Que coisa mais inédita, que insólito para um músico, se encontrar assim, de supetão, dentro de um táxi a caminho do aeroporto, um taxi, que tinha um metrônomo dos antigos dias, grudado em seu painel, entre uma N. Sra. Aparecida e um São Cristovão!!
O taxista tinha uma assemblage ali em seu carro, fazendo-me pensar em Arthur Bispo do Rosário e Man Ray. Lembrei até de alguns fusquinhas/táxi dos anos 70/80, com seus miniventiladores, terços, santos, enfim, todos aqueles adereços, verdadeiras manifestações de arte popular perdidas no anonimato da grande cidade. O assento do motorista estava coberto com um coxinilho colorido, totalmente anacrônico.
O taxista, senhor ligeiramente calvo, tinha um jeito tímido, sabem como é? Aquele jeito de quem parece sempre sentir como invasão de intimidade, um desconhecido entrando em seu veículo? Mesmo que ele dependa disso, mesmo que seja esse o seu ganha pão.
Ao meu bom dia, ele respondeu de forma resignada, dando um grunhido simpático. Percebi que me avaliava, com aquele olhar de quem, por força do trabalho, é habituado a prestar atenção em trinta coisas ao mesmo tempo.
Não resisti, e achando que havia interpretado corretamente o grunhido, ao classificá-lo como simpático, arrisquei um comentário sobre o metrônomo:
– Sabe que eu nunca vi isso, um metrônomo num táxi?
– Ah! E o senhor conhece, sabe o que é um metrônomo…
– Sim, claro, eu estudei música. Mas como é que ele veio parar aqui?
E aos poucos ele foi se abrindo para mim e falou sobre o objeto:
No meu tempo, no curso primário tinha aula de música, o canto orfeonico, aquele do Villa Lobos, sabe? Na época, o professor de música era o professor Valdeci. Ele comprou um metrônomo pra ajudar nas aulas. O senhor sabe como são as crianças né, sempre interessadas numa traquitana, ainda mais com esse negócio de dar corda.
Bom, os alunos viviam pedindo pra dar corda e disparar o metrônomo. Mas só os melhores tinham esse privilégio.
E uma vez, depois que eu cantei de cor o “Cisne Branco”, o hino da marinha, cantei sem errar nada, fui escolhido para dar corda e disparar o metrônomo. Nesse dia, comecei a cobiçar o bichinho.
Bom, muitos anos atrás voltei pra minha cidade, e um dia encontrei o professor Valdeci na rua.
Falei que tinha sido seu aluno, mas ele só lembrou de mim quando mencionei o metrônomo. Aí ele lembrou até de meu nome, Otto. Perguntei se ele ainda tinha o metrônomo. Meu neto pegou ele pra brincar e quebrou o mecanismo, agora está abandonado em algum lugar lá em casa, ele me disse… Então eu falei que não devia de ser difícil de consertar, que não havia de ser difícil arrumar aquele bichinho, tão simples mecanismo de corda, ai,ai,ai…
E falei tanto que ele deve ter percebido minha cobiça, e no final de contas acabou me dando o metrônomo, de presente.
Daí eu arrumei direitinho o mecanismo,caprichei mesmo. Limpei bem, passei óleo de peroba, pra fica bem lustroso, e coloquei aqui, na minha coleção!
Achei a história incrível e quis saber de que cidade ele vinha. O taxista respondeu: “Olha, eu sou ali do norte do Paraná, não sei se o senhor conhece, Rolândia…”
Aí eu disse que era de Londrina, e ficou aquele bate papo de conterrâneos, pois Rolândia é quase subúrbio de Londrina. Então ele colocou o metrônomo pra funcionar, e eu fiquei olhando, hipnotizado, para aquele artefato, estranhíssimo em um taxi. Esqueci de minha preocupação com o trânsito, com o trabalho, com o arranjo, com a gravação no Rio…
Olhando para fora, vi que o tempo já se acabrunhava, num cinza sórdido. Que contraste com nossos corações, iluminados pelo calor desse objeto de afeto, cujo monótono ruído parecia embalar os dois velhos, a caminho do aeroporto.
—
Paul McCartney utiliza o metrônomo como base rítmica em “Blackbird”, é curioso como a gente quase não percebe isso.
Ennio Morricone também faz uso de um metrônomo (com o som distorcido) em “Farewell to Cheyenne”, na trilha sonora de “Era uma vez no oeste”.
E o compositor húngaro Gyorgy Ligeti, que sempre revelou uma fascinação pelos “autômatos”, escreveu uma peça para 100 metrônomos (será que ele estava aludindo ao múltiplo de Man Ray ao escolher o nº 100?), com o título de “Poema sinfônico para 100 metrônomos”. É uma peça extremamente interessante, transcendendo o meramente musical, ao aproveitar aspectos expressivos do objeto em si, ultrapassando as fronteiras entre musica e artes plásticas, numa instalação “mecânica”. Vale a pena ver, principalmente se você cultiva a paciência como uma virtude fundamental do ser humano..
E o Cisne Branco, na voz emocionante de Dalva de Oliveira. A música originalmente se chamava dobrado “Sargento Calhau”, do talentosíssimo autor de dobrados Antonio Manoel do Espirito Santo (1º sargento do exército). Posteriormente, recebeu letra Benedito Xavier de Macedo (2º tenente da marinha) e passou a se chamar “Cisne Branco”.
Crédito da ilustração: Objeto indestrutivel, de Man Ray