Elizabeth Martins, 69 anos, tomou a segunda dose da vacina contra a Covid-19 no dia 12 de fevereiro. A chegada do imunizante foi um alívio para a família. Martins estava no grupo prioritário de vacinação em Uberlândia, interior de Minas Gerais, porque era paciente de alto risco – além de idosa, tinha Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC). Em 2011, ela passou por uma traqueostomia e, desde então, fazia tratamento no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O novo coronavírus era um risco grande demais para uma paciente com o histórico de Martins. Por isso, ela passou o ano de 2020 em isolamento rígido na companhia do marido e não recebia visitas. Lorena Fleck, 36, sua única filha, evitava frequentar a casa para proteger a mãe. Para continuar o tratamento sem correr o risco de se expor ao vírus, Martins entrou no programa de assistência médica domiciliar da cidade, o Melhor em Casa. Ela precisava ficar ligada a um balão de oxigênio e a cada duas semanas recebia médicos, enfermeiros e fisioterapeutas para acompanhar seu estado de saúde e realizar os procedimentos de limpeza e manutenção da traqueostomia. Também em casa, Martins recebeu as duas doses da CoronaVac – a primeira no dia 25 de janeiro e a segunda quinze dias depois. “Ela me mandou fotos tomando a vacina e nós ficamos tão felizes e aliviados que eu até postei nas redes sociais”, lembra Lorena Fleck. Treze dias depois da segunda dose, no dia 25 de fevereiro, Martins começou a apresentar sintomas gripais: coriza, febre de 39 graus e mal-estar.
Por celular, ela avisou à família que estava com gripe. Fleck, contudo, suspeitava que pudesse ser Covid-19. Segundo o Instituto Butantan, a proteção imunológica contra a doença ocorre, em geral, cerca de catorze dias após a segunda dose. “Eu sabia que a vacina não impediria de contrair o vírus, então ela poderia ter pegado. Mas eu realmente acreditei que fosse uma forma mais branda, menos violenta”, diz Fleck. Essa avaliação seguiu os anúncios do Instituto Butantan e do governo do estado de São Paulo. “Nos ensaios clínicos das vacinas contra a Covid-19, os pesquisadores não faziam testes constantes para detectar o vírus nos voluntários. Por isso, não tem como medir a eficácia desses imunizantes em bloquear o vírus”, explica Daniel Mucida, imunologista e professor associado da Rockefeller University, em Nova York. “Mas os dados são suficientes para sustentar que os vacinados infectados não desenvolveram sintomas graves.” Segundo ele, esse é o resultado mais importante para combater, de forma rápida, a pandemia que levou a vida de mais de 310 mil brasileiros.
Foram três dias passando mal. No domingo, 28, Elizabeth Martins já estava muito fraca e não conseguia se locomover. Quando levantou para ir ao banheiro, caiu. A família queria que ela fosse atendida no hospital municipal de Uberlândia, onde um médico que fazia o acompanhamento da doença crônica de Martins poderia avaliar seu estado de saúde. Mas o sistema hospitalar da cidade estava em colapso por causa da pandemia de Covid-19 – desde meados de fevereiro, as UTIs e enfermarias de Uberlândia estão lotadas. Quando Lorena chamou a ambulância para a mãe, no dia seguinte, os atendentes disseram que só poderiam levá-la à Unidade de Atendimento Integrado (UAI) do município, uma unidade de emergência. “O socorro já está chegando, mãe”, disse Fleck tentando tranquilizar Martins por chamada de vídeo. “Eu não estou mais aguentando. Eu vou morrer”, respondeu a mãe. Essa foi a última vez que mãe e filha se viram.
Na unidade de atendimento, o quadro de Martins se agravou rapidamente. Ela precisou ser intubada e fez o teste RT-PCR no dia 1º de março. O resultado foi positivo para Covid-19. Quatro dias depois, ela teve uma parada respiratória e faleceu. A piauí teve acesso aos comprovantes de vacinação e ao resultado do teste de Covid-19. No atestado de óbito de Martins, aparecem quatro causas de morte: “insuficiência respiratória aguda, outras septicemias [complicações de infecção], Covid-19, outras formas de doença cardíaca pulmonar.” A família não teve sequer tempo de reconhecer o corpo de Martins. Na funerária, funcionários avisaram que se Fleck quisesse fazer o reconhecimento, o caixão lacrado de Martins deveria retornar à UAI para ser aberto. Ela negou. “Naquele momento já não fazia diferença, não ia trazer minha mãe de volta”, desabafa Fleck.
São raros os relatos de hospitalizações e óbitos por Covid-19 de pacientes vacinados com duas doses no Brasil. Para o imunologista Gustavo Cabral de Miranda, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e membro de um grupo que está desenvolvendo uma vacina contra a doença, o caso de Elizabeth Martins é uma surpresa. “E é uma surpresa não muito boa”, diz. “Sabemos que as vacinas disponíveis atualmente são seguras e eficazes, mas sempre podemos melhorar e, por isso, é de extrema importância que esse caso seja reportado e investigado. Para nós, cientistas, é importante que os dados sejam perfeitamente expostos – e um ponto pode mudar tudo.”
Em janeiro deste ano, o governo de São Paulo anunciou que a taxa de eficácia geral da CoronaVac era de 50,38% e de 78% para casos leves. Isso sugere que a vacina reduziu em 50,38% o número de casos sintomáticos entre os voluntários da pesquisa e em 78% o número de infecções leves. Durante o estudo, nenhum participante vacinado morreu ou foi hospitalizado por Covid-19, o que fez o governo Doria divulgar uma taxa de 100% de eficácia para casos graves. Mas o próprio diretor médico de pesquisa do Instituto Butantan, Ricardo Palacios, esclareceu que essa informação não era estatisticamente significativa. Ou seja, os dados não deixaram claro se foi a vacina que evitou os casos graves durante o estudo ou se eles já não teriam ocorrido mesmo sem o imunizante, já que o número de casos graves no grupo placebo não foi significativo. “Ainda assim, é biologicamente importante saber que não houve mortes pela doença entre os vacinados no estudo”, explica Miranda. “Mas com esse novo caso [de Elizabeth Martins] vindo à tona, a gente já pode dizer que não é 100% – e isso não significa que a CoronaVac seja ruim.”
Para o imunologista, a vacinação é fundamental para desafogar o sistema de saúde, pressionado pela atual situação da epidemia no Brasil. “Mas a CoronaVac tem suas limitações”, pontua Miranda. Quando pesquisadores desenvolvem uma vacina, o objetivo é ativar vários componentes do sistema imune para produzir uma resposta mais robusta. Além de anticorpos, que atacam o vírus enquanto ele está fora das células, é importante estimular ainda a produção de células T, as maestras do sistema imunológico. “É como se fosse uma guerra: os anticorpos são os soldados, e as células T são o corpo inteligente, que vai fornecer a artilharia pesada”, explica. “O problema é que o método usado na CoronaVac não é tão bom para ativar essas células T.”
A farmacêutica Sinovac, que desenvolveu a vacina junto com o Instituto Butantan, optou pela técnica mais tradicional e segura de produzir imunizantes: o vírus inativado. Segundo Miranda, a aposta foi acertada, pois vai produzir anticorpos (apesar da dificuldade para ativar as células T). Por ser um método bem estabelecido, os cientistas sabiam que seria seguro e eficaz. Mas assim como acontece naturalmente, a resposta imunológica induzida pela vacina pode ser diferente em cada organismo. Para Miranda, essa pode ter sido uma das razões para a morte de Martins. “Quando a vacina é injetada, pessoas que estão em boas condições fisiológicas respondem melhor que pessoas com comorbidades ou imunodeprimidas”, explica Miranda. É importante vaciná-las porque mesmo que o sistema imune não responda tão bem quanto em uma pessoa totalmente saudável, pelo menos a vacina vai gerar memória e, consequentemente, alguma resposta imunológica – ainda que a eficiência seja prejudicada. “Pode ser que o sistema imunológico dessa paciente estivesse prejudicado ao ponto de não responder à vacina”, argumenta. “Mas isso confirma o que já esperávamos: ela continua sendo importante para controlar a pandemia, e as pessoas devem tomá-la, contudo, a técnica usada não estimula o sistema imunológico de uma forma tão robusta.”
Em um artigo publicado em pré-print, pesquisadores analisaram dados da população vacinada em Israel e demonstraram que a eficácia da vacina desenvolvida pela Pfizer foi menor entre pessoas com comorbidades crônicas. Ainda não foram publicados estudos desse tipo em relação à CoronaVac, mas, segundo o imunologista Daniel Mucida, é provável que isso também aconteça com outros imunizantes. Isso porque, no mundo real, a população vacinada é muito maior e mais diversa que a analisada no teste – isso inclui grupos não representados nos ensaios que geraram os dados de eficácia. Segundo ele, o óbito de Elizabeth Martins não interfere no resultado dos testes clínicos da CoronaVac porque ela pertence a um grupo que não estava no escopo da pesquisa.
Pessoas com doenças pulmonares crônicas – entre elas, DPOC – não podiam participar do estudo. Ao todo, o Instituto Butantan estabeleceu dezessete critérios que barravam a participação de voluntários na fase 3 dos testes. “Num teste clínico, é preciso representar a composição da população, então não faz sentido incluir pessoas com comorbidades raras porque você pode super-representar esse grupo e afetar o cálculo de eficácia”, explica Mucida. A prevalência de DPOC é geralmente calculada a partir da taxa de mortalidade, o que leva à subnotificação. A Associação Brasileira de Alergia e Imunologia estima que 12% da população adulta brasileira tenha a doença. “O dado de 100% de proteção contra casos graves não leva em consideração o mundo real, é restrito às condições da pesquisa.”
Isso não quer dizer que pessoas com comorbidades crônicas estejam desprotegidas. Na realidade, Mucida acredita que a maioria responderá bem à vacinação. Mas, é preciso acompanhar o processo para analisar os dados da efetividade das vacinas no mundo real, principalmente entre grupos que não foram contemplados nos estudos – como foi o caso de Elizabeth Martins. “Teoricamente, ela deveria estar protegida, mas é uma situação muito específica e não chega a surpreender”, diz Mucida. “Claro que é triste, não queríamos que isso acontecesse, mas está dentro do esperado quando vacinamos milhões de pessoas.” Mucida alerta que outros casos como esse vão começar a aparecer e isso não coloca as vacinas sob suspeita. As pessoas com comorbidades específicas vão estar protegidas, mas não com a mesma eficácia relatada nos testes clínicos.
Além disso, os resultados dos testes clínicos estão condicionados às circunstâncias em que a pesquisa foi realizada. Dados coletados em países diferentes, com condições epidemiológicas particulares, geram saldos de eficácia distintos. O período em que os ensaios foram realizados também pode afetar a eficiência da vacina no mundo real. “Os testes clínicos realizados no ano passado não conseguiram distinguir a eficácia entre a variante original e as variantes em circulação hoje no Brasil”, explica Mucida. Essa pode ser mais uma explicação para o óbito de Elizabeth Martins. A unidade de saúde onde ela foi internada não informou se a infecção foi provocada por uma das novas variantes do Sars-CoV-2 ou pelo vírus original.
Segundo dados da Fiocruz, existem pelo menos 39 linhagens circulando no país atualmente. “A variante da P.1, identificada em Manaus, provavelmente escapa à resposta imune, e é possível que a eficácia de morte e hospitalização com essa variante também seja menor que 100%. Isso é mais um fator que pode diminuir a eficácia da vacina e precisa ser levado em consideração”, argumenta Mucida. Ele lembra que, nesse ponto, a CoronaVac pode ser vantajosa. Por utilizar o vírus inteiro na produção da vacina, ela pode ser mais eficaz contra as novas variantes do que os imunizantes que utilizam apenas partes do vírus. “Mas tudo isso precisa ser estudado”, conclui Mucida.
A variante P.1, hoje encontrada em todas as regiões do Brasil, representa 40% das análises genômicas realizadas pela Fiocruz em fevereiro deste ano, o que indica alta prevalência e capacidade de transmissão. Por enquanto, o país só vacinou cerca de 7% da população – ritmo considerado lento pelos especialistas. Além das consequências para o quadro geral da epidemia no país, essa lentidão ainda afeta casos particulares. Em Niterói, no Rio de Janeiro, um ginecologista de 69 anos tomou a primeira dose da CoronaVac no dia 12 de janeiro. Além de ser profissional de saúde, ele tinha enfisema pulmonar (outra comorbidade específica não incluída nos testes clínicos) e estava com 70% do pulmão comprometido. Quatro semanas depois, ele apresentou sintomas gripais. No dia 10 de fevereiro, chegou o resultado positivo do teste para Covid-19. Os sintomas pioraram e ele foi internado no dia 12, data marcada para receber a segunda dose do imunizante.
A família, toda formada por médicos, acompanhou a evolução do quadro clínico. Ele ficou quinze dias na UTI em um hospital particular no Rio e foi intubado depois de uma tromboembolia (coágulos sanguíneos nas artérias pulmonares) e faleceu no início de março. “Desde o começo da pandemia, a gente sabia que qualquer possibilidade de infecção por coronavírus seria delicada no caso dele por causa da doença de base pulmonar”, explica a filha, Joana Abreu. “Então a gente não consegue dimensionar se a Covid dele foi grave ou se teve complicações por causa da doença prévia.” Além disso, como o ginecologista não chegou a receber a segunda dose, a imunização não estava completa. O imunologista Daniel Mucida explica que os ensaios clínicos não acompanharam grupos com dose única para comparação. Logo, não é possível confirmar se ele desenvolveu a resposta imune esperada pelo estudo. “A gente imagina que se a vacina tivesse chegado antes, talvez ele pudesse ter sobrevivido. Depois que acontece a gente pensa tudo, né”, diz Abreu.
Para os especialistas, a situação do Brasil é perigosa – para o país e para o mundo inteiro. “A imunização incompleta e o descontrole da pandemia são riscos altíssimos para o surgimento de novas variantes mais letais e com maior capacidade de dispersão”, lembra Mucida. A ampla cobertura vacinal é a única medida farmacológica capaz de controlar a pandemia. Até chegar lá, os imunologistas alertam que qualquer pessoa, inclusive vacinada, pode se infectar e transmitir a doença. “Nas atuais condições, não importa qual vacina você tome, é possível que você desenvolva a doença”, diz o imunologista Gustavo Miranda. Foi exatamente o que aconteceu com Martins. O caso dela ressalta a importância de seguir com os cuidados não farmacológicos, como uso de máscara e distanciamento social, mesmo após a vacinação.
Tanto Miranda quanto Mucida ressaltam que o vírus continuará circulando entre nós. Apesar da vacinação em massa trazer relaxamento nas medidas restritivas, o antigo normal não voltará imediatamente. Em um artigo publicado pela revista Nature, 89 dos 100 especialistas entrevistados acreditam que as chances de erradicação do coronavírus são quase nulas e a maior parte deles indica que o Sars-CoV-2 se tornará endêmico em certas regiões. Casos como o de Elizabeth Martins, se estudados, podem ajudar no desenvolvimento de vacinas cada vez melhores. “Precisamos identificar essas ocorrências e estudá-las. Os cientistas precisam ser provocados – é assim que a ciência funciona”, diz Miranda.
Procurado, o Instituto Butantan não respondeu se investiga o caso de Elizabeth Martins ou outras ocorrências de hospitalização e mortes depois da aplicação de segunda dose da CoronaVac. À piauí, o instituto disse que “é prematura e irresponsável qualquer conclusão sobre óbitos de pessoas vacinadas sem que haja uma minuciosa investigação de cada caso – especialmente em relação a indivíduos com comorbidades – atribuição esta a serviço das vigilâncias epidemiológicas do Sistema Único de Saúde”. A nota também esclarece que a vacinação com o imunizante reduz o risco de uma pessoa ter a doença causada pelo vírus Sars-CoV-2 (Covid-19) e que algumas semanas são necessárias para que seja obtida uma resposta imune (proteção) adequada após as duas doses, aplicadas com intervalo de tempo de 14 a 28 dias.
O Butantan também explicou que algumas pessoas podem ainda ter a doença ou a infecção mesmo tendo sido vacinadas e que a vacina adsorvida contém o vírus Sars-CoV-2 morto, sendo capaz de produzir ampla resposta imune, mas sem causar a doença. “A eficácia e a segurança da vacina adsorvida Covid-19 (inativada) foram comprovadas por meio de testes clínicos de fase 3 realizados com 12,5 mil voluntários em 16 centros de pesquisa brasileiros, e pela Anvisa, órgão regulador nacional que autorizou o uso emergencial do imunizante. É importante que a população siga se vacinando, conforme a disponibilidade do imunizante na rede pública e os esquemas vacinais adotados pelos gestores de saúde. Vacinas salvam vidas”, diz a nota.