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    "Muitos colegas têm se contaminado. O cansaço da equipe é visível", relata Marcia Ribeiro Foto: Acervo pessoal

depoimento

Enfermeiros em falta, pacientes de sobra

Uma enfermeira de São Paulo conta sua rotina no novo pico da pandemia, que contaminou profissionais de Saúde ao mesmo tempo que lotou hospitais

Marcia Cristina de Jesus Ribeiro | 18 jan 2022_09h57
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Marcia Ribeiro trabalha há mais de dez anos como enfermeira no IGESP, hospital particular situado no centro de São Paulo. Está na linha de frente da pandemia desde março de 2020 e viveu a escalada assustadora de contaminações e mortes no começo de 2021. Quando a maré de casos baixou, ela passou a se dedicar sobretudo ao tratamento de pacientes que sofriam com sequelas da Covid-19. Estava otimista com a chegada de 2022 e imaginava que não voltaria à rotina intensa dos primeiros anos de pandemia. Até que a rápida disseminação da variante Ômicron e do vírus da gripe (Influenza) desmanchou suas expectativas. O hospital onde trabalha voltou a ficar lotado – atualmente, dois andares estão dedicados exclusivamente a pacientes com gripe ou Covid-19. Com poucos médicos para atendê-los, já que parte da equipe foi contaminada, os doentes fazem fila até no estacionamento. “Sinto que estou lutando minha terceira guerra”, diz Ribeiro.

Em depoimento a Evanildo da Silveira

 

Sou responsável pela enfermaria de um dos andares do Hospital IGESP, que fica na região central de São Paulo. Do início da pandemia até hoje, atendi pacientes de Covid-19 todos os dias em que trabalhei. Normalmente, faço plantão noite sim, noite não, esticando das seis da tarde até as seis da manhã. Desde que o vírus chegou, porém, não é raro que eu atravesse duas madrugadas seguidas. É um trabalho difícil. Nós passamos por fases distintas nessa pandemia, ao menos aqui no hospital. Num primeiro momento, tratamos as pessoas que estavam contaminadas. Depois veio o “pós-Covid”, quando passamos um bom tempo cuidando principalmente de pacientes que ficaram com sequelas graves. A situação foi melhorando pouco a pouco, e eu tinha esperança de que tudo voltaria ao normal este ano.

Estava enganada. Depois da Covid-19 – ou melhor, junto com ela – veio essa tormenta chamada Influenza, que chegou com força total. Rapidamente o hospital voltou a ficar lotado, com pessoas esperando até no estacionamento a hora de serem atendidas. Todos os pacientes que chegam ao pronto-socorro com sintomas gripais são testados para Covid-19 e para Influenza. Hoje há dois andares do hospital fechados só para pacientes que estão com um desses dois vírus. Tivemos que dobrar o número de leitos para dar conta.

Há mais pacientes internados com Influenza do que com Covid neste momento. Trata-se de um vírus menos letal, mas que para nós é igualmente trabalhoso. O pronto-socorro virou uma loucura, com pacientes acomodados até na sala de exame. Estamos trabalhando em ritmo acelerado novamente, até mais do que estávamos no começo da pandemia. Às vezes me parece que isso não vai acabar nunca. No começo dessa nova onda, o número de internações era menor do que no primeiro ano da pandemia. Mas agora houve um boom.

Muitos colegas têm se contaminado. A direção do hospital está tendo que remanejar funcionários para dar conta da demanda, como já havia acontecido nos momentos mais críticos. Essa situação torna ainda mais difícil o trabalho para todos nós da Saúde – não só os enfermeiros e médicos, mas também o pessoal da coleta de laboratório, do raio X, os biomédicos e técnicos de todo tipo. Com tantas pessoas afastadas do trabalho, os serviços de apoio – como o de copa e a rouparia – acabam atrasando. Tudo fica mais complicado. Infelizmente, para piorar, muitas vezes o paciente não sabe lidar com o fato de que estamos em menor número. É um desgaste a mais para nós: temos que explicar a todo momento que estamos numa pandemia e que os profissionais da Saúde também adoecem.

Ao menos temos a sorte de trabalhar num hospital que soube otimizar bem as vagas, adotando estratégias que fizeram reduzir, na medida do possível, o estresse dos médicos e enfermeiros. Também tivemos suporte com relação ao fornecimento de EPIs – os Equipamentos de Proteção Individual, o que é importante. Mas a situação é complicada.

Há poucos dias, chegou no meu setor uma funcionária que trabalha com a coleta no laboratório. Ela veio colher material para fazer o exame de alguns pacientes. Estava visivelmente esgotada, porque, como eu, também estava dobrando o plantão. Colegas dela haviam ficado doentes, então havia muito trabalho para fazer. O cansaço aqui é visível.

 

Quando o coronavírus surgiu, eu tinha esperança de que ele não chegaria ao Brasil. Fui acompanhando o noticiário e segui com minha vida. Até que um dia cheguei ao hospital e pronto: o andar em que eu trabalhava só tinha pacientes com Covid-19. Quase nada sabíamos sobre a doença e tínhamos que nos proteger enquanto atendíamos, do jeito que dava, as pessoas que precisavam. O medo tomou conta de mim e de todos os colegas, à medida que nós víamos o dano que essa doença causava.

Sempre que saía de casa para assumir o plantão, eu me despedia dos meus familiares como se não fosse voltar. Se eu me contaminasse, não teria coragem de retornar para casa, porque os poria em risco. Meu plano, se isso acontecesse, era ficar no hospital ou procurar um hotel. Por isso comecei a valorizar cada momento que vivia com eles. Passei a trabalhar muito. No plantão noturno, via muitas coisas que mexiam com o meu emocional. As primeiras famílias que foram internadas no hospital (elas tinham participado de um cruzeiro, onde se contaminaram) saíram pela metade. Às vezes só uma pessoa sobrevivia.

Naquela época, comecei a me referir à Covid como doença da solidão, porque tanto a pessoa que era internada quanto o parente que voltava para casa, deixando-a no hospital, ficavam sozinhas. Nesse caso, a solidão não é prima-irmã do tempo, mas da angústia, do medo, do desespero e da sensação de impotência. Foi o que percebi durante esse tempo.

Nos momentos mais críticos da pandemia, quando voltava para casa depois do plantão, via que as ruas estavam quase vazias. A sensação que eu tinha era de exaustão. Me lembrava da música do Raul Seixas, O dia em que a Terra parou. Praticamente só havia trabalhadores da Saúde fora de casa. Imagina isso em São Paulo, na Avenida Paulista!

Agora a situação está mais parecida com aquela música do Zé Ramalho, A terceira lâmina. “E virá como guerra/a terceira mensagem/na cabeça do homem,/aflição e coragem.” Sinto que estou enfrentando a minha terceira guerra: primeiro foi a Covid-19, depois o pós-Covid, e agora a soma de Influenza com a Covid. “Acho que os anos irão se passar”, diz a canção. Tenho a esperança de que, no fim disso tudo, vamos vencer e “ter novamente a ideia de sairmos do poço”. E que da garganta do fosso saia apenas a voz de um cantador.

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