Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Lianne Ceará (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).
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Nos últimos meses, as compras mensais de supermercado da família Florêncio, moradora da periferia de Fortaleza, foram se transformando. Carne e frango sumiram do carrinho. A mãe, Talita Florêncio, passou a comprar mais carne de hambúrguer e enlatada, mortadela e salsicha. Também recorre ao ovo e ao fígado de frango para suprir a lista de proteínas. Quando o dinheiro dá, acrescenta a carne moída. Há uns três ou quatro meses, houve dias em que a família não tinha nem café ou cuscuz – itens mais baratos das compras – para comer. A situação fica mais complicada porque Talita é mãe de um menino, José Levi, de 3 anos, que tem alguns problemas de saúde. Já passou por duas cirurgias de hérnias no abdômen e foi diagnosticado como uma criança subnutrida – tem uma dieta alimentar com nutrientes insuficientes. No começo de 2020, aos 9 meses, pesava apenas 6 kg. Foi quando recebeu o diagnóstico de desnutrição e foi encaminhado pela rede pública para atendimento numa instituição especializada.
Na família, o pai de Levi, auxiliar numa distribuidora de alimentos, é o único que trabalha com carteira assinada, “mas ganha só o salário mínimo e um vale-alimentação de 200 reais, assim, limpo e seco”, diz Talita. Por causa das complicações de saúde do garoto, ela resolveu parar de trabalhar para se dedicar exclusivamente ao único filho. Em 2019, a família passou a receber o Bolsa Família e agora entrou no Auxílio Brasil, mas a renda familiar tem sido insuficiente para arcar com as despesas, mesmo as essenciais. Nos dias mais difíceis, para conseguir alimentar José Levi, Talita recorreu à avó materna, que enviou uma caixa com o que foi possível – um pouco de carne moída, uma garrafa de 2 litros com feijão, além de macarrão e frutas. Mas, no dia a dia, o jeito é apelar para o hambúrguer. Desde 2015, crianças brasileiras nunca consumiram tantos alimentos ultraprocessados como a partir de 2020, quando a pandemia se instalou. De janeiro a julho de 2022, a cada 100 crianças brasileiras de 2 a 4 anos de idade, 92 consomem alimentos desse tipo. É o que mostram os dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), do Ministério da Saúde, compilados pelo Instituto Desiderata, especializado em nutrição e obesidade infantil.
Com a situação financeira complicada em casa e os preços cada vez mais altos nas prateleiras de mercados, a mãe foi obrigada a oferecer até macarrão instantâneo a José Levi. “Só tentei dar [o macarrão instantâneo] duas vezes. Ele cospe, joga fora, e é a mesma coisa com a salsicha. Dessas coisas, o que ele ainda come é a mortadela e a carne de hambúrguer. Ama carne moída, mas não é sempre que dá. Fazer o quê, né?”, conforma-se. A mortadela e o hambúrguer, dos quais Levi tanto gosta, são alimentos embutidos, com grandes quantidades de sódio e gorduras saturadas. De janeiro a junho de 2022, 70% das crianças de 2 a 4 anos, mesma faixa etária de Levi, consumiram hambúrgueres e embutidos, mostram os dados do Sisvan.
O conjunto dos números do Sisvan, analisado pela piauí e pela agência de dados Fiquem Sabendo, também é a base para a série de reportagens Má alimentação à brasileira, publicada desde julho aqui no site da revista. Graças ao Sisvan é possível afirmar que a proporção de crianças de 5 a 10 anos acima do peso subiu 70% nos últimos treze anos. Pelo menos uma em cada cinco crianças atendidas pelo sistema público de saúde está obesa. Ao mesmo tempo, a fome persiste: a taxa de crianças abaixo do peso adequado para a idade parou de cair em 2021, interrompendo a tendência de queda registrada desde 2008. Em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos. O consumo de ultraprocessados é um dos vilões dessa dieta, porque, ao mesmo tempo que engordam, esses produtos não garantem a nutrição adequada. É o que os especialistas chamam de fome oculta.
Em 2021, pelos números do Sisvan, só 56% das crianças de 2 a 4 anos comeram feijão; em 2020, eram 86%, uma queda de 35%. E a tendência se mantém este ano: de janeiro a junho de 2022, só 24% das crianças dessa faixa etária comeram feijão – a mesma proporção das que fazem pelo menos três refeições por dia. Em compensação, em 2021, metade das crianças de 2 a 4 anos comeu hambúrguer (aumento de 43% em relação a 2020), 64,3% tomaram bebidas adoçadas artificialmente, 45% comeram macarrão instantâneo ou salgadinho de pacote. E metade se acostumou a fazer as refeições vendo televisão. Em Fortaleza, capital do Ceará, onde a família de Levi mora, apenas 53% das crianças de 0 a 4 anos de idade têm peso considerado adequado para a idade, e 44% apresentam excesso de peso (risco de sobrepeso, sobrepeso e obesidade) – uma situação um pouco pior que a do país, onde as taxas são 63% e 32%, respectivamente.
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Pelo menos duas vezes ao mês, Talita e Levi saem de casa às cinco da manhã e tomam três conduções com destino ao Instituto da Primeira Infância (Iprede), para que o menino receba tratamento. A organização não governamental (ONG) atende mensalmente cerca de 1,3 mil famílias em situação de vulnerabilidade social, sobretudo no campo do desenvolvimento infantil. No começo de 2020, quando Levi foi diagnosticado com um quadro de desnutrição, o SUS o encaminhou ao Iprede. Lá as crianças recebem assistência de diversos especialistas, como nutricionistas, endocrinologistas e psicólogos, e ainda participam, ao lado dos responsáveis, de atividades educativas sobre alimentação. O instituto também entrega, conforme a disponibilidade e as doações externas, leite, frutas e alimentos às famílias atendidas. Durante o período de isolamento social, Levi não pôde participar das consultas. De volta ao atendimento desde abril, ele agora pesa 9,8 kg, mas ainda está subnutrido.
Fundado há 36 anos, o Iprede acompanhou a fome, a desnutrição e a má alimentação infantil em suas muitas roupagens. No início, as crianças atendidas tinham quadros de desnutrição extrema. Em 1989, os trabalhadores da obra do terreno que viria a ser a sede do instituto foram apedrejados pela vizinhança, que acreditava que as crianças desnutridas iriam contaminá-los com aquilo que lhes parecia ser um mal contagioso. O Iprede teve que ser transferido para outro bairro. De lá para cá, a instituição desenvolve trabalhos e pesquisas voltadas para a saúde e desenvolvimento infantil. Nesses anos todos, os profissionais do Iprede foram percebendo a mudança no quadro dos pacientes – o que antes eram casos de desnutrição grave, culminando até em mortalidade infantil, foram se tornando quadros de crianças subnutridas, como Levi e, mais recentemente, de obesidade infantil.
A nutricionista Liana Teixeira, que trabalha no Iprede há pelo menos dez anos, relata que as marcas da pandemia na alimentação de famílias em situação de vulnerabilidade são ainda mais palpáveis em sua rotina de atendimentos. “A mudança do estado nutricional das crianças após a pandemia é muito perceptível, tanto que a procura e o encaminhamento pelo núcleo da obesidade aumentou muito. Muito pela ansiedade, sedentarismo e, claro, más escolhas alimentares. Os ultraprocessados e embutidos não subiram tanto de preço nos mercados. Junto a isso, esses alimentos são bem aceitos pelas crianças pela grande quantidade de açúcar e sal”, afirma. A resistência das crianças aos alimentos mais nutritivos, como verduras e legumes, muitas vezes se associa aos hábitos alimentares do núcleo familiar, segundo Teixeira. No caso de Levi, a mãe, Talita, adora o macarrão instantâneo e a salsicha, embora saiba que estão longe de ser uma alimentação ideal. “Eu gosto, não vou mentir. Mas, por incrível que pareça, ele não gosta e eu também sei que ele não deve comer.”
Apesar do tratamento, Levi ainda é uma criança que se alimenta com dificuldade. Resiste a alguns alimentos. Muitas vezes, para equilibrar o gosto do menino com a difícil situação financeira da família, o mingau com massa de arroz e aveia – a caixa de 400 g custa 15 reais – se torna a única opção. Até poucos meses atrás, os pais faziam esforços para comprar a fórmula nutricional recomendada pelos nutricionistas para Levi: 70 reais a caixa com 800 g. Mas acabaram desistindo. “Quando ele tomava a fórmula, dava pra ver que ele era mais gordinho, mais corado, sabe? Mas não tinha condições, toda vez que eu ia comprar estava mais caro ainda. Quando chegou nos 70 reais, troquei por um leite em pó normal”, comenta. A lata de leite em pó instantâneo, ainda que com tabela nutricional menos vantajosa, custa cerca de 30 reais, com a mesma quantidade de produto. “A gente faz o que pode, mas pra nós ainda é caro”, diz Talita.