A proposta de cobrança de mensalidade nas universidades públicas, que voltou ao centro do debate no campo da educação com a PEC 206/2019, de autoria do deputado General Peternelli (União Brasil – SP), vem revestida de uma ideia de justiça. Afinal, por que não cobrar mensalidade de quem pode pagar a fim de aumentar o caixa dessas instituições?
Colocada nesses termos, a ideia até poderia soar razoável, se a justificativa do projeto – a tese de que as vagas das universidades públicas são ocupadas pelos filhos das camadas mais abastadas da sociedade – tivesse base na realidade. Só que, assim como a Terra não é plana, o cenário atual da educação brasileira não é o que o General Peternelli quer fazer crer. Antes de tudo porque o perfil do alunado das universidades públicas não é mais como o descrito na PEC.
A tese central da proposta de Peternelli é um estudo do Banco Mundial de 2017, defasado em relação a dados mais recentes. Os últimos números disponíveis mostram que, graças à Lei de Cotas, 70,2% dos estudantes das universidades federais tinham renda mensal familiar per capita de um salário mínimo e meio no ano de 2018, segundo pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Se a maioria dos alunos das federais – que compõem o maior sistema público de ensino superior no país –, pertence à faixa de menor renda, a cobrança de mensalidade atingiria uma pequena parcela de estudantes, o que faz questionar o impacto da medida nas contas das instituições. Aí, vale um olhar sobre o que acontece em outras partes do mundo.
Na Europa, há cobrança em diversos países, com anuidades variando de 1.462 dólares (Portugal) a 11.796 dólares (Inglaterra), é o que mostra a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). A França cobra somente taxas administrativas. E a Alemanha, que implantou a cobrança em 2006, suspendeu a medida em 2014.
Em universidades de ponta dos Estados Unidos, as anuidades pagas estão longe de suprir as despesas. No Massachusetts Institute of Technology (MIT), que chega a cobrar 50 mil dólares por ano, a receita equivale a 10% do orçamento da instituição. Estimativas sobre o impacto da arrecadação com mensalidades ficam no mesmo patamar. Isto é assim porque as universidades não se resumem ao ensino, à formação de pessoal. Por definição, uma universidade se assenta no tripé ensino, pesquisa e extensão, e em qualquer lugar do mundo a pesquisa é financiada, principalmente, com recursos públicos.
Se a PEC apresenta uma solução distorcida para falsos problemas, por que, então, tanto barulho? Embora os estudos mostrem que o alunado das universidades públicas brasileiras não é mais composto exclusivamente pelos filhos das elites, esta percepção continua viva no imaginário social. Outra ideia que circula no senso comum é a de que as universidades custam caro ao Poder Público e drenam recursos que poderiam estar sendo usados na educação básica, esta sim prioritária.
Esses mitos persistem, sobrevivem à realidade e aos enormes benefícios que as universidades públicas trazem ao país, porque são alimentados por discursos vazios, descolados de evidências, mas cheios de razão e opinião – dinâmica recorrente no mundo das redes sociais, sagazmente apropriada pelo governo Bolsonaro & aliados para fazer circular seus projetos de Brasil. São falas que se entranham na sociedade alimentando o jogo do contra x a favor, esvaziando o debate público e desviando a atenção da sociedade para falsos problemas.
Quem trabalha com educação – seja como professor, pesquisador ou mesmo como jornalista –, sabe que, nas periferias, muitos jovens não se animam a fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é o meio de ingresso nas universidades federais, tamanha a descrença nas suas chances. Não raro, há aqueles que sequer sabem da existência de universidades públicas e que elas são gratuitas.
Assim, os jovens que saem da escola pública e ingressam no ensino superior (público ou privado) são minoria. Em 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calculou que eles eram 35,9% do total de egressos do ensino médio. Isso no país onde o diploma de nível superior propicia o maior retorno financeiro em relação ao restante das pessoas que estão ocupadas mas não têm diploma, segundo a OCDE.
Esse desalento, somado à falta de informação, é consequência de um sistema educacional excludente na sua raiz, que abandona muitos pelo caminho por causa da precariedade da aprendizagem, da reprovação e da evasão. E onde estão os jovens que não ingressam no ensino superior? Também segundo o IBGE, 50,7% da população de 15 a 29 anos (23,8 milhões) sem ensino superior completo não frequentam escola, pré-vestibular ou um curso técnico. O dado é de 2019.
E quem são eles? Não chega a ser surpresa que, nesse universo de excluídos, a maioria sejam homens pretos ou pardos (57,6%), seguidos das mulheres negras (53,2%). Para os homens brancos, a porcentagem é de 47,4%, e para as mulheres brancas, 39,5%. Considerando o recorte de renda, entre os mais pobres, quase 60% estavam nessa condição, contra cerca de 25% entre os mais ricos.
Este breve exercício indica que a solução do desafio do acesso à educação superior, no que diz respeito à justiça e equidade, é bem mais complexa do que a cobrança de mensalidade. A lista de desafios é extensa e inclui, pelo menos, alargar o funil do ingresso no ensino superior, oferecer uma formação significativa no ensino médio, implementar políticas que corrijam desigualdades e exclusões cristalizadas ao longo da nossa história e por aí vai.
Sem dúvida, este seria um caminho possível. Porém, ele esbarra numa visão de mundo (e de país) que vem se fortalecendo e coloca o indivíduo acima de tudo, como se ele pairasse acima da sociedade e esta fosse apenas um palco para ele exercer os seus direitos.
Assim, a ideia de direito e de justiça apregoada pelos defensores da cobrança de mensalidade nas universidades públicas certamente não é a mesma da preconizada na Constituição de 1988, que instituiu a gratuidade do ensino público no artigo 206.
No entanto, apesar de descolada da realidade e das prioridades no campo da educação, parece que, desta vez, a ideia tem alguma chance de avançar no Congresso. Já existem até propostas para um “caminho do meio”, como a apresentada pela deputada Tabata Amaral (PSB-SP), inspirada na experiência australiana, na qual os egressos pagam um financiamento de longo prazo com parcelas proporcionais à renda, após conseguirem um emprego.
Afinal, o momento parece propício. Não apenas para repensar o financiamento das universidades públicas. Sobretudo, o que está em jogo é um redesenho de um projeto de país, em bases bem diferentes daquelas que consensuamos nas últimas quatro décadas.