Já faz tempo que a colecionadora de arte Sandra Hegedüs foi apelidada de “tornado brasileiro” pelo jornal francês Le Monde. A alcunha lhe foi dada em 2009, quando essa paulistana de personalidade forte e energia inesgotável criou uma fundação sem fins lucrativos para promover artistas de fora do eixo Europa-Estados Unidos, a SAM Art Projects. Em pouco tempo, a iniciativa fez de Hegedüs, que vive em Paris há mais de trinta anos, um nome de peso no cenário artístico francês. Ela emplacou projetos em instituições prestigiosas como o Museu do Louvre e o Museu de Arte Moderna de Paris, e conseguiu impulsionar a carreira de mais de trinta artistas – dentre eles os brasileiros Henrique Oliveira e Rodrigo Braga –, por meio de prêmios e residências. Seu projeto mais importante, um concurso anual organizado em parceria com o Palais de Tokyo, rendia a cada um dos vencedores uma temporada de três meses na capital francesa, um cheque de 20 mil euros (cerca de 112 mil reais) e uma exposição individual no museu, um dos mais importantes museus de arte contemporânea do planeta. Até que, quinze anos depois do início de uma profícua parceria entre a mecenas e a instituição, o tempo virou – e o tornado brasileiro se transformou em furacão.
No último dia 5 de maio, um domingo, Sandra publicou um post em sua conta no Instagram com 146 mil seguidores anunciando a decisão de desligar-se do Conselho de Administração dos Amigos do Palais de Tokyo, uma associação formada por cerca de novecentos apoiadores europeus e estrangeiros que, em contrapartida a sua contribuição financeira, gozam de privilégios como visitar as exposições na companhia de seu curador ou artista. O motivo do rompimento: o desacordo com a decisão do museu de sediar a mostra Passé Inquiet: Musées, Exil et Solidarité, que ela considerou antissemita, o que a instituição nega. Na carta aberta publicada na rede social, Hegedüs declara não querer ser associada “à nova orientação muito politizada do Palais (…), voltada à defesa de ‘causas’ como o wokeísmo, o anticapitalismo, pró-Palestina etc.” Em suas palavras, a exposição “aborda história do conflito [entre Israel e Palestina], dando voz, sem contradição, a comentários racistas e violentos”. Para qualificar a mostra, usou palavras fortes: “tendenciosa, mentirosa e vergonhosa”. Já nas primeiras horas o post ultrapassou a marca das 13 mil curtidas e reuniu mais de 500 comentários, a maior parte deles positivos para a autora.
O mundo das arte reagiu. Na semana seguinte, uma série de artigos em apoio a Hegedüs ou em defesa da instituição ganharam a imprensa e as redes sociais. No geral, as mídias de direita (o jornal Valeurs Actuelles e a revista Transfuge, por exemplo) elogiaram o gesto da mecenas e destacaram sua “coragem”; as de esquerda (os jornais Le Monde e Libération), acusaram-na de macular a imagem do Palais de Tokyo e de atentar contra a liberdade de criação. Sem citar o nome da brasileira, a Associação Francesa de Desenvolvimento dos Centros de Arte Contemporânea publicou no Le Monde uma “carta de apoio ao Palais de Tokyo e à liberdade de programação” em que denuncia um “aumento das tentativas de intimidação” e de “apelos à censura” – representantes de instituições de peso como a Fondation Cartier e o Museu Reina Sofía figuram na lista de assinaturas. A polêmica reanimou um debate que, em tempos de luta decolonial, com maior diversidade de corpos, pessoas e representações nas artes, tem ganhado importância: deve haver limites à criação e à curadoria artística?
No caso de Hegedüs, sua “sensibilidade judia” traçou o limite. Ela é filha de pai húngaro e mãe francesa, migrantes judeus chegaram a São Paulo após a Segunda Guerra Mundial e depois de uma temporada na Suíça, onde foram acolhidos como refugiados. Sandra cresceu ouvindo histórias sobre o extermínio de seus antepassados nos campos nazistas, mas foi no contexto do atual conflito entre palestinos e israelenses que ela assumiu a fervorosa militância pró-Israel nas redes sociais. “Minha família nunca foi praticante da religião ou da cultura judaicas”, conta em entrevista à piauí. “Minha identidade judaica se fortaleceu depois que eu saí de casa e me deparei pessoalmente com o preconceito e o ódio em relação ao meu povo.” Uma vez que a exposição em questão faz, na opinião de Hegedüs, “uma incitação ao ódio e à eliminação dos judeus”, sua permanência no board de amigos do Palais de Tokyo tornou-se insustentável. Ela faz questão de dizer que não é contra a Palestina – seu combate tem como alvo o Hamas.
Passé Inquiet: Musées, Exil et Solidarité (em português, Passado Inquieto: Museus, Exílio e Solidariedade) não se configura propriamente como uma exibição de arte; sua abordagem é principalmente documental e histórica. A mostra reúne cartazes, panfletos, vídeos e principalmente fac-símiles de artigos de revistas e jornais sobre o engajamento de artistas, no período 1960-80, nas lutas de emancipação de diferentes povos, especialmente do Sul Global. Além de arquivos sobre a Palestina, são expostos, com menos destaque, documentos ligados à resistência cultural em Cuba, na Nicarágua, no Chile e na África do Sul.
No domingo, dia 26, a piauí visitou a exposição, que convida mais à leitura de artigos e documentos do que à contemplação de imagens. A maior parte do conteúdo celebra e promove a Palestina sem fazer menção aos judeus. Mas há exceções. Entre elas, por exemplo, um cartaz em que vários animais aparecem em seus respectivos habitats (a galinha no poleiro, o peixe no mar, o passarinho no ninho…), cujo texto menciona “inimigos” e no qual a palavra casa é repetida diversas vezes, numa construção de linguagem que busca reforçar a conexão entre palestinos, território e lar: “Onde fica a casa dos palestinos? Na Palestina. Hoje os palestinos não vivem em sua casa. Na sua casa vive o seu inimigo. O que fazer para que os palestinos recuperem a sua casa? Com a luta o palestino recuperará a sua casa.”
É possível, claro, que a leitura minuciosa de todo o conteúdo textual exibido revele abordagens mais agressivas em relação aos judeus. Uma vez que nas paredes nada grita ofensas antissemitas (poderíamos falar no máximo em sussurros), a reação dela teria sido exagerada? “Uma instituição que existe sob a tutela do Estado não deveria promover essa exposição, ainda mais num contexto de guerra!”, reage. “É um absurdo, uma insensibilidade, um desrespeito com o povo judeu. E, aliás, o que faz num museu de arte uma exposição… que não mostra obras de arte?!” Leonardo Tonus, professor de estudos culturais lusófonos na Sorbonne Nouvelle, disse à piauí que “é papel das instituições culturais manter-se em fricção com o mundo, inquietar as pessoas”. Para ele, o episódio contrapõe uma posição ideológica individual ao interesse coletivo da liberdade de expressão.
A hoje ex-parceira do Palais de Tokyo garante só ter sabido da existência de Passé Inquiet quando começou a receber mensagens de repúdio nas redes sociais, enviadas por “pessoas que estiveram lá e ficaram chocadas”. Muitas teriam pedido sua intervenção junto à instituição. “Encaminhei as críticas e eles sequer me responderam. Como não tinha a mínima vontade de me encontrar com o pessoal do Palais, pedi ao meu namorado para fazermos uma visita virtual”, comentou Sandra, que não visitou a exposição pessoalmente. Suas considerações ganharam forma após uma chamada de vídeo – o namorado no museu, ela na tela do celular – em que a brasileira percorreu a mostra, cerca de três meses depois de sua inauguração (Passé Inquiet estreou em 16 de fevereiro e vai até 30 de junho).
De seu lado, o Palais de Tokyo reagiu ao rompimento com a publicação de uma nota assinada pelo seu presidente, Guillaume Désanges: “Nossa programação não é partidária, ela é antes de tudo reflexo das preocupações dos artistas. O Palais de Tokyo, sendo um lugar de criação contemporânea em relação direta com a atualidade da arte, muitas vezes se encontra, como a maior parte das instituições culturais internacionais, no centro de questões políticas – e não deve negá-las.” Aos jornais, o gestor declarou que a escolha de Passé Inquiet para o calendário de 2024 foi feita em 2022, ou seja, antes do início do atual conflito no Oriente Médio. Ele anunciou que reforçaria a presença de mediadores (profissionais que circulam pelo museu para tirar dúvidas dos visitantes sobre as obras) na exposição, valorizando assim a missão do Palais de Tokyo de atuar como “um lugar de debate, de reflexão e de encontro”.
Para Sandra Hegedüs, ao longo dos últimos dois anos o Palais foi se tornando lugar de desencontro – desde a chegada de Désanges. Segundo ela, foi por decisão dele que há um ano o tradicional evento em parceria com a SAM Arts foi retirado da programação. O motivo alegado: a pegada de carbono do projeto. “É um cara ultraecológico… Como o concurso tem como premissa que os artistas viagem até a França, foi considerado inadequado”, esclarece.
Uma reportagem deste mês do jornal Le Monde, baseada em documentos consultados pelo jornal e em fontes anônimas, conta outra história. A anulação aconteceu em decorrência dos altos custos de produção das exposições SAM Arts, cujas faturas ficam a cargo do Palais de Tokyo (a reportagem traz como exemplo a conta de 117.500 euros gastos, em 2017, com a exibição do japonês Taro Izumi). O texto menciona ainda um pedido de comissão feito pela fundação da brasileira de um percentual de 15% sobre o valor das obras. Ela garante que ao longo dos anos nenhuma participação financeira foi solicitada aos artistas ou a suas respectivas galerias, mas reconhece ter considerado a possibilidade de criar “um sistema virtuoso” justamente para solucionar o problema “dos excedentes de orçamento”. Muitas das exposições realizadas por Hegedüs chamaram atenção pela monumentalidade das obras. Na elogiada mostra Mer Intérieure, de 2016, por exemplo, Rodrigo Braga instalou na esplanada em frente ao Palais cinquenta grandes blocos de pedra extraídos de minas de calcário; em 2013, Henrique Oliveira criou especialmente para o museu uma escultura de madeira que, entrelaçando-se a suas pilastras, impunha sua presença à arquitetura do espaço. Na reportagem do jornal Le Monde, a mecenas declarou ter gasto com as mostras SAM Arts, no decorrer de toda a parceria com o Palais de Tokyo, “mais de 1 milhão de euros”, através de sua fundação.
Apesar do fim do casamento entre Hegedüs e o Palais de Tokyo, o projeto de residências segue em frente, com novos parceiros. Atualmente, e até meados de junho, a artista Efe Godoy realiza uma exposição individual – Ser uma mistura, um desenho, um desejo (To be a mixture, a drawing, a desire) – no Drawing Lab, centro de arte privado parisiense dedicado ao desenho contemporâneo. Efe, natural de Sete Lagoas, em Minas Gerais, foi para a Europa, enquanto a franco-britânica Alice Anderson fazia o caminho inverso. A escultora e videoartista esteve no Brasil para uma temporada de pesquisa junto ao povo Krenak, em Minas Gerais, a partir da qual irá realizar uma mostra em Paris em 2025, inspirada pelo filósofo indígena Ailton Krenak e suas “ideias para adiar o fim do mundo” (a frase faz alusão ao título do livro mais famoso dele).
Dentre os inúmeros nomes acolhidos pela fundação SAM Arts está o de Marcia Tiburi, a conhecida filósofa que também é artista plástica. Depois de ter sido candidata pelo PT ao governo do Rio de Janeiro em 2018, Marcia exilou-se por iniciativa própria em Paris ao longo do governo Bolsonaro, citando ameaças de morte. Além de receber uma bolsa da Artist Protection Fund, ela também foi patrocinada por Hegedüs, que lhe deu apoio financeiro para montar um ateliê e criar pinturas que foram reunidas numa exposição intitulada Terradorada, apresentada na prefeitura do 10º distrito de Paris em outubro de 2022. Hegedüs não é de esquerda, tampouco de direita. “Sou de centro”, ressalta ela, que nas últimas eleições votou em Lula. Diz ter se arrependido, principalmente em razão das duras críticas que o presidente brasileiro vem fazendo às ações de Israel em Gaza, comparando-as ao genocídio do povo judeu pelo governo nazista.
Sandra Hegedüs nasceu em São Paulo em 1964 e estudou cinema na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), graduando-se em 1990. Nos anos de juventude, tocou bateria, juntamente com duas amigas tambem judias, num grupo de punk rock feminino chamado Dachau Dolls, nome que faz referência ao primeiro campo de concentração nazista, construído em 1933 na cidade de mesmo nome. Costumava improvisar com amigos performances extravagantes. O “portfólio” do grupo incluía visitas ao cinema do Masp com roupas de turistas de safari e ao McDonald’s com roupas chiques e uma estola de pele em volta do pescoço, enquanto as colegas vestiam uniforme de empregada doméstica. Completava a cena a personagem de uma menina malcriada que, durante a refeição, fazia de tudo para chamar a atenção das mesas vizinhas.
No início dos anos 1990 mudou-se para Paris na companhia de um então namorado, fotógrafo de moda. Não sabia falar francês, se sentia uma outsider, mas com a ajuda do “jeitinho brasileiro” foi abrindo portas. Trabalhou como produtora de documentários e chegou a montar sua própria agência no ramo. O namoro acabou e ela continuou em Paris.
Dez anos depois de sua chegada à Europa, Hegedüs se casou com Amaury Mulliez, herdeiro de uma das famílias mais ricas (e discretas) da França. Os Mulliez são atuantes no ramo da distribuição e donos das redes Leroy Merlin e Decathlon, dos supermercados Auchan e de várias outras empresas. O casal teve três filhos: dois meninos e uma menina. Bem-humorada, nos anos em que esteve dedicada ao papel de mãe e esposa, Sandra circulava com cartões de visita em que se lia, abaixo do nome, o seu “cargo”: dona de casa.
Foi por iniciativa dela que a família começou a colecionar arte e a praticar o mecenato cultural, algo que, se era novidade entre os Mulliez, sempre foi uma prática em outras linhagens abastadas do país, tais como os Pinault, Arnault ou Bettencourt. Ao perceber que os amigos demonstravam curiosidade e interesse pelas obras de artistas brasileiros – Dora Longo Bahia e Nazareth Pacheco, por exemplo – Sandra teve a ideia de começar a “fazer a ponte” entre o público europeu e artistas de países até então marginalizados pelas grandes instituições.
Essa atuação artística iniciada há quinze anos, somada a propostas de outras instituições – como a Bienal de São Paulo que, em 2021, deu mais espaço à arte indígena –, em diálogo com grandes centros de arte ao redor do mundo, ajudou no aumento de visibilidade de artistas e curadores que estão fora da Europa e dos Estados Unidos, além de posicionar a pauta como um tema central do setor. Não à toa, 2024 marca a primeira edição liderada por um latino-americano da Bienal de Arte de Veneza. A megaexposição atualmente em cartaz na Itália, sob curadoria de Adriano Pedrosa (curador-chefe do Masp), tem como título Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere (Estrangeiros em todos os lugares) e busca justamente dar protagonismo a nomes historicamente invisíveis aos olhos das instituições, seja por questões de nacionalidade, gênero ou raça.
Separada desde 2015, Hegedüs segue colecionando arte. Seu apartamento tem obras por toda parte – nas escadas, nos banheiros, no teto, em qualquer pedaço de parede. Durante o período de confinamento provocado pela Covid, seu nome, que já era respeitado e conhecido pelas instituições culturais, chegou ao grande público. Ao participar de uma live a convite de Consuelo Blocker – filha da empresária e consultora de moda Costanza Pascolato e sua amiga de infância – Hegedüs gostou do que viu e tornou-se influencer. Apaixonada por viagens, ela não para de percorrer o mundo. E vai compartilhando com seus seguidores as inúmeras exposições que tem o privilégio de visitar.
Hegedüs não entende por que sua saída do Palais de Tokyo provocou tanto barulho. “Nunca tive a intenção de me posicionar contra a liberdade curatorial, que deve, sim, ser respeitada”, diz. “Cabe apenas a mim escolher com quem estabelecer parcerias e decidir onde colocar o meu dinheiro. Eu prezo muito a liberdade e por isso fiz uso da minha, ora! Se eu resolver investir num zoológico, ninguém tem nada com isso.”