O jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino e hoje correspondente do jornal inglês The Guardian na América do Sul, foi o convidado da mesa inaugural da primeira edição da Casa de Histórias na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ele lança no evento o livro projeto Querino – Um Olhar Afrocentrado da História do Brasil, pela editora Fósforo.
Na conversa, medida pelos jornalistas da piauí Daniel Bergamasco e Tiago Coelho, ele falou sobre o protagonismo negro na história do Brasil e os desafios de reconstruir a narrativa sob a perspectiva afrocentrada, na contramão das histórias costumeiramente contadas. O projeto teve apoio do Instituto Ibirapitanga e, antes do livro, resultou em uma série de podcasts feita com a Rádio Novelo e uma série de reportagens publicadas na revista piauí. Nos próximos meses, será lançada uma frente educacional do projeto.
Inspirado pelo 1619 Project do New York Times, o Querino reconta marcos da história do Brasil — como a Independência e a abolição da escravidão — a partir das vivências e protagonismo dos africanos e seus descendentes. O nome é uma homenagem ao intelectual abolicionista Manuel Querino. Popular desde o lançamento, o podcast chegou ao topo do ranking de mais ouvidos em tocadores como o Spotify e foi premiado com o Prêmio Vladimir Herzog em 2023 na categoria Áudio.
Durante a conversa, Rogero detalhou o processo de produção do Querino, que envolveu uma equipe majoritariamente negra e dois anos de pesquisa intensa. Ele disse que, ao contrário do que ocorre nas redações tradicionais, onde decisões editoriais passam por muitas instâncias (quase sempre, de chefes brancos), o Querino teve uma independência rara, o que permitiu uma abordagem mais autêntica e sólida.
Rogero leu cada uma das referências bibliográficas levantadas pela equipe de historiadores, e escreveu relatórios sobre eles aplicando a própria voz.
Rogero também compartilhou os desafios pessoais e profissionais enfrentados ao longo da criação do Querino, como a renúncia a oportunidades de trabalho em grandes jornais a fim de poder focar no projeto. Questionado por Tiago Coelho sobre as dificuldades de resumir dois anos de pesquisa em um podcast de oito episódios, ele destacou que, além do rigor acadêmico, as histórias humanas foram essenciais para conectar o público. “Eu gosto do processo de cortar, apuro muito, mais do que deveria”, comentou. Para ele, a edição rigorosa foi parte fundamental para manter o tom acessível e próximo ao ouvinte. Agora, com o livro, tem gostado de notar que os primeiros leitores “ouvem” sua voz conforme percorrem o texto (Rogero abre caminho para isso ao escrever algumas passagens com comentários questionadores dirigidos diretamente a quem está diante da página, além de trazer toques de ironia em alguns momentos).
O autor contou que precisou jogar fora a primeira versão do livro. “Por ser o meu primeiro livro, eu comecei a brincar de acadêmico. Tinha muita citação. Um único capítulo sobre a independência do Brasil que tinha umas “quatrocentas páginas”. Repensou então o texto, com uma estrutura de capítulos que remete à sequência de episódios do podcast, mas divididos em partes. Com entrevistas e dados inéditos, criou uma narrativa ágil, que completa o projeto multiplataforma.
Rogero também revelou que, conforme o Querino ganhou audiência e repercussão, deixou de aceitar o financiamento de empresas que não refletem os valores do projeto. Citou uma organização financeira que tinha “dinheiro infinito” e gostaria de se associar aos conteúdos, mas que só tinha homens brancos entre os profissionais, o que seria incoerente.
Confira aqui a programação da Casa de Histórias da Flip.