“O senhor usa drogas?”
Foi com essa pergunta que fui recebido pelo corregedor-geral de Justiça em sua imensa sala no Palácio da Justiça, sede do Judiciário estadual paulista. Sentado na cabeceira, ele despachava, assinando documentos, e a pergunta saiu sem que levantasse o olhar.
Eu estava em início de carreira, juiz de uma comarca interiorana e, dias antes, recebera o convite para uma conversa com o corregedor. Não me adiantaram o assunto.
Após o baque inicial da pergunta, respondida com a devida negativa – apesar de à época beber socialmente –, desenrolou-se uma conversa que não deixou dúvidas quanto à sua motivação: minha postura pessoal (leia-se, manter amizades com pessoas do povo, como, por exemplo, um dos chaveiros da cidade, companheiro de passeios de moto – em uma época em que não se falava em motociata, cabe registrar), somada à minha linha jurisdicional na esfera criminal, baseada no chamado garantismo penal (que fora traduzido também por uma outra pergunta em tal bate-papo, se eu era “leniente com o tráfico de drogas”), fizera acender o alerta na Corregedoria.
Isso foi há vários anos, e meu desinteresse na identificação de meu interlocutor recomenda a imprecisão.
Por volta de setembro de 2021 comecei a acordar de noite com as mãos formigando. Como na canção Comfortably Numb, da banda Pink Floyd, “my hands felt just like two balloons” – mas garanto que não pelo uso de qualquer substância psicotrópica.
Após um périplo de consultas médicas, diversos exames e uma crescente piora, comecei este ano de 2022 tomando um quimioterápico e doses consideráveis de corticoides para domar uma infeliz artrite.
O tal quimioterápico (ministrado em doses menores do que aquelas usadas para o tratamento de certos tipos de cânceres) prometia alterar o curso da doença, em um tratamento de vários meses, ao passo que o corticoide atuaria na inflamação que aterrorizava minhas mãos e punhos (a ponto de me afastar de uma de minhas atividades favoritas, o ciclismo).
Prescrito na chamada forma de cascata, ou seja, iniciando com doses mais altas e sendo gradualmente reduzido ao longo das semanas iniciais de tratamento – até cessar –, o corticoide era, afinal, quem estava contendo em boa medida um dos efeitos mais desalentadores da doença, as dores neuropáticas noturnas. Tais dores resultam da compressão do nervo mediano e fazem o paciente despertar diversas vezes, contribuindo para a derrubada de um humor que naturalmente já não poderia estar em alta.
E foi com a volta delas que, junto com um grande desânimo, me vi pesquisando na internet a respeito de tratamento com óleo de cannabis. Na mesma noite resgatei no celular uma mensagem de um amigo que, semanas atrás, havia me indicado alguém que poderia me ajudar.
Cristiano Maronna é um dos maiores especialistas no campo jurídico a respeito da política de drogas. Foi secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e também presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), com mestrado e doutorado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Fora ele quem me indicara um cientista, também membro da plataforma, ligado a renomada universidade pública, que, devidamente autorizado pela Justiça, coordenava um instituto voltado a pesquisar e colaborar no tratamento de pacientes que se beneficiavam da terapia canábica.
Eu mesmo conheci a plataforma no início de 2015. Ao lado de um colega, acompanhei sua reunião de fundação, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ambos representávamos a Associação Juízes para a Democracia (AJD). Conforme se pode ler em seu site, “a Plataforma Brasileira de Política de Drogas é uma rede para a atuação conjunta de organizações não governamentais, coletivos e especialistas de diversos campos de atuação que busca debater e promover políticas de drogas fundamentadas na garantia dos direitos humanos e na redução dos danos produzidos pelo uso problemático de drogas e pela violência associada à ilegalidade de sua circulação”.
Àquela época, eu, que havia ingressado na magistratura com o objetivo de atuar na área criminal, estava afastado desde 2013 de tal jurisdição graças a uma representação que me acusava de ser um juiz que soltava demais. A representação acabaria arquivada. Mais tarde, novas reclamações, pelos mesmos motivos, redundaram numa censura aplicada em 2018 – punição que acabou sendo cassada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano passado.
De volta às dores de 2022, conversei com minha reumatologista sobre o que eu poderia esperar de um tratamento com óleo de cannabis (suas possíveis potencialidades e suas limitações, além do caráter complementar e não alternativo ao tratamento convencional). Senti-me seguro para pedir uma consulta com outra médica indicada pelo cientista [o nome dele, do instituto, da universidade e da médica estão sendo aqui omitidos porque, na balança dos prós e contras, a”discrição” parece somar-se à canja de galinha, não fazendo mal a ninguém em tempos de bolsonarismo]. Essa profissional poderia avaliar a eventual indicação do uso de canabidiol (CBD) e de tetrahidrocanabinol (THC) para o meu caso.
As pesquisas a respeito do uso medicinal da cannabis ainda são incipientes – fruto da irracionalidade da política de drogas nascida há mais de um século nos Estados Unidos e imposta ao mundo a partir de meados do século passado –, ao contrário daquelas que há anos indicam, nos campos social, jurídico e de saúde pública, o mais absoluto equívoco da guerra às drogas. Com acompanhamento médico, iniciei o tratamento com canabidiol e THC. Desde então faço uso desses produtos. Se a pergunta que inicia esse texto voltasse a ser dirigida a mim, a resposta seria: “Sim, senhor corregedor, eu uso cannabis.”