Nada promissora a entrevista do futuro secretário de Cultura do Rio de Janeiro, publicada segunda-feira no (“Quero uma cultura lucrativa”, Segundo Caderno, p. 1, 26/11/2012).
O dilema do plano estratégico apresentado é mais velho que a Sé de Braga. Embora o cinema ainda seja jovem, se comparado à catedral, a polêmica arte versus indústria já é anacrônica há várias décadas. A separação de guichês, anunciada por Sérgio Sá Leitão, entre “projetos que visem ao lucro” e “produções sem ambições comerciais”, além do mais, é falaciosa por pressupor que se possa classificar filmes de antemão nessas categorias estanques e saber quais irão obter sucesso de público. “Visar lucro”, todos devem pretender. E ninguém é destituído de “ambições comerciais”.
Não é preciso negar a vocação do cinema para (a) “agradar a um grande, um enorme público” (André Bazin, 1948); (b) “fazer um certo número de pessoas dos dois sexos sentarem em um certo número de cadeiras numeradas, depois de terem pago uma certa quantidade de dinheiro na bilheteria” (René Clair, 1936); (c) “a massa, para a massa mais gigantesca com a qual o autor possa sonhar” (René Barjavel, 1944) etc. – não é preciso rejeitar nada disso para reconhecer que mesmo envolvendo grandes investimentos, e sendo um ofício que depende de habilidades técnicas, o cinema não deixa de ser também, e na mesma proporção, uma forma de expressão artística.
Entendido como produto cultural, uma verdadeira política de Estado para o cinema só será efetiva se tiver como meta conciliar a busca de audiência com a intenção de ser um meio que faça pensar. Entretenimento só é incompatível com reflexão para quem veste a carapuça da mediocridade.
Nesses termos, ao transpor o conceito de competitividade para a produção artística e cultural, Sá Leitão comete um erro elementar. Filmes brasileiros só poderiam demonstrar sua capacidade de competir no mercado interno se os termos da competição com o cinema estrangeiro fossem justos. Enquanto permanecerem, como sempre foram, desiguais, é preciso ter a honestidade de reconhecer que mesmo filmes com bons resultados comerciais estão longe de serem competitivos.
Prova disso é Sá Leitão pretender continuar fomentando “projetos que visem ao lucro”. Mas, fomentar por quê, perguntaria uma alma cândida: se a produção é considerada lucrativa, por que precisa ser fomentada?
De um secretário que ouça falar em cultura, não se espera que destrave o pino de segurança da sua pistola Browning (frase comumente atribuída a Hermann Göering), nem que puxe o talão de cheque (como diz o personagem do produtor ao de Fritz Lang, em O desprezo). Sá Leitão está longe desses extremos, mas sistematicamente profeça um desmedido ufanismo. Por difícil que seja, é preciso evitar formulações simplistas que aparentam ser novidade redentora. E reconhecer a complexidade da equação cinematográfica, além da diversidade inerente ao setor e o compromisso de não criar guetos.
Desburocratizar a máquina pública, outro projeto anunciado por Sá Leitão, é intenção louvável. Mas não será uma contradição em termos? A inadequação originária dos organismos municipais e federais de cinema parece infensa a adaptações que tentem lhes conferir a necessária agilidade.
Quanto à intenção de estabelecer “um fomento automático, com base no desempenho que o proponente obteve no ano anterior”, seria bom lembrar que esse não pode ser um critério exclusivo. Afinal, cinema é feito de altos e baixos, sucessos e fracassos, e ninguém pode ter performances olímpicas continuadas, ano após ano, por décadas.
Seria preciso que nossos gestores públicos fossem um pouco mais humildes, não pretendessem sempre ter solução pronta para tudo e não adotassem como dogma a impiedosa máxima segundo a qual “um diretor de cinema vale tanto quanto o seu último sucesso ou fracasso”.
Por mais difícil que seja avaliar projetos de produção de filmes, pois sempre há um componente subjetivo, é preciso ter a coragem de considerar dois critérios como prioritários: mérito artístico e currículo do proponente, asseguradas as oportunidades para os iniciantes.
É necessário, além disso, que alguém responda pelas decisões tomadas. Editais podem parecer democráticos mas não passam de um processo decisório camuflado e irresponsável, pelo qual ninguém responde – dois anos depois, quando o filme fica pronto, quem fez parte da comissão que escolheu um filme em detrimento de outro permanece anônimo, sem qualquer vínculo com o resultado alcançado.
Para concluir, mesmo correndo o risco de ser tachado de anacrônico, um trecho da intervenção de Ricciotto Canudo na reunião organizada pela Federação do Espetáculo e o Clube dos Amigos da Sétima Arte, em 7 de julho de 1921: “Nós, os intelectuais e os artistas, que trabalhamos com nosso cérebro, procurando a alma humana e sua expressão, nós queremos que o nível intelectual, sentimental, moral do cinema seja elevado.
[…] E consideramos ao mesmo tempo, retomando o papel formidável do cinema, estar chocados com o absurdo das produções. Sempre os mesmos temas, as mesmas histórias, no fim das quais não se pensa em nada, não se adquiriu nada de novo, e que levam a dizer, depois de uma sessão de três horas: ‘Estou um pouco mais embrutecido, perdi alguma coisa da minha dignidade de homem’…
[…] O cinema, como um livro, como não importa qual obra de arte, deve representar a vida de um povo, a raça de onde surgiu. A sensibilidade profunda, a mentalidade de um povo é fixada em uma obra de arte. É preciso defender, é preciso salvar o filme francês, para manter íntegro e desenvolver em sua originalidade o gênio nacional. É preciso lutar contra o filme estrangeiro que, a longo prazo, […] nos faria ter uma mentalidade estrangeira inaceitável.”
Questões antigas que continuam atuais.