A casa da artesã Cristina Maria Pena fica na principal avenida de Barão de Cocais, a Getúlio Vargas, em frente à Câmara Municipal. Na janela, ela espera o pior: o alerta de que a parede de contenção da mina de Gongo Soco cedeu, provocando o rompimento da barragem Sul Superior. “Hoje passaram caminhões transportando geradores e holofotes. Agora me diz se isto não é situação de guerra? Talvez a espera seja pior do que a tragédia em si. Tragédia com prazo marcado é uma coisa cruel.” Segundo ela, é como atravessar as horas com uma espada sobre a cabeça. De dia, ela tira cochilos. À noite, não prega o olho. Com medo de adormecer e não ouvir o toque da sirene, a artesã parou de tomar o remédio para dormir. Sem o remédio, consegue, no máximo, uma noite de sono a cada três acordada. A cama foi transferida para a sala, para ficar mais perto da porta de saída. As cortinas, arrancadas. Na mesa de cabeceira, fica a pasta com os documentos – dela, do filho Guilherme, de 18 anos, e da tia Roberta, de 89. “A memória de Brumadinho não sai da cabeça. Estamos vivendo uma situação de impotência completa.”
Na velha cidade mineira, fundada em 1704 e localizada a cerca de 90 quilômetros de Belo Horizonte, o prazo começou a correr no domingo, dia 19. Segundo a mineradora Vale, até o dia 25, a parede de contenção (talude) da mina de Gongo Soco vem se movimentando de seis a dez centímetros por dia e deve deslizar. Quando isso acontecer, serão despejados 5,3 milhões de metros cúbicos de terra na cava de mineração – um buraco que se forma na montanha escavada e que vai se enchendo de água. A cava da mina de Gongo Soco tem 100 metros de profundidade. A onda vibratória advinda do impacto desse bloco de terra na cava poderá ocasionar o rompimento da barragem Sul Superior, que fica um pouco abaixo da cava. Desde março a Sul Superior está no nível três de risco, o alerta máximo; após a tragédia de Brumadinho, a Vale elevou o nível de risco de outras barragens da região.
Se a Sul Superior romper, 6,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos, cerca de metade do volume vazado da barragem da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, descerão a montanha, atingindo Barão de Cocais uma hora e doze minutos depois. Cortado pelo rio Santa Bárbara, quase todo o Centro da cidade seria atingido, sobrando intactos apenas os bairros mais altos. A Defesa Civil montou um centro de monitoramento com câmeras que mostram, em tempo real, o que está acontecendo na barragem. Optou, assim, por só retirar os moradores das áreas de risco se o talude, ao ceder, de fato provocar o rompimento da barragem.
“O desmoronamento do talude é certo. De quarta até domingo, vai desmoronar. O que não se sabe é se a queda vai ocasionar o rompimento da barragem. Em tese, a cava comporta o volume do talude, sem transbordar”, disse o soldado da Defesa Civil Lucas Menezes. “Estamos com estoque de água e plano de ação para restabelecer a energia. Também traçamos a estratégia para remover feridos para os hospitais das cidades vizinhas”, afirmou ele.
Ao todo, há 6 054 pessoas vivendo nas áreas de risco. No último simulado, realizado no sábado, a Defesa Civil de Minas Gerais levou 41 minutos para organizar a retirada de 1 625 pessoas. “Tempo suficiente”, de acordo com o soldado Menezes, de plantão na cidade na última segunda-feira.
Em nota divulgada por sua assessoria, a Vale afirma que a cava da mina de Gongo Soco vem sendo monitorada 24 horas por dia e reconhece a possibilidade de deslizamento do talude. Ainda segundo a Vale, não há elementos técnicos para afirmar que o eventual escorregamento do talude vá desencadear a ruptura da barragem. “Mesmo assim, a Vale está reforçando o nível de alerta e prontidão para o caso extremo de rompimento”, diz a nota.
Assim como boa parte do Centro, a rua Padre Teles, beirando o rio Santa Bárbara, está com o meio-fio pintado de laranja. A cor demarca a “mancha”, jargão da Vale para área de risco. São calçadas, ruas inteiras pintadas de laranja, e a cor marca um caminho de desespero. Na segunda-feira, dia 20, as agências bancárias localizadas na área laranja já estavam de portas fechadas.
O padre José Antônio de Oliveira mora numa das primeiras casas, ao lado da Matriz de São João Batista do Morro Grande. Construída no século XVIII, a igreja ostenta uma imagem em pedra sabão atribuída a Aleijadinho. “Claro que a gente se preocupa com o patrimônio, mas não é isto que importa nesta hora.” Nas últimas semanas os fiéis não têm comparecido nem mesmo às missas dominicais. “O pessoal está com medo de aglomeração. Se a sirene toca, imagina o tumulto?” Sua maior preocupação agora é conseguir realizar a festa de São João, de 15 a 24 de junho. “Somos uma comunidade muito religiosa, que está precisando de conforto espiritual. Nas confissões, ouço muitos relatos de insônia e depressão.”
O prefeito diz estar “sonhando com barragem”. Eleito pelo Partido Verde, o dentista Décio Geraldo dos Santos mantém um consultório na avenida Getúlio Vargas. “O governo do estado nos deve mais de 14 milhões. Só para a saúde, 6 milhões. Se ao menos honrasse o compromisso de nos pagar, já nos ajudaria.” Segundo reclama, “o governador do estado, Romeu Zema (Partido Novo) não respondeu a nenhum dos nossos pedidos de audiência”. Nem mesmo um telefonema: “Barão de Cocais adoeceu. Ninguém dorme. Temos um único hospital municipal. Administrar todo este problema sem apoio está sendo uma covardia.” Depois do rompimento da barragem de Brumadinho, a Vale repassou recursos emergenciais aos municípios da região mineradora. Barão de Cocais recebeu 2 milhões de reais: “Basearam-se na produção de minério, a menor ajuda a todas as cidades afetadas por risco de barragem. Como a mina de Gongo Soco estava parada desde 2015, obviamente, não estávamos produzindo nada.”
“Nós já mudamos a nossa rotina desde fevereiro, quando a Vale elevou o risco de rompimento da barragem para o nível três. Tenho responsabilidade jurídica sobre os alunos”, comentou o diretor da única escola particular de Barão de Cocais, o Colégio Educare. A escola tem mais de 500 alunos. Com a ajuda de um especialista em gestão de risco, foi elaborado um plano de evacuação. “Fomos pioneiros. Procurei exemplos em diversas escolas do país. Não havia nada.” Após dez simulados, a marca é de cinco minutos e 20 segundos para tirar todos os estudantes do prédio. E mais sete minutos para levá-los até um dos sete pontos de encontro determinados pela Defesa Civil. “A cada treinamento, fomos percebendo mais calma.”
Localizada no bairro Lagoa, o mais alto da cidade, a Escola Estadual Efigênia de Barros Oliveira está se preparando para o contrário. O prédio, com jardins aprazíveis e quadra de esporte, foi escolhido pela Defesa Civil como ponto de encontro. A preocupação da vice-diretora, Leila Barbosa, é como acomodar a população caso o rompimento ocorra em horário de aula: “No simulado, colocamos as carteiras na quadra. Mas, com os alunos em sala, não teremos esta possibilidade.”
A poucos quarteirões, funciona a Escola Estadual Coronel Câncio, que atende crianças de 3 a 5 anos. Até dois meses atrás, ficava num prédio na rua Moura Monteiro de Castro, no Centro, mas a rua entrou na rota laranja de risco. A escola foi transferida para o prédio da Faculdade Presidente Antônio Carlos, a Fupac, porque não haveria condição de evacuar crianças tão pequenas em uma situação de emergência. “Os pais se sentiram aliviados quando nos mudamos para cá. Mas o prédio não tem estrutura para uma escola infantil. As crianças ficam no corredor na hora do recreio”, disse a diretora, Micheline Torquetti.
Rolando a tela do celular, a agente de saúde Isabel Cristina Batista vai mostrando fotos da sua casa de Socorro, zona rural de Barão de Cocais. O galinheiro com mais de cem galinhas. A imensa horta. A casa de 150 metros quadrados, avarandada, com o rio correndo nos fundos. No dia 8 de fevereiro, ela acordou de madrugada com a sirene da mina de Gongo Soco. Primeiro povoado a ser atingido em caso de rompimento da barragem, Socorro fora evacuado junto com outros três, Piteiras, Gongo Soco e Tabuleiro. Cerca de 450 pessoas tiveram de ser alojadas em casas e hotéis de Barão de Cocais e Santa Bárbara. “Estava assistindo um filme com o meu filho e, por volta da uma da manhã, começou o inferno.” Fazia uma noite de frio e muita neblina. “Ninguém sabia se a barragem tinha se rompido ou não. Na correria, quebrei a minha perna.”
Com os pais, a irmã e o filho adolescente, Isabel está morando numa casa alugada pela Vale no bairro Lagoa, na parte alta de Barão de Cocais, que está a salvo do possível rompimento da barragem. Ainda está de licença médica, pela fratura na perna. Daquela madrugada, lembra-se de ter postado um vídeo, assim que chegou ao ponto de encontro: “Nem sei como eu consegui, mas postei, para as pessoas saberem onde estávamos. Caso a lama nos cobrisse, saberiam onde encontrar os corpos.” Após deixar Socorro, foram 57 dias num hotel na cidade vizinha de Santa Bárbara, morando todos em dois quartos. Não puderam tirar nada de casa. “Eu e minha irmã começamos a brigar, minha mãe caiu em depressão.” Quase três meses depois, Isabel está esperando a onda de rejeitos destruir sua casa e o povoado onde nasceu. E, ao andar pelo Centro de Barão de Cocais, assiste à repetição do medo. Na tarde de segunda, 20, ela havia tomado dois ansiolíticos. “Só não estou na internet olhando as notícias quando estou dormindo. A minha casa ficou lá, tudo o que nós construímos com tanto sacrifício. Ao sair de Socorro olhei para trás e pensei: nunca vou voltar.”