Em depoimento a Tatiane de Assis
No Oficina, nenhuma peça fica pronta. A estreia não significa que a obra está finalizada. Com Zé, não só continuávamos a ensaiar e mudar a peça ao longo dos meses em cartaz, como também recebíamos seus comentários por e-mail depois de cada sessão. Comentários esses que a gente devorava e incorporava na apresentação seguinte. Quando entrei na companhia achei esse eterno fazer algo muito especial. Descobri que as peças são organismos vivos que respiram, se alteram e se transformam, tanto na relação com o público como na relação com a conjuntura e com o mundo.
Mesmo que as condições da morte de Zé tivessem sido outras, a metáfora da fênix continuaria a fazer sentido. Sinto que ao longo de toda a sua vida, Zé morreu e renasceu diversas vezes. Em cena e fora dela, afinal sua vida era arte e vice-versa. O que acontecia no mundo estava no teatro, e o que acontecia no teatro era a projeção de um desejo para o mundo. O teatro que Zé inventou na verdade é uma bruxaria pra transformar a vida. Um teatro que, devorando a antropofagia de Oswald de Andrade, coloca em cena os mais diversos tabus para transformá-los em totem. Diretor que era, Zé fez isso não só durante toda a sua vida como também no momento de sua morte: seu velório nos obrigou a contracenar com o maior de todos os nossos tabus.
Ao longo desses sete anos em que atuo na companhia, foram incontáveis as vezes em que fui abordada por pessoas de fora sobre como seria o futuro do Oficina após a morte de Zé. Eu tinha isso como algo muito distante, talvez pelo receio de pensar o mundo sem ele, mas também porque Zé era muito forte, e apesar de estar com a mobilidade reduzida desde a pandemia, a cabeça estava a mil e continuava trabalhando como sempre. A gente também não costumava falar sobre isso dentro do teatro, acho que justamente porque Zé nos ensinou a pensar no presente, no aqui agora – ou porque de fato era um grande tabu entre nós.
Na primeira peça que fiz, Macumba Antropófaga, tive que me reaver com os meus próprios tabus, que na época eram muitos. Com o corpo, com a moral, com a família e com a política. Eu tinha acabado de me formar na USP, ainda morava com minha mãe e era uma jovem cheia de ideias… Zé falava: “Ideia, não!” Em Macumba, cantávamos os versos de Oswald: “Suprimamos as ideias e as outras paralisias.” Fui suprimindo aos poucos. Tal qual
Penteu, personagem de Bacantes, fui iniciada nos mistérios divinos de Dionísios. Desde então morri, renasci, morri, renasci de novo…
O início não foi fácil. Tudo ali parecia pertencer a uma outra lógica, misteriosa e indecifrável. Eu me atrapalhava tentando acertar. Fazia alguns anos que eu trabalhava com teatro, mas a verdade é que o Oficina não era exatamente teatro. Era o tal do TE-ATO.
Nesse começo eu tinha medo do Zé. Como um pai, eu buscava a aprovação dele em tudo que fazia. Tinha medo de errar. Depois de um tempo, conforme fui me sentindo mais à vontade, entendi que nesse teatro não existia erro. Ou melhor, que o erro era uma contribuição importante. Aos poucos também fui descobrindo a pessoa divertida e amorosa que ele era, e que os nãos que dizia ou as direções que dava nunca eram pessoais. Eram teatrais.
“Primeiro passo: tomar conta do espaço.” Comecei assim, seguindo as palavras que Zé comeu de Torquato, tentando compreender o corpo nesse espaço lindo e totalmente maluco criado pela Lina Bo Bardi e que propõe uma relação tão próxima e intensa com o público. Como contracenar com essas pessoas tão perto da gente? Como atuar pra cima, pros lados, pra frente, pra trás, pra cidade além dos janelões? Fui experimentando e descobrindo, ouvindo os conselhos dos atores e atrizes mais antigos e também adquirindo dores na lombar de tanto curvar o corpo pra trás pra contracenar com o público lá de cima. O próprio Zé tinha uns macetes: “Tem que pisar na madeira. Se você estiver nela, o teatro todo te vê.” Ficava bravo quando alguém pisava no cimento.
Os roteiros das peças também eram muito singulares, todos recheados de imagens e referências para nosso trabalho. Zé tinha um estilo próprio de escrever: misturava maiúsculas e minúsculas e usava diferentes cores em palavras e sílabas procurando transmitir a entonação que tinha em sua mente, de modo que a própria escrita concretizava a direção. A peça parecia ser uma partitura em sua cabeça. Nos ensaios, ele às vezes se detinha diante de uma única frase durante mais de uma hora buscando a intenção desejada na boca dos atores. Era de um rigor minucioso. Chegava a marcar em que momento deveríamos respirar entre uma palavra e outra. Era uma direção quase musical do texto, sem nunca abrir mão da verdade – não apenas cênica, mas uma verdade verdadeira, uma verdade de vida. Tinha subtexto para tudo; nos envolvia nas imagens que criava e então passávamos a visualizar a cena e o mundo com um outro olhar.
Essa visão concreta das coisas predominava nos ensaios. Não tinha muito essa de ensaiar com roupa de ensaio, coisa comum nos grupos de teatro independente a que eu estava tão acostumada. O ideal era assim que possível já ir colocando figurino, objetos cênicos, luz, vídeo e sonoplastia. Sair da abstração e tornar a poesia palpável, desenhá-la no espaço. Todos em suas funções, prontos para tudo. Uma usina de criação.
Às vezes ele inventava de nos dirigir na frente do público. Podia ser corrigindo a entonação de alguma fala ou mesmo pedindo luz ou algum objeto cênico que por algum motivo não havia entrado a tempo. Ao mesmo tempo, a gente também tinha liberdade total para experimentar livremente durante o espetáculo. Testar uma piada, tentar um movimento diferente em determinado momento, contracenar com alguém do público, mudar uma fala. Como anarquistas coroados, criávamos sem pudor, respeitando minimamente o roteiro e a sequência de ações. Se ficasse ruim ou Zé não gostasse, a gente ficava sabendo na mesma hora pela reação do público ou quando os comentários dele após o espetáculo chegassem.
Ele não parava nunca. Estava sempre trabalhando e elaborando as peças de modo a acompanhar o ritmo da vida e do mundo. Quando estreamos Roda Viva, o tabu da vez era o presidente. Foi logo após as eleições de 2018 e ficamos mais de um ano em cartaz. A cada semana criávamos novas cenas tentando dar conta dos absurdos que Jair Bolsonaro e sua corja soltavam, sempre na chave do humor. Zé costumava chegar aos ensaios cheio de vontade de encenar algum novo episódio vindo diretamente do noticiário. E se colocássemos em cena o Moro e o Dallagnol? Colocamos. E a Damares? Colocamos. E a Tereza Cristina (então ministra)? Colocamos… E assim tentávamos criar novos significados para a realidade contracenando com esses antagonistas que assombravam o cenário político. Isso sem falar no inimigo sacro, Silvio Santos, personagem recorrente em muitas das nossas peças e a quem Zé se referia com uma espécie de adoração, dizendo que Silvio lhe ensinou muito pois graças a ele tinha a possibilidade de viver uma luta maravilhosa, a luta pelo Parque do Rio Bixiga.
No dia em que Zé morreu, a caminho do teatro, me lembrei de outro dia de profunda tristeza, o dia em que Bolsonaro ganhou as eleições. Na época, também decidimos nos encontrar no teatro. Todo mundo estava abatido, chorando e pensando na desgraça que estava por vir – e que de fato veio. Quando Zé chegou, nos colocou rapidamente em outro estado. Sem combinar, num movimento orgânico, começamos a cantar e encenar Bacantes (a peça de ouro da companhia, a mais querida de grande parte do Oficina). Lembro de ele dizer algo como: “Eu já passei por tanta coisa, não é isso que vai nos impedir de continuar trabalhando. Esse presidente vai ter que aprender a rebolar.” E ria. Zé dava muita risada.
Eu esperava que agora, ao chegar no número 520 da Rua Jaceguai, a tristeza mais uma vez se transformasse em alegria. Isso não aconteceu de imediato, parecia que, tal como em 2018, faltava Zé chegar pra descruzar os nossos braços (ele não deixava ninguém ficar de braço cruzado perto dele. Queria todo mundo aberto e se dando pro mundo). Todo homem grisalho que chegava, eu achava que era ele. Parecia que entraria no teatro a qualquer hora para nos dirigir, para dirigir a própria morte.
Sem perceber, começamos a cantar e dançar, e aos poucos a coisa foi ficando mais festiva, mais dionisíaca, mas agora cada verso que cantávamos ganhava um novo significado. Estávamos, como em Bacantes, gozando com a tristeza e chorando de alegria. E então ele chegou, quer dizer, o corpo dele chegou, e é muito estranho se referir a ele como um corpo. Zé era a própria vida, era movimento. Vê-lo imóvel naquele caixão foi esquisito; não parecia ser ele, parecia qualquer coisa menos ele.
Seu velório foi sua peça mais longa e mais lisérgica. Foram horas e horas de euforia, alegria e tristeza misturadas. Uma rachadura no tempo e no espaço, reunindo as mais diversas gerações da companhia num mesmo rito. Sem ensaios. Sessão com casa cheia: o Bixiga e o mundo inteiro lá dentro.
Não paramos durante toda a madrugada. Eu me sentia dentro do Anjo Exterminador, eu tentava ir embora mas não conseguia. No final, não via a hora de o corpo ser levado, não via a hora de conseguirmos encerrar o espetáculo mais difícil já feito no mundo inteiro. Em determinado ponto da noite, uma amiga, também atriz do Oficina, comentou comigo que o Zé era foda, pois tinha morrido e fazia a gente trabalhar. E é isso, ele, mesmo morto, nos inspira a gente trabalhar. Rimos. Olhei ao redor. A companhia estava inteiramente mobilizada, como num dos nossos espetáculos. A iluminadora a postos em sua cabine, a técnica de som em sua mesa ajustando o volume dos microfones, o câmera filmando todos os presentes, os músicos tocando o vasto repertório do Oficina sem parar, e nós, atores, cantando e dançando na pista onde tantas vezes atuamos ao lado dele. Nossa usina estava a todo vapor. De fato, mais uma vez parafraseando Torquato, não há melhor resposta do que continuar. Fim de temporada, morrer pra renascer.
Como dizia Zé, “Tudo a fazer.”
Merda!