ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O quiabo deixa o purgatório
De cambulhada, ele pode chegar a 275 reais
Bruno Moreschi | Edição 23, Agosto 2008
Quando nem imaginava se tornar um dos mais famosos cozinheiros brasileiros, o menino Alex Atala ficava bisbilhotando quando o avô preparava “a gororoba tradicional de domingo”. Numa pia de mármore, em convívio pacífico, havia rã de frigideira, peixe assado, torresmo de boteco, frango banhado a vinho e muito, muito quiabo frito. Atala concluiria que a culinária era a mais divertida das alquimias.
Crescido, foi fazer seu aprendizado em cozinhas francesas. Inquieto, estampou mais de vinte tatuagens no corpo e colecionou safanões de cozinheiros estrelados. Foi esnobado também. Descobriu que a alta gastronomia podia ser baixa e que nariz em pé era uma patologia da profissão. Certos ingredientes não freqüentavam as melhores panelas por serem considerados insuportavelmente pedestres. Entre os mais malditos, o quiabo, o que muito o incomodava.
O enfant terrible das caçarolas decidiu levantar o estandarte, mas, para não ser acusado de provincianismo gastronômico, deixou de lado as lembranças avoengas e invocou Paul Bocuse e Jöel Robuchon. Os papas da alta culinária francesa haviam dado dignidade ao coq-au-vin e ao purê de batata, respectivamente. O pobre galo ao vinho era comida de campônios. Quanto às origens desclassificadas do purê, passemos.
O discurso pró-quiabo não surtiu efeito nas cozinhas da França e da Bélgica por onde Atala perambulou. De volta ao Brasil, ele se empregou como um dos cozinheiros do extinto Filomena e, aqui, em terras pátrias, achou-se no direito de fritar quiabo enquanto outros marinavam ostras. O cheiro espantou seu chefe, que veio ver do que se tratava. Prevendo a bronca, Atala fez biquinho: “Abelmoschus esculentus.” Era mais uma batalha perdida. O nome científico não foi suficiente para mascarar a baba hedionda.
Em outras paragens, entretanto, havia gente fazendo avançar a causa do excluído. A militância em prol dos ingredientes marginais levara a gaúcha Roberta Sudbrack a inventar o corajoso caviar de quiabo. Entre 1995 e 2002 o prato bombou, a ponto de se tornar um dos preferidos de Fernando Henrique Cardoso na época em que Roberta comandava a cozinha da Presidência da República. Visitantes oficiais como Bill Clinton, Jacques Chirac e Tony Blair tiveram estômago para abrigar o quiabo. Era um primeiro passo.
Em São Paulo, Atala continuava a temer a reação do público. Em 1999, quando abriu o restaurante D.O.M., ele ainda camuflava o quiabo no molho de sua aclamada arraia com castanha de caju. Ninguém desconfiava. Aos sábados, quando as portas se fechavam, o subchefe Geovane Carneiro mandava às favas a comida de bom-tom e preparava para a equipe um roceiro frango com quiabo. O sucesso era tanto que, pelas sombras, cozinheiros de outros restaurantes de preços siderais apareciam para se regalar. Entravam pelos fundos.
Com tantos prenúncios, Atala concluiu que o quiabo poderia, sim, vir a ser um par galante de brandades de palmito com anchova da Cantábria. Durante um ano, tentou encontrar maneiras de incluí-lo em seus pratos. Os fracassos se sucederam. Perto de outros ingredientes de maior intensidade gustativa, o quiabo murchava feito papel-crepom na chuva.
Um dia Atala pediu que seu exército de assistentes se afastasse e, isolado num canto da cozinha, perante uma fileira de quiabos trazidos da feira mais próxima, jurou combater até a vitória. Da celulose do quiabo, produziu uma esbelta fibra. Ferveu as sementes até livrá-las do estigma adstringente do tanino e obteve a pasta temperada. A baba nojenta foi metamorfoseada num aristocrático caldo gelatinoso. Por fim, em homenagem ao avô, Atala fritou o resto sem nenhuma frescura. Estava concluída a obra. O cozinheiro contou as camadas produzidas por seu labor — fibra, pasta, caldo e fritura —, pensou um instante e batizou o prato: Quiabo, quiabo, quiabo e quiabo. O tímido se tornara um egocêntrico, um exibicionista.
Verdade seja dita: as pessoas não se amontoam na porta do D.O.M. com ganas de comer Quiabo, quiabo, quiabo e quiabo. “Ainda não”, sublinha Atala, o sonhador. Fora a nostalgia, a torcida para que o prato vingue tem explicação econômica. O quilo sai por 3,50 reais na feira; no restaurante, de mistura com outros sete pratos do menu degustação, vai a 275 reais. Também há razões práticas. Veja-se o caso da paca. Bem que Atala gostaria de servir paca com purê de feijão branco todos os dias, mas não é sempre que consegue encontrar uma boa peça da carne. O problema inexiste com o quiabo: a planta maldita dá o ano inteiro.
Mas cautela e caldo de galinha nunca etc. Nada está consolidado. Não há como saber se o nouveau quiabo é mero divertissement exótico, se não virará um modismo ou — fim dos tempos — se não descerá ao nível do petit gâteau. Atala costuma dividir as receitas em duas categorias: as eternas e as duradouras. Prefere as últimas, gosta do risco. Semanas atrás ele sonhou que morria sufocado por obra e graça de jilós que lhe desciam goela abaixo. Ao acordar com um gosto amargo de casca na boca, pressentiu o desafio.
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