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Mentira e ilusão

Morador provisório do Palácio da Alvorada fabrica falsidades sem cerimônia

Eduardo Escorel | 02 dez 2020_09h28
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Milhares de brasileiras e brasileiros morreram de “gripezinha” nos últimos nove meses – para ser mais preciso, 172.848 até 29 de novembro. Dias depois dos primeiros onze desses óbitos, ao participar de entrevista gravada no Palácio do Planalto, após abaixar até o queixo a máscara que usava, você sabe quem disse: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar não, tá ok?” Antes do fim daquele mês de março, afirmou ainda, em cadeia nacional de rádio e tevê, que “caso fosse contaminado pelo vírus, ‘seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho’, devido a seu ‘histórico de atleta’”.

Diante do incontestável poder letal da Covid-19, o desejo de se redimir de tamanho erro de avaliação o terá levado a mentir na quinta-feira passada (26/11) durante sua live semanal? Ao dizer, em seu habitual português arrevesado, que “não existe um vídeo ou um áudio meu falando dessa forma [que eu chamei de ‘gripezinha’ a questão do Covid]”, o capitão tentou enganar, sem sucesso, a si mesmo e aos outros. Negando ter menosprezado a gravidade da pandemia, teria procurado criar versão falsa que atenuaria sua responsabilidade pessoal e a de seu governo pelos mais de 6 milhões de contaminados e pela mortandade no país?

Mentir, em vez de ser fiel à verdade, ou dizer o que convém, no lugar de ser sincero, são práticas comuns na atividade política, presentes, em destaque, na conduta do morador provisório do Palácio da Alvorada. Ele e seu entorno fabricam falsidades sem cerimônia. Legitimam, assim, a mentira como recurso retórico.

Negar a realidade tem poder persuasivo e é hábito consagrado na Presidência, não só do Brasil, mas também na dos Estados Unidos. Logo, não causa espanto a desfaçatez do policial militar temporário Giovane Gaspar da Silva, ao afirmar, segundo a edição impressa de O Globo (28/11), “que tinha apenas a intenção de imobilizar a vítima” – Giovane é um dos dois agressores vistos esmurrando João Alberto Silveira Freitas, assassinado há duas semanas (19/11) em um supermercado da rede Carrefour, em Porto Alegre.

Imagens gravadas, disponíveis na internet e veiculadas à exaustão na GloboNews, mostram Giovane e o vigia Magno Braz Borges espancando João Alberto Silveira Freitas. Mesmo assim, o registro não permite, por si só, desmentir por completo o depoimento do PM. Segundo seu advogado, “por mais que as imagens possam causar horror [sic], o que causou a morte por asfixia foi a pressão feita nas costas do João Alberto. E isso não foi um ato do meu cliente”.

Fato incontestável é que a vítima da violenta e covarde agressão morreu. Ao advogado de defesa restava se apegar ao que ele sugere estar indicado no atestado de óbito como sendo a causa mortis. Tese, caso verdadeira, que pode convir para atenuar a pena de Giovane, mas não o exime de participação no assassinato. Para beneficiar seu cliente, o advogado interpreta a ocorrência à sua maneira, nem sempre em obediência estrita à realidade factual – variante do procedimento de Donald Trump e seu imitador brasileiro ao forjarem versões dos fatos do modo que lhes convém. Na manhã de domingo (29/11), depois de votar, em novo acesso de servilismo, o capitão afirmou: “realmente teve muita fraude lá [nos Estados Unidos], isso ninguém discute.”

Imagens gravadas estão sujeitas a serem contestadas. Elas não permitem distinguir, sozinhas, o que é falso do que é verdadeiro. Para serem tomadas como prova factual do que parecem representar é preciso que sejam corroboradas por testemunhos sobre o que registram, além de outras fontes de informação a respeito, incluindo affidavits.

A linguagem do cinema é baseada na “impressão de realidade” (Christian Metz) que ela propicia e é a seu caráter intrinsecamente ilusório que deve, em grande parte, a posição de destaque que ocupou entre as diferentes formas de expressão artística no século XX. Característica essa que atende ao que Clément Rosset descreveu como a fragilidade “humana de admitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real”.

Costumo citar Rosset com certa frequência, inclusive aqui na coluna. O desdobramento dessa noção da fraqueza para lidar com a realidade me parece iluminar a origem do poder de extasiar que a linguagem do cinema, mal ou bem, preserva em certo grau. Da última vez que o mencionei, em maio, um amigo me acusou de fazer “citações cabotinas”. Apesar da reprimenda, volto a mencionar o texto do filósofo. É lá que se encontra o conceito de ilusão entendido como alternativa às formas radicais de recusa da realidade – suicídio, loucura e cegueira voluntária. Para o autor, a ilusão é um modo de “livrar-se do real que incomoda”, adotado por “quem não diz sim nem não àquilo que percebe, ou melhor, diz ao mesmo tempo sim e não. Sim à coisa percebida, não às consequências que deveriam normalmente se seguir […] é uma percepção correta que prova ser impotente para levar a um comportamento adaptado à percepção. Eu não recuso ver, e não nego em nada o real que me é mostrado. Mas minha complacência para aí. Eu vi, eu admito, mas que não me peçam mais. De resto, mantenho meu ponto de vista, persisto no meu comportamento, exatamente como se não tivesse visto nada.”

Apesar de ilusórias, a inexistência de imagens filmadas ou gravadas é um obstáculo para ter acesso a eventos do passado, ocorridos há mais de quatro décadas. Em especial quando a memória do que ocorreu é tênue, até mesmo entre os envolvidos nos acontecimentos. Essa é, porém, a árdua tarefa que Tiago Rezende de Toledo propõe realizar no documentário Operação Camanducaia (2020), seu primeiro longa-metragem.

Para recuperar fatos ocorridos em 1974, além dos testemunhos a colher, restava o noticiário dos jornais, umas poucas fotografias, e as mais de 1 mil páginas dos autos do processo movido contra autoridades policiais na época. Havia também Infância dos Mortos, de José Louzeiro, romance-reportagem publicado em 1977, cuja leitura inspirou Toledo, após ter dado origem ao roteiro de Pixote, a lei do mais fraco (1980), de Jorge Durán e Hector Babenco.

À cata de lembranças, Toledo inicia sua jornada ao passado indo ao pequeno município de Camanducaia, no extremo Sul de Minas Gerais, a 135 km da capital paulista. Foi lá, em outubro de 1974, que cerca de 93 crianças e adolescentes apanharam antes de serem largados nus em um barranco na beira da estrada, depois de terem sido retirados das ruas de São Paulo, recolhidos às celas do Departamento Estadual de Investigações Criminais de São Paulo (DEIC) e amontoados em um ônibus sem saber qual era seu destino. Até hoje, ignora-se o que aconteceu com 52 integrantes do grupo. Os demais foram recolhidos em Camanducaia, mas mesmo assim há pouca informação a respeito do seu paradeiro.

Pátio da cadeia de Camanducaia, outubro de 1974. Foto: Acervo pessoal/Solange Fernandes

 

A manchete de um jornal dizia haver milhares de crianças e adolescentes  abandonados nas ruas de São Paulo. Autoridades consideravam que “a tranquilidade do paulistano dependia do afastamento de pelo menos 500 mil menores infratores.” Laudo Natel, então governador de São Paulo, diz: “Não tenho memória. Disso [a operação Camanducaia] não tenho ciência, não.”

Uma entrevistada afirma: “Não lembro… a gente vivia embriagado na época… tem que beber para dar coragem.” Para um entrevistado, “Camanducaia cultiva pouco a memória. Não teve percepção política do fato”.

Toledo recorre a declarações fragmentárias como essas e outras na tentativa de compor uma visão abrangente que, por vezes, parece lhe escapar entre os dedos. O painel montado preserva lacunas, mas ainda assim Operação Camanducaia salva do esquecimento a ação policial criminosa que removeu à força menores das ruas de São Paulo. Ações que continuaram a ocorrer nas décadas seguintes, como por exemplo a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, em 1993. Ações policiais camufladas, às vezes, sob o manto respeitável do nome “operação higienista” e que “a opinião pública apoia”, segundo afirma no documentário o padre Júlio Lancellotti, ordenado em 1985, que lecionava, em 1974, no Serviço Social de Menores da prefeitura:

“Todas as operações higienistas que estão acontecendo”, diz Lancellotti, “no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em Porto Alegre, e muito aqui em São Paulo, não estão tendo repercussão, por que são tipos de ações, de operações, que, em geral, a opinião pública apoia. Se os meninos de rua todos desaparecerem, ou as pessoas em situação de rua desaparecerem, ninguém sentiria falta deles. Quem vai procurá-los?”

Só após 46 minutos preliminares, faltando 30 minutos para Operação Camanducaia terminar, vemos Toledo indo ao encontro de Paulo, o primeiro dos quatro sobreviventes entrevistados, cuja existência até esse momento o espectador desconhece. Desse modo, tarda demais a aparecer o que talvez devesse ser o principal foco do documentário, conforme diz no filme, com razão, a historiadora Isabel Frontana. Em favor da tentativa, em parte frustrada, de revelar o que ocorreu em 1974, Toledo acaba negligenciando os protagonistas da história, vítimas da violência policial. Resta sem ser esclarecido, além disso, se há outros sobreviventes ou se os entrevistados são os únicos que foram localizados.

Operação Camanducaia sofre por ter escopo narrativo abrangente demais, tornando-se dispersivo, sem deixar por isso de ter interesse e valor. O documentário estreia na próxima sexta-feira, 4 de dezembro, às 22h30, na Sexta da Sociedade do Curta!, e deve ser visto.

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Na próxima terça-feira, 8 de dezembro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Joel Zito Araújo, que vem de realizar O Início do Fim para o programa IMS convida. No curta-metragem, Joel Zito nos alerta que a combinação da Covid-19 com a extrema direita no poder pode representar o extermínio da vida humana na Terra. O acesso à conversa de terça-feira, 8 de dezembro, às 11 horas, poderá ser feito através do link https://youtu.be/-wGZHhmMrUQ .

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Zona Árida (2019), de Fernanda Pessoa, será exibido na Mostra Contemporâneos do 15º Festival Latino Americano de São Paulo, que terá lugar de 9 a 16 de dezembro de forma online e gratuita em todo o território brasileiro. Fernanda Pessoa volta a Mesa, no Arizona, onde fez intercâmbio, em 2001. Ao ter notícia, em 2014, que a cidade foi considerada a mais conservadora do país, Fernanda decidiu voltar com uma pequena equipe para rever pessoas e locais que conheceu e visitou na adolescência. Na recente eleição presidencial, Joe Biden venceu Donald Trump no Arizona por cerca de 11 mil votos, consolidando sua posição no Colégio Eleitoral e acrescentando um novo ângulo de interesse para assistir a Zona Árida.

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Amores Cubanos, série de treze episódios de Alice de Andrade, estreou em 9 de novembro e prossegue às segundas-feiras, no Canal Brasil, às 17h30, com reprises quintas e sextas-feiras, às 13h30 e às 7 horas, respectivamente.

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A 9ª edição do Cinecipó, Festival de cinema insurgente, iniciado em 30 de novembro, prossegue até 28 de dezembro com mostras semanais online. O Festival tem “o objetivo de fazer o público refletir e consumir as produções audiovisuais nacionais realizadas por indígenas, negros, LGBTQIA+ e brancos dissidentes aliados nas lutas”, segundo o release. Mais de sessenta produções são exibidas gratuitamente no site www.cinecipo.com.br .

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