 38% são intercambistas, ou seja, médicos formados no exterior e que ainda não preenchem todos os requisitos para terem seu diploma validado no Brasil.
Criado em 1994, o programa Estratégia Saúde da Família é uma peça-chave das Unidades Básicas de Saúde, que fazem o acompanhamento de grávidas, crianças, diabéticos, hipertensos, idosos. Existem 45 134 UBS em funcionamento no país – e a maior concentração é no Nordeste, com 17 478 unidades, de acordo com o Ministério da Saúde. Nesse aparato, os agentes comunitários de saúde têm um papel crucial: fazer visitas domiciliares e identificar lá na origem os problemas de saúde, orientando a população sobre práticas saudáveis e encaminhando os doentes para tratamento.
Terceira categoria profissional mais numerosa do SUS, depois dos profissionais de enfermagem e dos médicos, os agentes de saúde são 296 187 – 12% de toda a mão de obra do SUS. Só no primeiro semestre de 2024, eles realizaram cerca de 345 milhões de visitas domiciliares em todo o Brasil. O trabalho é silencioso, não sai nas manchetes dos jornais, nem rende fotos instagramáveis, mas é nos tablets dos agentes de saúde que está uma vasta radiografia da saúde dos brasileiros atendidos pelo SUS. Com nome e sobrenome.
Em São Luís, no Maranhão, a agente Ana Márcia Cantanhede Santos conhece muito bem as pessoas da Vila dos Frades, onde todo dia escolhe uma rua diferente para escrutinar a saúde dos moradores. Às vezes, ela vai acompanhada de um médico, um enfermeiro e um técnico em enfermagem. Outras vezes, tropeça numa crescente chaga nacional: não consegue chegar às residências por causa de disputas entre facções criminosas na comunidade.
“O que é essa alergia aí?”, ela pergunta para o aposentado José Carlos Almeida. A agente comunitária olha o peito ligeiramente empipocado de Almeida, olha outra vez, e resolve marcar uma consulta para ele com um dermatologista do Centro de Saúde Dr. Antônio Guanaré, UBS da comunidade Vila dos Frades, onde Santos trabalha há vinte anos. A consulta é agendada para a sexta-feira seguinte. Depois, ela segue pelas ruas da Vila dos Frades, na sua “microárea de atuação”.
De micro, sua área tem pouco. São 251 domicílios registrados no tablet fornecido pela Secretaria Municipal de Saúde. A meta de Santos é cadastrar ali 750 pessoas, número máximo indicado pelo SUS para cada agente. Ela já registrou 687. O cadastro é minucioso: a agente aponta características do domicílio, como número de cômodos e condições de saneamento básico, se é casa própria ou alugada, e faz anotações detalhadas sobre a saúde dos moradores. Também é sua atribuição esmiuçar a situação dos quarteirões sob seu guarda-chuva, anotando onde há terrenos baldios, padarias, lanchonetes, uma nova borracharia e até lixões.
A Vila dos Frades é uma das comunidades do polo Coroadinho, oitava maior favela do país, segundo o IBGE. A denominação Coroadinho vem provavelmente da cidade fictícia de Coroado, da novela Irmãos Coragem, cuja primeira versão foi ao ar na Rede Globo entre 1970 e 1971, mesmo período em que começaram a pipocar as primeiras construções na área invadida. Hoje, vivem na região do Coroadinho em torno de 51 mil pessoas, entre elas Santos, que se mudou para lá 33 anos atrás e é também usuária do SUS: está com bócio e aguarda a marcação de uma cirurgia para tirar a tireoide.
A movimentação na UBS de Santos é intensa. Ali são feitos atendimentos de atenção à criança (consulta, vacinas, nebulização, reidratação, controle de crescimento e desenvolvimento), à mulher (pré-natal, vacinas, exame preventivo de câncer de colo do útero, planejamento familiar) e ao adolescente, além de serviços para controle de hipertensão, diabetes, tuberculose e hanseníase. Há ainda programas de saúde bucal, terapia ocupacional e para infecções sexualmente transmissíveis. O local dispõe de 6 médicos, 6 enfermeiros e 6 técnicos de enfermagem, afora os agentes comunitários.
Hipertensos são maioria entre os pacientes de Santos. Vêm em seguida os diabéticos e os hiperdias, que juntam as duas comorbidades. No caso dos acamados, tanto eles quanto os cuidadores recebem atenção especial, como vacinação em casa. Santos e sua equipe também fizeram uma tabela detalhando os medicamentos, os horários prescritos e a forma de ministrá-los para orientar a família dos acamados.
Beneficiários do programa Bolsa Família representam outra categoria vulnerável, que é anotada no tablet de Santos – de seus 687 cadastrados, 219 dependiam desse auxílio. Assim que confirmam seu endereço no cadastro do Centro de Referência da Assistência Social (Cras), essas famílias já sabem que há um agente do SUS naquela quadra e que devem procurar o serviço de enfermagem do posto para fazer uma avaliação de saúde.
Santos está particularmente atenta às crianças que visita. Na sua região, há 33, sendo que 5 delas tinham menos de 11 meses quando a piauí a acompanhou nas visitas, em maio passado. Como também é líder na Pastoral da Criança – braço da Igreja Católica – e técnica em alimentos pela Universidade Estadual do Maranhão, Santos sempre quer saber o que a clientela do SUS está ou não está comendo. E a população de alcoólatras quase nunca escapa de sua lupa: são ao todo 93, mais homens que mulheres.
Pelas quarenta horas semanais de trabalho, Santos ganha em torno de 2,8 mil reais líquidos, incluídas as gratificações de insalubridade. Aos 55 anos, ela sente que tem um papel importante na sua equipe, ao fazer o elo entre o SUS e a comunidade. “Somos nós, agentes, que entramos nos domicílios, nós que conhecemos o indivíduo, nós que sabemos a realidade de cada um”, diz, com o coração inflado de orgulho sob a camiseta polo amarela.
As enchentes não foram a primeira tragédia que levou a enfermeira Maria da Conceição Mendonça Costa ao Rio Grande do Sul. Em janeiro de 2013, quando a Força Nacional ainda engatinhava, Costa participou do atendimento de urgência às vítimas do incêndio da boate Kiss, na cidade de Santa Maria. Por coincidência, cerca de um mês antes, a enfermeira e sua equipe haviam lançado em Santa Maria uma extensão regional do Samu, o serviço móvel de urgência.
Assim que se inteirou da gravidade do incêndio – 242 pessoas mortas, mais de 600 feridas –, Costa convocou a Força Nacional. Os pacientes em estado crítico tinham de ser removidos para Porto Alegre. “Foi a maior remoção aeromédica da América Latina”, diz ela. A equipe do SUS montou dezoito leitos de UTI na aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB). “Quando você encontrava uma mulher que tinha acabado de achar vivo o seu filho, respirando, ela abraçava você”, lembra Costa. “Aí você andava dois passos, e outra mãe abraçava você, desesperada, depois de encontrar o filho morto. Muitas vezes, um abraço vale tudo. O SUS abraçou o Rio Grande do Sul.” E deixou uma herança.
Além do atendimento imediato, do transporte, dos medicamentos, o SUS passou a oferecer um serviço essencial: o atendimento psicológico. “O incêndio na Kiss foi uma situação disruptiva que implodiu ritmos de vida”, diz o psicanalista Volnei Antonio Dassoler, na sede do Acolhe Saúde, como foi chamado o serviço de referência do SUS para o cuidado psicossocial dos afetados pela tragédia. Até o final de 2013, o serviço havia cadastrado 805 pessoas, a maioria formada por familiares das vítimas. Um ano mais tarde, em vez de diminuir, o cadastro aumentou: 986.
Cinco anos depois do incêndio, o Acolhe Saúde precisou se reestruturar. Não havia mais como sustentar o serviço apenas com as pessoas relacionadas à tragédia da boate Kiss, que foram diminuindo sua frequência no serviço. A partir de 2018, virou Santa Maria Acolhe, ainda ligado ao SUS. Hoje, faz em média 450 atendimentos mensais, sobretudo de mulheres adolescentes e adultas até os 40 anos de idade que tenham apresentado tendência ao suicídio ou estejam vivenciando um luto.
A equipe conta com Dassoler, coordenador do serviço, 2 assistentes sociais, 2 psicólogas, 1 enfermeiro e 1 médico, além de residentes e estagiários. Os seis primeiros da equipe fixa são concursados, como de resto a maioria dos trabalhadores do SUS na saúde mental de Santa Maria. O médico é um clínico geral contratado. Mais difícil é contratar psiquiatras que aceitem trabalhar no SUS, conta a terapeuta ocupacional Cláudia Pinto Machado Melo, coordenadora da política de saúde mental da Prefeitura de Santa Maria (na cidade, há apenas oito contratados nessa área).
Segundo dados da Demografia médica no Brasil, em 2022 o país tinha 13 888 psiquiatras – 2,8% do total de médicos atuando em todo o território nacional, sendo que mais de 50% trabalham na Região Sudeste. É um número de profissionais insuficiente para prover a demanda do SUS. O relatório Depressão e outros transtornos mentais, da Organização Mundial da Saúde, de 2023, aponta que o Brasil é o país com maior prevalência dessa doença na América Latina: 5,8% da população brasileira (11,8 milhões de pessoas) sofrem de depressão. O Ministério da Saúde estima que a taxa de depressão cresça mais de 15% nos próximos anos. Um dos motivos da alta incidência dessa doença no país é a dificuldade de acesso a um tratamento de qualidade na rede pública. Isso se deve em parte à falta de profissionais de saúde mental, que não se animam com o salário pago pelo SUS.
No governo Bolsonaro, as dificuldades nessa área aumentaram, com a extinção dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), no início de 2020. A equipe dos Nasf incluía psicólogos e psiquiatras, integrava as UBS e estava apta a diagnosticar problemas de saúde mental logo na raiz. Com o fim desse apoio, muitos pacientes têm diagnóstico tardio e precisam enfrentar a longa fila de espera para atendimento. O desmonte dos Nasf acabou por fragilizar a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), como é chamada a política nacional de saúde mental. Instituída em 2011, a Raps tem como objetivo criar, ampliar e articular pontos de atenção à saúde no SUS para pessoas com sofrimento psíquico e/ou com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. (Em julho de 2023, o Ministério da Saúde anunciou mais de 200 milhões de reais para a rede.)
O SUS continua reagindo, e a herança que deixou no Rio Grande do Sul ainda funciona. A experiência acumulada na tragédia da boate Kiss acabou por servir de referência em outras tragédias nacionais, como o rompimento das barragens da Vale em Mariana (19 mortos e 600 desabrigados) e Brumadinho (272 mortes e 3 desaparecidos), além da queda do avião da Chapecoense (71 mortes e 6 sobreviventes). Nos três casos, a equipe do Santa Maria Acolhe foi acionada para compartilhar seu conhecimento. O psiquiatra Gilson Mafacioli, que integrou o comitê de gestão do Acolhe Saúde, acredita que o atendimento feito em Santa Maria, depois do incêndio na boate, deixou uma lição forte: “Na tragédia da Kiss, o SUS funcionou como deveria: funcionou para todos.”
A série O complexo conta com o apoio da Umane, uma associação civil sem fins lucrativos que apoia iniciativas sobre saúde pública.
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