A voz de barítono de Mário de Andrade ressoou domingo (5/7/2015) na Tenda dos Autores, em Paraty, no encerramento da 13ª Flip: “Deus lhe pague a santa esmola!/ Deus o leve no andor!/ Arrodeado de anjos/ acirculado de flor/ assentado à mão direita/ aos pés de Nosso Senhor.”
Foi comovente ouvir o homenageado do evento, entoando a canção de mendigo, gravada em 1940 e encontrada recentemente nos Estados Unidos. De voz presente, Mário coroou a conferência de José Miguel Wisnik, concluída, por sua vez, em dois estágios.
Primeiro, com um apelo dramático: "Vamos ler, hoje, o projeto de Mário para a educação como sendo aquilo que nenhum partido tem assumido com vontade política suficiente e que resulta desta visão da conjunção do melhor e do pior do Brasil, que seria educação e cultura como luxo para todos. Este é o projeto subjacente que faria o Brasil renascer de si mesmo. Essa é a crença de alguém que acredita que somos um povo criador e que seria capaz de proezas civilizacionais incríveis se algum gênio do óbvio oculto tivesse a capacidade de juntar esses dois fios, educação e cultura, em vez que fazer tudo como agora para jogar a juventude pobre, negra e mestiça no esgoto das prisões.”
Ao aplauso retumbante da plateia se seguiram, cantados por Wisnik, os versos musicados por ele do poema de Mário Garoa do Meu São Paulo, incluído em Lira paulistana, usando ecos de uma moda-de-viola de Rita Lee e Tom Zé chamada 2001: "Um negro vem vindo, é branco! / Só bem perto fica negro / Passa e torna a ficar branco / Passa e torna a ficar branco. / Meu São Paulo da garoa, / – Londres das neblinas finas – / Um pobre vem vindo, é rico! / Só bem perto fica pobre, / Passa e torna a ficar rico. / Garoa do meu São Paulo, – / Costureira de malditos – / Vem um rico, vem um branco, / São sempre brancos e ricos… / Garoa, sai dos meus olhos.”
E então, para encerrar, sem que estivesse previsto, ouviu-se a voz de Mário cantando Deus lhe pague a santa esmola. O impacto foi equivalente ao provocado em Wisnik quando ele a ouviu pela primeira vez, conforme descrevera pouco antes: “[…] a respiração, o ritmo, era como uma holograma [de Mário] que se projetava.”
Feita pelo linguista Lorenzo Dow Turner, que veio ao Brasil para registrar heranças da cultura negra na música brasileira, a gravação da voz de Mário de Andrade, preservada durante 75 anos em disco de alumínio na Universidade de Indiana, é uma ilustração imprevista do que Leonardo Padura dissera horas antes, na mesa “De frente para o crime”, da qual participou com Sophie Hannah. Referindo-se aos seus próprios romances, Padura os definiu como projetos de “construção da memória do passado e da memória do futuro”. Ao ser feito, o registro da voz de Mário, agora revelado, constituiu a memória do futuro. Preservado e recuperado integra agora a memória do passado.
Na mesa “Turistas aprendizes”, da qual participou com Alexandra Lucas Coelho, Beatriz Sarlo revelou ter recebido por e-mail, depois que chegou a Paraty, uma fotografia que nunca vira, feita por um dos seus companheiros, durante a viagem que fizeram rumo a Brasília, no início da década de 1960. Subiram o rio Paraná em uma barcaça, de carona, fazendo anotações de datas e locais visitados em uma caderneta que depois perdeu. Era uma aprendiz a caminho da nova capital. “Estar em Brasília […] me marcou para sempre. Me fez modernista, vanguardista para sempre. É uma doença da qual nunca pude me curar”, disse Sarlo na Flip.
Na fotografia que Sarlo recebeu em Paraty ela aparece aos 20 anos diante de uma paisagem verdejante. A foto pertence a um conjunto que já havia sido mandado para ela e do qual também não tinha lembrança. Não faziam parte da sua memória, pois nunca as vira. Não obstante, como o registro da voz de Mário de Andrade, ao serem feitas iniciaram a construção da memória do futuro, e agora, ao serem conhecidas passaram a integrar a memória reconstruída do passado.
É o mesmo que ocorre com uma das principais vertentes do cinema – constrói a memória do passado e do futuro. Mesmo assim, salvo no encontro com o dramaturgo e roteirista David Hare, o cinema esteve ausente da programação oficial da Flip. Em particular, o Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade, derivado da obra de Mário de Andrade. Mas também a Fraülein criada por Lilian Lemmertz na adaptação de Amar, verbo intransitivo, e o herói com caráter Chico Antônio, de Vila Nova, que Mário conheceu, em janeiro de 1929, no Rio Grande do Norte, e inspirou algumas das mais belas passagens de O turista aprendiz. Nenhum dos três foi convidado para a Festa de Paraty. Não compreenderam a razão disso e ficaram contrariados. O único consolo foi lembrarem do suspiro de Imaerô: “Deixe estar jacaré, que a lagoa há-de secar!…”