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    FOTO: ARQUIVO DE RENATO CASIMIRO/DANIEL WALKER

questões eclesiásticas

O Milagre de Juazeiro volta a Roma

Cento e vinte anos depois do mistério, a Igreja estuda a reabilitação de padre Cícero

Lira Neto | Edição 35, Agosto 2009

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1889: A HÓSTIA VIRA SANGUE

Naquela noite escura e sem lua, Cícero Romão Batista levantou as mãos para os Céus e pediu perdão pelos pecados do mundo. Quem olhasse de fora em direção às janelas abertas da capela de Nossa Senhora das Dores avistaria, já de longe, o lampejo das centenas de velas acesas cortando o breu. O forte cheiro de cera derretida e o adiantado da hora indicavam que os membros da irmandade de beatos, cerca de vinte deles, haviam passado mais uma madrugada inteira em vigília, em louvor ao Sagrado Coração de Jesus.

Meia hora antes do amanhecer, quando os galos se preparavam para anunciar outra manhã de sol no sertão, Cícero decidiu que as sete ou oito mulheres ali presentes mereciam receber a comunhão antes dos homens, para retornarem às respectivas casas. Elas precisavam descansar o corpo fatigado da prolongada sentinela. Com véus escuros sobre a cabeça e alvos rosários entrelaçados nas mãos magras e morenas, as beatas atenderam ao chamado e se aproximaram em fila indiana, uma a uma.

À frente delas, ia Maria de Araújo. Com os olhos fechados, foi a primeira a se postar diante do padre e entreabrir a boca, contrita. Quando a hóstia lhe tocou a língua, a beata abriu e revirou os olhos espantados. Parecia ter entrado num estranho transe. Foi então que se deu o fenômeno: segundo chegariam a jurar sobre a Bíblia as testemunhas ali presentes, a hóstia na boca de Maria de Araújo mudou de forma e de cor. Transformou-se em sangue vivo.

O sangue desceu dos lábios da mulher e, como ela tentasse contê-lo, este lhe banhou o dorso da mão esquerda. Depois, escorreu ao longo do braço, até cair ao chão da capela, que ficou respingado de vermelho. Com ar aflito, a beata mirava e mostrava ao padre uma toalhinha branca dobrada nas mãos, tingida pelas manchas rubras que haviam transbordado da boca e que ela depois procurara enxugar. Foi um alvoroço. Quando os primeiros raios de sol aqueceram a alvenaria da fachada principal do templo, a notícia já corria pelo povoado cearense: na branca capela de Nossa Senhora das Dores, entre os lábios da beata Maria de Araújo, a hóstia consagrada pelo padre Cícero havia se materializado na carne e no sangue divino de Jesus. Sangue que, a exemplo do que ocorrera dois milênios antes e no alto da cruz, estaria sendo derramado para lavar os pecados e as dores dos homens.

 

Foi no dia 1º de março de 1889, uma sexta-feira, véspera da Quaresma. Como a desafiar a incredulidade dos mais céticos, o episódio se repetiria por meses a fio, sempre às quartas e sextas-feiras. No Sábado de Aleluia, o sangue teria jorrado de novo da boca da beata Maria de Araújo. Numa das ocasiões, de tão abundante, chegara a atingir e embeber o corporal – o tecido branco e quadrangular sobre o qual se colocam o cálice com o vinho – e a patena, o pratinho de metal com as hóstias. Seria impossível, diante de tão insistentes e misteriosas manifestações, conter o êxtase coletivo. De imediato, uma palavra passou a ser voz corrente na região: milagre. Juazeiro do Norte transformara-se em chão sagrado.

Moradores das cidades e localidades mais próximas chegavam ao minúsculo povoado, atraídos pelas narrativas que davam conta do sangue de Jesus derramado em pleno agreste. Mas foi em 7 de julho, um domingo que marcava o ápice da festa cristã do Precioso Sangue, que Juazeiro assistiu pela primeira vez à chegada maciça e ordenada de milhares de peregrinos. Foi a primeira de todas as romarias. Naquela manhã, cerca de 3 mil pessoas – quase dez vezes a população do lugarejo – apinharam-se nas estreitas ruelas do local. A maioria era proveniente do Crato e vinha sob as bênçãos expressas do novo reitor do seminário, monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro. Conhecido pela oratória inflamada, monsenhor Monteiro conduziu uma procissão até a capela de Nossa Senhora das Dores, naquele dia adornada com velas, flores e fitas coloridas. Ao término da missa, com sua autoridade clerical e o estilo ardoroso de sempre, Monteiro fez um sermão histórico, durante o qual exibiu, com gestos arrebatados, uma toalha manchada de sangue. Segundo ele, não havia dúvidas de que aquele era o verdadeiro sangue de Jesus Cristo.

As palavras do reitor do seminário do Crato contagiaram o mundaréu de gente. A comoção se propagou como descarga elétrica no meio da multidão. Centenas de pessoas se prostraram de joelhos, em choro compulsivo, diante da visão do tecido ensanguentado. Levas de peregrinos se sucederam à romaria inicial. Vinham sempre aos milheiros, a pé ou a cavalo, de perto e de longe, com o intuito de adorar os panos considerados sagrados pelo contato com o sangue divino. Colocadas em uma caixa de vidro e postas à exposição pública na capela do Juazeiro sob a guarda de Cícero, as relíquias tornaram-se alvo de devoção extremada.

Não foi tudo. O Céu parecia ter aberto a caixa de milagres. Pouco depois, em 19 de agosto daquele mesmo ano, espalhou-se que outro fenômeno fantástico ocorrera no povoado. Segundo assegurava Maria de Araújo, dessa vez o próprio Jesus Cristo teria lhe aparecido em visão, enquanto ela orava na capela. Dois dias mais tarde, em nova aparição à beata, em plena celebração da missa pelo padre Cícero, Jesus teria revelado a ela, reservadamente, que decidira fazer do Juazeiro um portal por onde apenas os puros e justos entrassem no reino dos Céus. Monsenhor Monteiro parecia convicto de que a beata falava a verdade. “Não há dúvida de que a beata Maria de Araújo, humilde, pobrezinha, é uma santa, é uma santa como a história ainda não registrou!”, escreveu o reitor. “Muitos livros não bastarão para neles se escrever o que há de sobrenatural naquela simples criaturinha de Deus!”

Os romeiros não ousaram duvidar da nova maravilha. Se, de acordo com o que pregava a Igreja, Jesus teria aparecido em outros tempos para um punhado de bem-aventurados, por que não se revelaria agora para Maria de Araújo, que já teria obtido a suprema graça de abrigar o sangue sagrado no interior de sua boca? Se dois séculos antes, em 1675, Jesus teria mostrado o coração exposto em chamas para a freira francesa Margarida Maria Alacoque em um convento da região da Borgonha, por que não poderia repetir o mesmo prodígio, tanto tempo depois, numa capela do pequenino Juazeiro, que tinha o piedoso padre Cícero como seu protetor?

Todos sabiam que a Igreja Católica aceitava, como fato, a crença de que Jesus Cristo, com o peito incendiado de sangue e de luz, teria pedido à francesa Margarida Alacoque que difundisse mundo afora o culto ao Sagrado Coração, confiando-lhe a missão divina de reparar, pela oração, os sortilégios humanos. Pois para os que acorriam em massa a Juazeiro não era de se admirar que o mesmo Cristo houvesse voltado à Terra e anunciado a Maria de Araújo, uma devota fervorosa do Coração de Jesus, que iria fazer, por meio dela, um novo chamamento às almas desgarradas do caminho e da palavra de Deus. Padre Cícero, confessor da beata, seria o grande responsável pelas bênçãos que estavam se derramando sobre o Juazeiro. Era ele que indicaria a todos o caminho dos Céus.

 

Não demorou para que as histórias espantosas percorressem léguas e mais léguas, até chegar às letras de forma dos principais jornais do país. O primeiro periódico a noticiar o caso foi uma importante gazeta da capital do Império, o Diário do Commercio, que tinha redação, escritório e oficina montados na nevrálgica rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. “Recebemos a seguinte informação, em carta dirigida da província do Ceará”, anunciava o jornal carioca, na edição de 19 de agosto daquele ano de 1889. “Quando o padre Cícero dava a comunhão à virtuosa beata Maria de Araújo, transformou-se a sagrada forma em sangue, que caiu na toalha e na murça da beata, fato que se foi dando todas as sextas-feiras e depois diariamente.” Informava-se ainda que “um sem-número de habitantes da cidade do Crato, e de toda a circunvizinhança, concorreu de modo que jamais se viu naquela povoação tamanha aglomeração de fiéis”.

Dez dias depois, era a vez do Diário de Pernambuco repercutir a notícia, com maior alarde. “Fato estupendo”, lia-se em negrito nas páginas do prestigioso jornal do Recife. A descrição do milagre era novamente seguida da informação de que caravanas de peregrinos não paravam de acorrer ao local. “É provável que esta fiel exposição de um acontecimento sobrenatural levante a incredulidade, e que esta o comente a seu sabor. Mas o que é certo é que ele foi testemunhado por mais de 30 mil pessoas; e que o Juazeiro tem se tornado uma nova Jerusalém pela romaria dos povos vizinhos.”

Uma nova Jerusalém. A senha estava dada. A serra do Catolé, com seu espinhaço de pedra recortando o horizonte do Juazeiro, seria o novo monte das Oliveiras. O riacho Salgadinho, que banhava as terras do povoado, o novo Jordão. Jesus Cristo teria escolhido o povo mais simples e o lugar mais remoto para, sobre ele, derramar de novo Sua palavra. Nada mais justo, acreditavam os peregrinos em romaria. Segundo rezava o Novo Testamento, não foram também os primeiros apóstolos homens do povo, humildes e incultos pescadores de peixe, transformados pela fé em pescadores de almas?

 

Cícero não podia ter dúvidas de quem era o remetente daquela carta que vinha de Fortaleza, datada de 4 de novembro de 1889, com o selo e as armas eclesiásticas gravados no lacre de cera. O bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, com a autoridade que lhe competia como chefe da Igreja na província, cobrava explicações a respeito dos boatos que lhe chegavam sobre aquele distante povoado. Com caligrafia rebuscada, o tom da correspondência era cortês, mas firme.

“Sou amigo de Vossa Reverendíssima; confio na sinceridade e na sua ilustração e por isso o julgo incapaz de qualquer embuste”, iniciava, amistosa, a carta do bispo ao padre Cícero Romão. “Faça-me, com a maior urgência, uma exposição minuciosa de todas as circunstâncias que precederam, que acompanharam e subseguiram o fato, para que eu possa tomar as providências atinentes ao caso”, ordenava dom Joaquim. “Enquanto se espera por esse juízo, proíbo expressamente a Vossa Reverendíssima qualquer manifestação a esse respeito”, advertia o prelado, para finalizar: “Estou persuadido que Vossa Reverendíssima, ilustrado e piedoso como é, não se escandalizará com esta minha determinação, pois sabe que me incumbe o dever de velar sobre a pureza da doutrina católica. Deixo de fazer mais considerações porque julgo ter explicado bem claramente o meu pensamento.”

Apesar das ordens cristalinas contidas na mensagem, o bispo recebeu apenas o silêncio como resposta. Chegou a enviar uma segunda correspondência oficial a Cícero, reiterando a mesma cobrança, que ficou igualmente sem retorno. “Parece-me ser grande imprudência chamar a atenção do público para a beata Maria de Araújo. Este fato pode trazer a ela sentimentos de vaidade, em detrimento da salvação”, insistia dom Joaquim, na segunda carta. “Padre Cícero, parece-me prudente não se dar ainda expansão ao fato, porque é possível que mais tarde se verifique ser ele fruto de causas meramente naturais; e então grande ridículo recairá sobre a nossa Santa Religião.”

Ao contrário do minucioso relatório que exigia, dom Joaquim viu-se obrigado a ler pela imprensa uma nova notícia sobre os episódios fantásticos. Desta feita, o agravo vinha com assinatura e, portanto, assumida autoria. Uma carta escrita de próprio punho pelo monsenhor Francisco Monteiro, o reitor do seminário do Crato, endereçada a um cônego paulista, acabara de ser publicada em um jornal de São Paulo. Nela, falava-se abertamente em novos milagres. Na carta, reproduzida pela folha religiosa Estrela da Aparecida, monsenhor Monteiro dizia que, no dia 22 de agosto, em Juazeiro, a beata Maria de Araújo chegara à capela de Nossa Senhora das Dores, pouco antes da missa, com a roupa banhada em sangue. Segundo ela, Jesus Cristo havia-se revelado de novo a ela, desta vez devidamente paramentado, de sobrepeliz e estola, como se fosse um padre pronto para subir ao altar. Pelo relato, Jesus oferecera à mulher um cálice de ouro, cheio de vinho, que de imediato se transformara em sangue. Maria de Araújo bebera a metade do líquido e a outra metade teria sido derramada pelo próprio Jesus sobre a cabeça da beata. “Quero que bebas o meu Sangue e te banhes com ele”, dissera-lhe Cristo, ainda conforme a carta assinada e tornada pública pelo reitor do seminário do Crato. “Quero fazer deste lugar, Juazeiro, um chamado para a salvação dos homens. É este um esforço de amor do meu coração”, acrescentara Jesus à beata Maria de Araújo.

O bispo se convenceu de que estava diante de um grave caso de indisciplina. Meses antes, recebera em audiência no palácio episcopal, em Fortaleza, o mesmo monsenhor Monteiro, que não lhe fizera a mais leve menção ao assunto. Dom Joaquim sentiu-se ludibriado. Tanto por Monteiro quanto por Cícero. Este, em junho, três meses depois da primeira ocorrência dos alegados milagres, chegara a lhe enviar longa carta. Nela, também não havia nenhuma palavra sobre o caso. Apenas um dramático apelo para que o bispado intercedesse junto às autoridades e conseguisse uma possível ajuda contra a seca que mais uma vez assolava a província. “Vossa Excelência Reverendíssima, por caridade e por Nossa Senhora das Dores que é dona deste lugarzinho tão caro a seu sagrado coração, seja o instrumento de que ela se sirva para nos salvar”, implorara Cícero. “Eu não sou nada, tenho consciência do pouco que sou e por isso não me atrevo a dirigir-me aos que governam; são políticos, só com políticos se entendem. Lembrei-me de pedir a Vossa Excelência, que sabe chorar com os que choram, para se interessar por nós, nos alcançando algum recurso do Governo”, dizia a carta. “Temos pedido muito a Nosso Senhor e os meus pecados impedem que ele ouça! Como posso ver esse pobre povinho que amo tanto, como uma parte de minha alma, desaparecer?”, escrevera o padre Cícero. Sobre hóstias que se transformavam em sangue, nada.

Dom Joaquim sabia que uma circunstância histórica tornava o assunto ainda mais explosivo e suscetível de contagiar multidões. As notícias sobre o milagre se espalhavam com a mesma velocidade daquelas que davam conta de que, no Rio de Janeiro, um grupo de militares havia acabado de derrubar o imperador dom Pedro II e proclamado a República. Para cristãos mais exaltados, a confluência entre os dois episódios significava um claro sinal de que o fim dos tempos estava próximo. Os republicanos, que estabeleceriam a separação constitucional entre Igreja e Estado e instituiriam o casamento civil, passaram a ser a própria representação do Anticristo. A Bíblia dizia que quando este chegasse à Terra, o fim do mundo estaria próximo. O alegado milagre no Juazeiro seria então a resposta dos Céus, a advertência celeste de que era chegada a hora do arrependimento final.

Cícero, que durante os longos primeiros quarenta anos de sua vida havia permanecido um sujeito anônimo fora das fronteiras do pequenino Juazeiro, começava a desfrutar de uma notoriedade crescente. Para os que acreditavam no milagre, ele era o santo benfazejo do Cariri. Para dom Joaquim, ao contrário, ele era a ovelha desgarrada, aquela que ameaça pôr a perder todo o resto do rebanho. Ao deixar de responder às duas cartas enviadas pelo palácio episcopal, Cícero caíra em descrédito perante o julgamento de seu superior imediato. Para o bispo, o indesculpável silêncio equivalia a uma confissão de culpa. No entender de dom Joaquim, o único remédio que restava era fazer cumprir a proverbial sentença: “Antes que o mal cresça, corte-se-lhe a cabeça.”

 

2001: RATZINGER REABRE O CASO

Eram nove horas da manhã. Como fazia todos os dias, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, 74 anos, atravessava a pé a praça de São Pedro, no coração da Santa Sé. De batina preta, boina de feltro escuro sobre os cabelos muito brancos, o proeminente teólogo era reconhecido como o mais poderoso interlocutor de Sua Santidade, o papa João Paulo II. Ratzinger percorreu com passos firmes o caminho e, diante do portão de ferro do Palácio do Santo Ofício, recebeu a habitual continência dos dois soldados da Guarda Suíça. Transposto o pórtico principal, chega-se às dependências da Congregação para a Doutrina da Fé – como desde 1965 passou a ser denominado o Santo Ofício, mais anteriormente conhecido pelo nome original, que fazia tremer a alma dos acusados de heresia: Inquisição Romana. No interior daquelas paredes de pedra, em pleno século XXI, ainda existe um tribunal religioso encarregado de julgar os que professam opiniões divergentes das consideradas oficiais pela Igreja.

Na condição de prefeito da Congregação, o equivalente contemporâneo ao cargo de inquisidor-geral, cabia a Joseph Ratzinger o papel de guardião da ortodoxia católica. Por isso, alguns dos segredos mais caros ao Vaticano eram conduzidos na velha valise de couro negro que ele sempre levava à mão direita.

No escritório, em cima da vasta mesa de trabalho, a pilha de papéis oficiais com o timbre da Santa Sé dividia espaço com um crucifixo de ouro, uma luminária, um porta-lápis e um pequeno calendário. Neste último, via-se a indicação: primavera de 2001. O cardeal, sentado em sua cadeira estofada de espaldar alto, preparou à mão o esboço de uma carta que seria enviada em caráter reservado à Secretaria-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. A correspondência dizia respeito a um delicado tema: a pertinência de uma possível reabilitação canônica de um sacerdote brasileiro falecido em 1934, aos 90 anos de idade. Alguém que levou para o túmulo o estigma de ter sido um proscrito da Igreja. Um clérigo julgado e condenado como insubmisso, contra o qual os inquisidores da época pediram a pena de excomunhão. Um reverendo maldito que, a despeito disso, continua a arrebanhar milhões de peregrinos e devotos, incansáveis perpetuadores de sua memória: o padre Cícero Romão Batista.

O diligente Joseph Ratzinger, é claro, tinha notícia dos cerca de 2,5 milhões de fiéis que acorrem todos os anos a Juazeiro do Norte, cidade a 520 quilômetros de Fortaleza, no interior do Ceará. O número de peregrinos que chegam ao local onde viveu padre Cícero impressiona. É como se toda a população de uma metrópole como Roma se deslocasse em massa, anualmente, para reverenciar um sacerdote banido das hostes da Igreja. Em Juazeiro, a multidão compacta paga promessas, acende velas, renova a fé, faz novos pedidos e invoca a proteção de seu guia espiritual.

No topo da serra que avizinha a cidade, foi erguida uma imagem gigantesca do padre Cícero, com 27 metros de altura, uma das dez maiores estátuas cristãs em concreto das Américas. Próximo à capela onde está enterrado o corpo do reverendo, na chamada Casa dos Milagres, o testemunho das centenas de milhares de graças alcançadas arrebatam o olhar de quem chega à porta. São os chamados ex-votos: fotografias e esculturas em madeira, cera ou barro, que reproduzem partes do corpo humano. Pernas, braços, mãos, cabeças. Muitas cabeças. Foram deixados ali por doentes terminais, alguns dos quais juram ter recuperado a saúde, aleijados que afirmam ter voltado a andar, cegos que dizem ter voltado a ver, loucos que asseguram ter recuperado o juízo. Para toda essa gente, padre Cícero é o santo milagreiro, canonizado pela devoção popular, embora proibido de entrar nos altares oficiais.

Difícil encontrar uma casa católica no sertão nordestino na qual não exista uma imagem de padre Cícero. Retratado sempre com o cajado, o chapéu e a batina, ele parece onipresente. Em Juazeiro, mais ainda. Ele está na fachada das lojas, dos supermercados, dos cartórios, das bodegas, dos comitês eleitorais. Estátuas de Cícero em gesso – e em tamanho natural – adornam até mesmo as agências das grandes redes bancárias instaladas na cidade. Ele só não está nas igrejas.

Para o Vaticano, tal veneração tem se tornado ainda mais eloquente diante da constatação de que, a cada ano, o catolicismo perde milhares de adeptos no Brasil. Segundo cálculos da própria CNBB, a sangria de fiéis é considerada alarmante. O país continua a ser “a maior nação católica do mundo”. Mas a última década assistiu à queda vertiginosa no percentual de católicos brasileiros, enquanto o contingente de evangélicos se multiplicou em idêntica proporção. Deixar que o culto a padre Cícero permaneça à margem da liturgia significa negar o acolhimento pastoral a toda uma preciosa legião de devotos. Ratzinger sabia disso. Tinha plena ciência da força do mito em torno do chamado Patriarca de Juazeiro.

É óbvio que o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não desconhecia também as graves acusações históricas que recaem sobre o homem Cícero Romão Batista. Elas não são poucas. Quando reunidas, constituem notórios obstáculos à idéia de anistiar, post-mortem, as penas que foram impostas ao padre, em vida, pelo Tribunal do Santo Ofício. A primeira incriminação que incide sobre Cícero é a de ter sido um mistificador, um aproveitador das crenças do povo mais simples, um semeador de fanatismos. Homem de idéias religiosas pouco ortodoxas, leitor de autores místicos, dado a ver almas do outro mundo e defensor de milagres não endossados pelo Vaticano, Cícero estaria mais próximo da superstição do que da fé, disseram dele os muitos adversários que colecionou no meio do próprio clero. Decorre daí outra incriminação, ainda mais incisiva: a de que nas vezes em que fora repreendido por seus superiores eclesiásticos agira como um rebelde e caíra em desobediência. Na rígida hierarquia clerical, desobedecer a um superior constitui pecado gravíssimo. Almas indóceis à autoridade de bispos e cardeais não vão para o Céu, assim determina a lei da Igreja.

A relação de Cícero Romão Batista com jagunços e cangaceiros tem sido outro entrave à possível anistia cogitada por Ratzinger. Como absolver das penas do Tribunal do Santo Ofício um padre sobre cujas costas os detratores jogam a responsabilidade pela concessão da patente de capitão ao mais feroz dos bandoleiros nordestinos, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, em troca do compromisso para que o “Rei dos Cangaceiros” enfrentasse, em 1926, a célebre Coluna Prestes em sua passagem pelo sertão? Como indultar um clérigo que mesmo antes disso, em 1914, teria benzido rifles, punhais e bacamartes, aparato bélico entregue à jagunçada para promover uma sedição armada que envolveu saques violentos a várias cidades interioranas, produziu a morte de centenas de inocentes e resultou na derrubada de um governo legal? Como redimir as penalidades de um sacerdote que se transformou em líder político, fez-se o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, elegeu-se deputado federal, tornou-se vice-presidente (cargo então equivalente ao de vice-governador) do Ceará e arquitetou um pacto histórico entre os poderosos coronéis do sertão? Como perdoar um padre que acumulou vasto patrimônio à custa das esmolas e das doações de fiéis? Para os algozes de Cícero, não faltariam argumentos contrários a uma reabilitação canônica.

Entretanto, do mesmo modo, não são poucos os que definem a eterna tempestade de acusações contra Cícero como frutos de inverdades históricas, interpretações distorcidas e preconceitos elitistas que foram se acumulando, ao longo do tempo, em torno de tão controvertida figura. A carta que o cardeal Joseph Ratzinger escreveu naquela manhã de primavera tinha o objetivo de retomar – com a chancela do brasão do Vaticano – uma questão sobre a qual se debatem, por décadas a fio, apologistas e difamadores de Cícero Romão Batista.

Quem foi esse homem misterioso que, mesmo tendo um decreto de excomunhão assinado contra si, arrebatou o coração das massas e passou à memória coletiva e ao panteão popular como o santo Padim Ciço? Era um apóstolo visionário que soube entender a língua do povo, converteu multidões com sua singela pastoral sertaneja, mas ainda assim foi injustiçado por um clero intransigente, etnocêntrico, refratário às diferenças? Ou foi um sujeito astuto que usou a batina em seu próprio benefício, amealhou fortunas em terras, imóveis e gado, alimentando a sede de poder na miséria e na ignorância de seus devotos?

 

Não parece ter sido coincidência. Poucos meses depois de a carta de Joseph Ratzinger ter alcançado o devido destino – a sede da CNBB, em Brasília –, um novo bispo diocesano desembarcou no pequeno terminal de passageiros do Aeroporto Orlando Bezerra de Menezes, em Juazeiro do Norte. O homem nomeado por João Paulo II para administrar dali por diante a diocese do Crato, à qual está subordinada a forania de Juazeiro, é um italiano sorridente e de fala serena. Quando perguntado se vem com alguma missão específica – e se tal missão tem relação direta com a possível reabilitação de padre Cícero –, ele silencia. Em alguns casos, dependendo do interlocutor, vai além: esboça um de seus enigmáticos sorrisos.

O recém-chegado, dom Fernando Panico, nascido em 1946 na cidade de Tricase, sul da Itália, exibe um currículo exemplar. Além de sobrinho de um cardeal com respeitáveis serviços prestados à Santa Sé – dom Giovanni Panico, ex-núncio em Portugal –, traz na bagagem os diplomas de bacharel em filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana e em teologia pelo Pontifício Ateneu Santo Anselmo, ambos em Roma. Mestre em teologia litúrgica e doutor em liturgia, Panico está no Brasil desde 1974. Aqui, sempre trabalhou em dioceses nordestinas. Primeiro no Maranhão, onde foi reitor de seminário. Depois no Piauí, como bispo de Oeiras e Floriano. Conhece bem, portanto, o universo e os matizes da religiosidade popular dos sertões. Está familiarizado com as singularidades das manifestações de fé do catolicismo caboclo, que tem em padre Cícero uma de suas maiores referências.

Tão logo tomou pose no comando da diocese, em junho de 2001, dom Fernando Panico demonstrou, sem meias-palavras, claramente ao que vinha. Do alto do púlpito, durante a homilia que fez na primeira missa como novo bispo do Crato, anunciou o propósito de encorajar e apoiar novos estudos críticos sobre a trajetória de Cícero Romão Batista. Em uma carta pastoral aos fiéis, datada de 20 de outubro daquele ano, reafirmou o mesmo propósito: “[Ele] merece nosso carinho, apesar de tudo o que contra ele aconteceu e se tem escrito”, observou o bispo a propósito do ambíguo sacerdote. Tais afirmações causaram mal-estar nos membros mais tradicionais do clero do Crato, que têm Cícero na conta de um embusteiro. “Padre Cícero chegou ao Juazeiro missionário, tornou-se visionário e acabou milionário”, costumava dizer dom Newton Holanda Gurgel, o antecessor de dom Fernando, que se viu compelido a renunciar ao cargo ao completar 75 anos de idade e com isso, não sem visível incômodo, passar a mitra ao sucessor.

Não há dúvidas de que os ventos da Igreja pretendem soprar em outra direção. O que está em cena não é uma mera questão paroquial, uma nova frente de batalha na eterna rivalidade entre cratenses e juazeirenses. Naquele mesmo mês de outubro, dom Fernando embarcou para Roma, acompanhado dos demais bispos do Ceará e Piauí, por ocasião da visita ad limina ao Vaticano – uma obrigação imposta pela Igreja a seus prelados a cada cinco anos, que devem se ajoelhar diante dos túmulos dos apóstolos são Pedro e são Paulo, além de serem recebidos pelo papa para reportar o estado pastoral de suas dioceses. Dom Fernando aproveitou a viagem à Cidade Eterna e logo obteve uma audiência com o cardeal Joseph Ratzinger, no Palácio do Santo Ofício. Na pauta do encontro com o prestigioso prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o assunto foi um só: padre Cícero.

Ratzinger não só estimulou dom Fernando a levar adiante os novos estudos sobre Cícero como deu instruções detalhadas a respeito da forma de conduzir o processo, de acordo com os rituais e procedimentos da Congregação. Como conselho adicional, Ratzinger sugeriu que as concorridas romarias a Juazeiro do Norte deviam ser incentivadas e acolhidas, ao contrário do que fazia o bispo anterior, dom Newton. A recomendação do cardeal foi obedecida à risca. Algum tempo depois da volta ao Brasil, dom Fernando fez publicar uma segunda carta pastoral aos fiéis, sintomaticamente intitulada “Romarias e Reconciliação”. O sinal de distensão entre a Igreja e os romeiros, principal herança deixada pelo sacerdote proscrito, ficou evidente: “Mais do que nunca é necessário reconhecer as romarias de Juazeiro do Norte como uma profunda experiência de Deus e legítima experiência de fé”, dizia a carta do bispo aos diocesanos.

Para seguir os desígnios ditados por Roma, dom Fernando organizou uma comissão multidisciplinar de estudos, a quem coube mergulhar nos arquivos oficiais da diocese, mas também em acervos particulares e de instituições públicas, para tentar legitimar a possível reabilitação de Cícero Romão Batista. Pelos trâmites do Vaticano, reabilitar o padre significaria o primeiro passo a caminho de uma presumível canonização. Após ele ser devidamente perdoado pela Congregação da Doutrina da Fé, o segundo passo seria a abertura do processo de beatificação, depois do qual Cícero passaria a ser declarado um “bem-aventurado”, o degrau imediatamente inferior ao seu reconhecimento como santo, quando enfim poderia ser elevado à honra dos altares.

A comissão organizada por dom Fernando, obedecendo às diretrizes de Ratzinger, foi composta por especialistas, mestres e doutores em diversas áreas do conhecimento: antropologia, filosofia, história, psicologia, sociologia e teologia. Para evitar pressões oriundas do clero do Crato, os membros passaram a se reunir em São Paulo, onde recebem a visita de dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal arcebispo-emérito da diocese paulista, que já revelou simpatia pela reabilitação canônica do padre Cícero. Durante cerca de cinco anos, a comissão de notáveis trabalhou estrategicamente em silêncio, reunindo informações, acessando papéis até então intocáveis, trazendo à luz novos elementos para um julgamento póstumo de Cícero Romão Batista.

Às 21h37 de um sábado, 2 de abril de 2005, o papa João Paulo ii exalou o último suspiro. Dezessete dias depois, o conclave de cardeais reunido no Vaticano autorizou que a fumaça branca fosse lançada pela chaminé da Basílica de São Pedro. Habemus Papam, logo entenderam os milhões de católicos espalhados pelo planeta, que testemunharam tudo pela televisão. O cardeal Ratzinger é eleito o 265º sucessor de Pedro e coroado como Bento XVI. O homem que iniciou o processo de reabilitação do padre Cícero é agora o chefe supremo da Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Em 30 de maio de 2006, pouco mais de um ano após Bento XVI iniciar seu pontificado, uma comitiva brasileira liderada pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, chegou ao Vaticano. Levava consigo onze grossos volumes encadernados em capas vermelhas e identificados com letras gravadas em dourado. São cópias de documentos religiosos e seculares, incluindo a vasta correspondência trocada entre os protagonistas da história tumultuosa de Cícero. Também estão ali os relatórios e os pareceres da comissão de especialistas encarregada dos novos estudos em torno do caso. Um volume à parte traz cerca de 150 mil assinaturas em prol da reabilitação, às quais se soma um abaixo-assinado no qual se lê o nome de nada menos que 253 bispos brasileiros favoráveis à causa.

Uma carta de dom Fernando ao papa completa a papelada. “Venho com toda esperança e humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele sofridas”, escreveu o bispo. “Posso testemunhar, Santidade, que as nossas romarias são um baluarte da fé dos pobres, filhos queridos da Igreja Católica, cuja devoção contém e freia, por assim dizer, o avanço das seitas evangélicas na nossa região”, explicita. Na carta, dom Fernando recordou que o mesmo Bento XVI, então cardeal, é quem lhe sugerira reabrir os estudos históricos sobre Cícero. “A comissão de estudiosos, ao realizar as novas pesquisas, manteve-se numa discrição objetiva das fontes. À Congregação para a Doutrina da Fé compete a análise de nosso trabalho. E a Vossa Santidade a palavra conclusiva.”

Nas prateleiras empoeiradas do antigo Tribunal do Santo Ofício, por determinação de Bento XVI, os documentos secretos que resultaram na expulsão de Cícero das fileiras da Igreja começam a acordar de um sono de quase 100 anos.