A maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul deixou o sistema de saúde de Porto Alegre de joelhos. Na manhã de sexta-feira, 10 de maio, a conta era desalentadora: 36 unidades básicas de saúde amanheceram fechadas por causa de danos estruturais ou com serviços interrompidos para dar suporte aos abrigos temporários, montados para receber os milhares de desabrigados da enchente. Os outros 98 postos de saúde da capital funcionavam, mas sob condições precárias. Faltavam funcionários e insumos básicos.
Ao menos dois grandes hospitais viveram situações traumáticas. Na madrugada do dia 4, um sábado, o Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC), na região metropolitana de Porto Alegre, foi rapidamente inundado depois do rompimento de uma barragem próxima. Os pacientes precisaram ser retirados às pressas, enquanto a água avançava sobre as macas e os equipamentos médicos. Três deles, internados na UTI e debilitados, morreram durante a operação de resgate. O Hospital Mãe de Deus, da rede privada, dedicado a tratamentos de alta complexidade, também foi inundado naquele fim de semana. Seus pacientes tiveram de ser transferidos para outro hospital em caminhões do Exército.
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), um grande centro universitário, passou a funcionar lidando com racionamentos radicais. A enchente causou a escassez de três itens primordiais para o funcionamento de um hospital: água, oxigênio e funcionários. Médico intensivista há dezesseis anos, Rodrigo Kappel Castilho, que é presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, faz plantões no CTI do HCPA. Em depoimento à piauí, abaixo, ele contou como tem sido trabalhar no limite e previu o impacto duradouro da tragédia no estado.
“Meu último plantão no CTI do Hospital de Clínicas foi na manhã da quarta-feira, dia 8. Acordei às 6h30 para chegar no meu turno, que começaria às 7h30. Fiz um percurso pela parte mais alta da cidade, onde não há alagamentos. A pedido da prefeitura, todo mundo que pôde deixou Porto Alegre em direção ao litoral. A cidade, por isso, estava vazia, com quase tudo fechado. Lembrei da época da Covid. Como médico da UTI, eu também era uma das poucas pessoas que transitavam naquele momento. Era um deserto nas ruas.
Cheguei no hospital e não encontrei um cenário de guerra nem de histeria. Era o contrário: estava tudo quieto, triste, o clima pesado. O Hospital de Clínicas tem uma operação gigantesca, é cheio de médicos, estudantes, funcionários. O movimento estava muito abaixo do normal. Funcionários e amigos tiveram suas casas alagadas e perderam tudo. Muitos nem chegaram ao hospital porque não tiveram como se deslocar dentro da cidade.
Não há falta de leitos, mas há escassez de água, oxigênio, insumos. Por meio de avisos enviados por WhatsApp, a direção do hospital dava as instruções aos médicos: era preciso racionar tudo. Fazer contenção do uso de oxigênio e priorizar o uso daqueles de parede, e não os de cilindro, porque havia o risco de acabarem. Pediam cautela no uso de soros, porque não havia novos carregamentos chegando ao hospital. Também era preciso restringir exames laboratoriais, por falta de material. As cirurgias eletivas foram canceladas e os alunos de medicina foram orientados a não ir para o hospital (para diminuir, com isso, o fluxo de carros na cidade). Mas o principal problema era a escassez de água.
O Hospital de Clínicas recebe água da estação de abastecimento Moinhos de Vento, que foi paralisada pelas chuvas e ainda não tem previsão para voltar a funcionar. Os reservatórios do hospital têm duração de três dias. Para abastecer apenas 1% deles são necessários três caminhões-pipa. Neste momento, estamos priorizando o uso da água para procedimentos como a hemodiálise. Os chuveiros dos quartos dos pacientes e dos médicos foram desligados. Para os funcionários, só dois chuveiros continuam em funcionamento, mas todos são orientados a economizar o uso e não levar água do hospital para casa.
Como não podem tomar banho, os pacientes são higienizados com lenços umedecidos. Os lençóis não podem ser lavados. Os médicos só estão vestindo a parte de cima da roupa especial que precisam usar na UTI. Também para economizar água e diminuir o fluxo de pessoas, as visitas de familiares foram limitadas. Boa parte dos internados no nosso hospital vem de outras cidades da grande Porto Alegre, então seus parentes não conseguiriam mesmo ter acesso ao hospital, por causa dos alagamentos. Durante a pandemia, nós fomos um dos exemplos de capacitação de profissionais na comunicação remota entre pacientes e seus familiares, mas dessa vez está difícil estabelecer esse contato. Alguns pacientes morreram sem poder, antes, falar com seus entes queridos.
Depois da Covid, foi inevitável pensar: é outra paulada que estamos levando. Mas são situações diferentes, principalmente em relação às demandas da UTI. Na pandemia, era muita gente precisando de leito, e a escassez produziu cenas apavorantes. Ouvi coisas como: “ó, faleceu um paciente e vem vindo outro” – e o outro, no caso, era a esposa da pessoa que tinha acabado de morrer. Até agora, houve mais de cem mortes no estado. Não é uma calamidade que provocou o colapso do sistema de saúde em si. Mas é uma tragédia que, a longo prazo, vai matar. Nas UTIs, já podemos ver um pouco do que nos espera.
Um dos pacientes que estavam sob meus cuidados foi resgatado da água e, por causa do stress e de problemas de saúde prévios, teve um AVC. Quando eu estava saindo do plantão, às 13h30, outro paciente, que também tinha sido resgatado e também teve um AVC, estava prestes a chegar. Um colega médico que vinha de outro plantão, no Fêmina – um hospital público exclusivo para ginecologia e obstetrícia –, cuidou de uma paciente com leptospirose causada pelo contato com as águas contaminadas por urina de ratos. Ela tinha comprometimento pulmonar gravíssimo, estava precisando de aparelhos para respirar. Outra paciente sofria com complicações de diabetes descompensada porque tinha ficado ilhada, sem medicações.
O sistema de saúde está em alerta, porque vamos lidar não só com as doenças relacionadas às inundações, como leptospirose, hepatite e as gastroenterites provocadas pelo contato com a água. Provavelmente teremos uma explosão de casos de dengue, que já era epidêmica, por causa da água que vai ficar empoçada em várias partes do estado. As pessoas que ficaram sem acesso a medicações e tratamentos também nos preocupam.
Por ser presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, faço parte de uma ONG chamada TJCC – Todos Juntos Contra o Câncer. Estamos tentando identificar e auxiliar pacientes que precisam seguir o tratamento contra o câncer e não conseguem acessar seus centros de referência. São centenas de estradas comprometidas no Rio Grande do Sul.
As pessoas que perderam tudo nas enchentes vão, além de tudo, sofrer com dificuldades financeiras. Isso pode limitar ainda mais o acesso a medicamentos. As doenças, enquanto isso, vão se agravando. É um cenário que nenhum de nós imaginou viver um dia.”