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    FOTO: ROGER CREMERS PARA O INTERNATIONAL DOCUMENTARY FILM FESTIVAL AMSTERDAM (IDFA)

questões cinematográficas

Milagre em Amsterdã – O jovem Dziga Vertov

Os primeiros passos do cineasta que é considerado o Trótski do cinema

Eduardo Escorel | 28 nov 2018_09h46
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Para celebrar o primeiro ano da Revolução de Outubro, foi lançado, em 7 de novembro de 1918, O Aniversário da Revolução, filme de arquivo editado por Dziga Vertov (pseudônimo de Denis Arkadyevich Kaufman, 1896-1954), produzido pelo Comitê de Cinema do Comissariado de Esclarecimento do Povo.

Cem anos depois, na noite de 20 de novembro, durante o 31º Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), mais de 700 pessoas lotaram a sala 1 do Pathé Tuschinski, no Centro da capital, para assistir à estreia mundial da cópia restaurada e recomposta de O Aniversário da Revolução.

Quando cheguei ao monumental cinema de estilo eclético, no qual o projeto de Hijman Louis de Jong harmonizou o expressionismo da Escola de Amsterdã com traços Art Nouveau e Art Deco, o sentimento compartilhado, creio por boa parte dos que tiveram o privilégio de ir a essa sessão, era de estar prestes a ser testemunha de um milagre – a estreia de um novo filme de Vertov.

Havia uma excitação perceptível no saguão e na plateia, à medida que o público tomava seus lugares no Tuschinski, assim chamado em homenagem a Abraham Icek Tuschinski (1886-1942), homem de negócios e exibidor, nascido na Polônia, que construiu o cinema, inaugurado em 1921, com 1 620 lugares na época.

A aparição inesperada de um Vertov desconhecido não tinha, na verdade, nada de milagroso – era resultado, em primeiro lugar, do trabalho meticuloso do historiador Nikolai Izvolov, reconstituindo e supervisionando o restauro de O Aniversário da Revolução a partir da lista de sequências descoberta pela pesquisadora Svetlana Ishevskaia, com a colaboração do Arquivo Estatal Russo de Fotos e Filmes Documentários, em Krasnogorsk, nos arredores de Moscou.

Para tornar possível essa exibição do primeiro longa-metragem de Vertov, foi decisiva também a iniciativa do novo programa IDFA on Stage (IDFA no Palco). Contando com o apoio do Prins Bernhard Cultuurfonds (Fundo cultural Prins Bernhard), O Aniversário da Revolução, embora silencioso, pode ser exibido com trilha original e acompanhamento ao vivo – 70’ de música eletrônica improvisada e arranjos de composições eruditas, durante os 119’ da projeção. Com direção musical e produção da Bass Beek/CineSonic, estavam postadas no palco, embaixo da tela, três instrumentistas (pianista, violinista e de equipamento eletrônico), além de um acordeonista e uma soprano; e no balcão, a soprano e regente Anna Azernikova, estava à frente do Russian Chamber Choir (Coro de Câmara Russo, de Amsterdã).

FOTO: ROGER CREMERS PARA O INTERNATIONAL DOCUMENTARY FILM FESTIVAL AMSTERDAM (IDFA)

 

Vertov começou sua carreira, aos 22 anos, fazendo os kino-nedelia, 43 cine-jornais da semana, lançados a partir de maio de 1918, até junho de 1919. Segundo o historiador Yuri Tsivian em Lines of Resistance: Dziga Vertov and the Twenties (sem edição brasileira), o próprio Vertov mutilou vários desses cine-jornais, cortando cenas para usá-las em O Aniversário da Revolução. Forçado por seu então chefe a restaurar os kino-nedelia dos quais retirara sequências, Vertov em alguns casos substituiu as imagens originais por outras, às vezes “anacrônicas”, escreve Tsivian. Tornou-se difícil, assim, saber “com qual versão dos cine-jornais lidamos [hoje em dia]: a original ou as que foram refeitas em 1919”.

A importância principal, tanto dos kino-nedelia, disponíveis online há alguns anos no site do filmmuseum da Áustria, quanto de O Aniversário da Revolução, agora ressuscitado, é permitirem conhecer o início da formação de Vertov. Seria sem sentido, porém, compará-los a O Homem com a Câmera, o inovador filme de Vertov feito dez anos depois que, apesar de ter enfrentado forte oposição interna quando lançado na União Soviética em abril de 1929, tornou-se um marco da história do cinema mundial.

Nem por isso, os cine-jornais e o longa-metragem de estreia do cineasta iniciante devem ser desconsiderados. Pelo contrário. São os primeiros passos de um aprendizado. Apesar da simplicidade da edição, incluem registros pouco conhecidos, como, entre outros, o das primeiras manifestações da revolução de Fevereiro de 1917, na Rússia, que levaram à abdicação do czar Nicolau II, e o da atuação de Leon Trótski no primeiro ano da República Soviética recém-criada, após a vitória dos bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin.

Notícia publicada em 3 de novembro de 1918, dias antes da estreia de O Aniversário da Revolução, informa que o Comitê de Cinema do Comissariado do Povo está lançando o longa-metragem que “capta todos os elementos principais da Revolução Russa”. Junto com outro filme (Os Inimigos do Poder Soviético e a Luta Contra eles), do qual nada se sabe, O Aniversário da Revolução seria “exibido à noite em cinco praças de Moscou e na maioria dos cinemas da cidade. A entrada em todos os cinemas seria gratuita”.

O Comitê de Cinema afirma ainda estar “organizando dez trens especiais, batizados em homenagem ao camarada Lenin […]. Haverá um cinema móvel instalado em um vagão de cada trem. O filme virgem será enviado para as províncias. As cerimônias comemorativas de Outubro, prestes a acontecer, serão filmadas de modo a produzir um filme inteiro das celebrações a ser distribuído não apenas da Rússia mas também no exterior”.

É difícil precisar até que ponto esses grandiosos propósitos chegaram a ser efetivamente realizados, mas atestam a posição de destaque dado ao cinema na época. Quanto à atuação de Vertov, baseados em seus próprios textos de 1935 e 1958, ficamos sabendo que considerava ter aprendido a ser um escritor de cine-jornais em uma mesa de montagem e em um trem blindado: “Eu aprendi fazendo os kino-nedelias, fazendo A Batalha de Tsaritsyn [curta-metragem inédito de 1920, do qual não há cópia conhecida], montando O Aniversário da Revolução […].”

Depois, Vertov relata, “houve as viagens para o front com o camarada Yermolov [Pyotr Yermolov, cinegrafista]. Os resultados foram dois filmes experimentais curtos e material documentário para um trabalho futuro, A História da Guerra Civil. […] O passo seguinte foi meu trabalho nos trens de agitação. […] Em 6 de janeiro de 1920, eu parto com o camarada [Mikhail] Kalinin para o front sudeste. Levo filmes comigo, incluindo O Aniversário da Revolução. Nós estudamos o novo espectador. Projetamos o filme em todas as paradas do trem e em salas de cinema urbanas. Ao mesmo tempo, filmamos. O resultado é um filme sobre a jornada de Kalinin, principal líder do Comitê Executivo Central da Rússia. Esse período do meu trabalho se conclui com o grande filme A História da Guerra Civil”.

Após a sessão de O Aniversário da Revolução, na semana passada, em Amsterdã, a nota dissonante da noite gelada soou enquanto voltava andando para o hotel, pensando no destino dos principais responsáveis pelo evento festivo que acabara de ocorrer.

Hijman Louis de Jong (1882-1944), arquiteto que projetou o cinema Tuschinski, foi internado em Westerbork, campo de detenção e trânsito, no nordeste da Holanda, controlado pelos nazistas a partir de 1942. Depois de transferido, foi morto em Auschwitz.

Abraham Icek Tuschinski (1886-1942), dono do cinema batizado com seu sobrenome, também foi levado para Westerbork e transferido para Auschwitz, onde foi morto.

Dziga Vertov enfrentou o que ele mesmo definiu como “oponentes” durante toda sua carreira. A dificuldade para realizar seus projetos pessoais persistiu, mesmo após ter feito Três Canções sobre Lenin, em 1934. Em outubro de 1939, ele escreveu em seu diário: “Eu faço uma proposta depois da outra. Enquanto o estúdio não propõe nada. […] E eu sinto como se estivesse no fundo. Diante do primeiro degrau de uma escadaria longa e íngreme. Você quer fazer um filme a partir de um roteiro. Mas lhe dizem: ‘Bem, quem pode escrever o roteiro para você?’

Você quer fazer um filme sem um roteiro. Mas lhe dizem: ‘Isto não tem um plano. Um filme deve necessariamente ser feito conforme um roteiro.’ Você quer fazer filmes sobre pessoas reais. Lhe dizem: ‘Estou firmemente convencido que pessoas reais não podem ser filmadas de modo documentário; não podemos permitir isso.’ […] aí lhe dizem: ‘Não podemos permitir que você faça isso. Você tem um nome e uma identidade criativa. Nosso estúdio não pode correr esse risco. Nós precisamos mantê-lo da maneira que sua reputação no cinema requer.’ Aonde, eu pergunto, está a saída para esse impasse?” [Citado por Annette Michelson em Kino-Eye The Writings of Dziga Vertov, 1984, sem edição brasileira.]

Para Michelson, a persistente dedicação à construção do socialismo em um só país impediu Vertov de reconhecer que ele se tornara o Trótski do cinema.

Vertou encerrou sua carreira no ostracismo, com colaborações ocasionais no cine-jornal Novosti Dnya (Notícias do dia). A partir de 1944, desistira de apresentar novos projetos. Morreu, aos 58 anos, vítima de câncer no estômago.

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