A limitação dos tipos de processo com direito a foro privilegiado para deputados federais e senadores deve desafogar o Supremo Tribunal Federal, mas levantará novo movimento de pressão pelo fim da prisão em segunda instância. Fora da esfera dos tribunais superiores, haverá ainda muita dúvida sobre a extensão dos efeitos da nova regra – cujo julgamento no Supremo será retomado nesta quarta-feira, com maioria já formada pela restrição.
Quando o foro por prerrogativa de função foi inserido na Constituição de 1988 não se poderia imaginar que, passados trinta anos, quase metade dos deputados e senadores estaria envolvida em inquéritos ou ações penais perante o Supremo. A demora e a dificuldade para levar adiante tantos processos mudou a forma como se vê o foro – originalmente idealizado como escudo do representante eleito contra o uso do Judiciário como instrumento da política.
Com o endosso constitucional, o foro proliferou-se em legislações diversas e se tornou símbolo da desigualdade. Outros 55 mil servidores e agentes públicos passaram a receber tratamento processual diferenciado. Em 2017, deslegitimada e sem apoio, a regra do foro especial foi então desafiada no Supremo. A solução encontrada pelo relator, ministro Luís Roberto Barroso, foi mudar a interpretação atual da Constituição – que alcança todos os crimes comuns, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não têm relação com o seu exercício – para uma leitura restritiva da regra de foro, de modo que apenas crimes praticados no cargo e em razão do cargo seriam levados ao tribunal de última instância.
Embora a maioria já formada em favor da mudança venha sendo celebrada como salvação contra a impunidade, o momento do debate convida a três reflexões: o Supremo é o espaço adequado para essa mudança? Quais são as consequências da mudança para a Lava Jato? O fim do foro levará a Justiça brasileira a interferir mais na política?
SUPREMO VERSUS CONGRESSO NACIONAL
Tal como em outras grandes disputas judiciais recentes, o embate sobre o foro ganharia contornos mais legítimos se fosse protagonizado pelos legisladores. Uma vez mais, porém, o Supremo chamou para si a responsabilidade de ler as entrelinhas da Constituição e alterar regra que vige inalterada há trinta anos. Essa medida, é verdade, tem contornos de autopreservação do tribunal. Em 2014, projetando o tamanho que a Lava Jato ganharia, o Supremo mudou seu regimento e transferiu do plenário para as turmas o julgamento de ações penais de autoridades com foro, mas a medida não foi suficiente para dar a agilidade esperada aos casos. Agora, a interpretação proposta por Barroso é mais uma tentativa de salvar o Supremo do monopólio temático da Lava Jato.
A decisão de fato aliviará a agenda criminal do STF, mas incidirá significativamente apenas sobre os membros do Congresso Nacional, e não sobre as dezenas de milhares de autoridades com foro. Deputados e senadores perceberam que a mudança mais abrangente apenas poderia ser produzida por meio de emenda constitucional, e a inércia legislativa os deixaria como únicos afetados pela restrição.
Quando o Supremo sinalizou que poderia votar a mudança do foro, o Senado aprovou a PEC 10/2013. Em vez de restringir a aplicação da regra, os parlamentares a extinguem para todos os casos, reservando-a apenas para os chefes dos três poderes da União e o vice-presidente da República, além de expressamente vedar a sua adoção no futuro. Seria a mudança por completo.
Por um breve momento parecia que o debate tomaria rumo no Legislativo. O ministro Toffoli, inclusive, quando freou o andamento do julgamento no STF ao pedir vista em novembro, disse que o fazia para dar tempo de que o Congresso avançasse com a PEC. Antes que a Câmara pudesse confirmar a decisão do Senado, porém, veio a intervenção federal no Rio de Janeiro e impossibilitou que qualquer emenda à Constituição seja feita. A bola voltou ao Supremo, ciente de que a restrição do foro será aplaudida pela nova audiência cativa da TV Justiça.
A RESTRIÇÃO DO FORO E A LAVA JATO
Caso seja chancelada a tese defendida pelo ministro Barroso, proporcionalmente poucos casos penais permaneceriam no Supremo. Seria necessária a conjugação de duas condições para a preservação da jurisdição do Supremo: crimes praticados quando no cargo e em razão dele. A realidade dos processos dos parlamentares são acusações de diversos delitos, que vão de crimes ambientais a calúnia e injúria, passando por crimes eleitorais e de lavagem de dinheiro, muitos dos quais praticados como prefeito ou deputado estadual, antes de ocupar o cargo atual no Congresso Nacional.
Portanto, a mudança teria impacto maior em casos não relacionados à Lava Jato, mas permitiria ao Supremo focar-se nos casos remanescentes, muitos dos quais originados nas investigações da Lava Jato. Da mesma forma, em 2019, quando tiver início a nova legislatura, não chegará ao Supremo uma avalanche de casos novos não relacionados com a atuação do legislador, como costuma acontecer em anos de início de mandato parlamentar.
Outra importante mudança que se pretende é acabar com o vaivém dos processos em instâncias diferentes. Quando houver a instrução processual, a competência para julgar a ação não será mais modificada apenas pela mudança de cargo público. A regra atual faz com que todos os processos criminais em nome do deputado ou senador sejam levados ao Supremo. Muitos delitos “pequenos” adormecem nos escaninhos do Supremo diante da urgência de casos maiores. Muitos outros casos acabam pulando de uma instância para outra – quando o prefeito elege-se deputado federal, por exemplo, arrasta consigo o processo criminal, mas retorna ao não se reeleger deputado.
O caso de Eduardo Azeredo é um bom exemplo. Quando seu caso avançava no Supremo, o ex-deputado renunciou ao cargo em 2014 para ganhar tempo na remessa e recomeço de tramitação do processo na Justiça de Minas Gerais. Passados onze anos da denúncia, Azeredo apenas agora foi julgado na segunda instância. O resultado comum do vaivém processual ou mesmo da demora em julgar costuma ser a prescrição.
Em relação à Lava Jato, as mudanças podem acelerar os julgamentos tanto no Supremo, então com menos processos sob sua responsabilidade, quanto nas varas de primeira instância, cujos tempos médios são menores do que os do STF. Claro que nem todas as varas terão a mesma velocidade que algumas daquelas mais conhecidas atualmente, como a de Sérgio Moro. O fato novo aqui será a grande mudança de perspectiva processual: atualmente, um parlamentar tem um certo controle sobre seu caso perante o Supremo pois sabe das limitações e duração média dos casos. Na nova realidade, a depender da localidade, o processo poderá produzir resultados que levem parlamentares – em dois anos nos casos mais rápidos ou quatro anos em média – tanto à prisão quanto à impossibilidade de disputar eleições por conta da Lei Ficha Limpa.
Com isso, amplia-se a pressão de partidos, advogados e acadêmicos sobre o Supremo pela execução de prisão somente após o trânsito em julgado dos processos. A questão deve se manter no centro das especulações sobre quando será pautada a rediscussão pela presidente – ou pelo presidente Toffoli a partir de setembro –, além de ser inevitavelmente a grande dúvida que pesará sobre as próximas nomeações ao Supremo, que devem acontecer na segunda metade do próximo mandato presidencial, com a aposentadoria compulsória de Celso de Mello e Marco Aurélio Mello.
O debate nos últimos meses ficou centrado na figura do ex-presidente Lula, cujo caso serviu parcialmente para a discussão da tese no STF. Mas, em breve, haverá outras figuras importantes colocando seus respectivos pesos políticos para a revisão da possibilidade de execução provisória da prisão. E não faltarão novos argumentos, nem novas ações – como se viu com a substituição da Ação Declaratória de Constitucionalidade do PEN pela do PC do B – para tentar reverter a maioria frágil e ainda incerta que se formou.
A AMPLIAÇÃO DA PRESENÇA DA JUSTIÇA NA POLÍTICA
O foro especial ganhou proporções injustificáveis no Brasil. Porém, a distorção da regra ocultou aspectos importantes, como o papel do órgão colegiado para onde é direcionado o caso de quem tem foro. Em decisões que envolvem ocupantes de cargo eletivo, a decisão colegiada protege contra a preferência política capaz de contaminar a atuação de juízes em momentos de exacerbação política. O voto colegiado dissolve paixões individuais.
É claro que a decisão por um colegiado não é imune a influências políticas e pressões de interesses. No entanto, erros individuais se dissipam no contraditório do colegiado e radicalismos se isolam quando confrontados com o bom senso. Minimiza-se a chance do impacto na política. Por outro lado, ganham também juízes e o Judiciário. A carreira de um jovem magistrado pode ser definitivamente afetada se da loteria da distribuição processual resultar um controverso processo contra um senador, ministro ou governador. Magistrados em início de carreira poderiam ser precocemente levados a ter o protagonismo de heróis ou vilões nacionais.
O debate recente sobre o foro brasileiro ser uma jabuticaba está mal colocado. A comparação com outros países isola o Brasil pelo excesso de indivíduos com foro, mas pouco olha para o papel que os precedentes judiciais têm por aqui. Magistrados, por vezes, atuam com voluntarismo e em completa negação de entendimentos pacificados por tribunais superiores. Em sistemas assim, aumenta o risco de impacto indesejado das decisões judiciais monocráticas na esfera que deveria ser deixada para a democracia.
A restrição do foro privilegiado pelo Supremo será um passo importante para resolver o problema no principal tribunal do país. Mas a questão não será resolvida nas demais instâncias, e a política no Brasil profundo será afetada por magistrados politizados e mais fortalecidos. Um ajuste efetivo e duro como esse dependerá, em algum momento, da participação do Congresso e, claro, da normalização da atividade política em que o crime é apenas excepcional.