Este conteúdo é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados aqui.
Aquele 17 de outubro de 2019 foi um dia funesto para o Exército Nacional mexicano. Em Culiacán, capital de Sinaloa, sede do Cartel de Sinaloa e uma das grandes apostas da militarização no México, o crime organizado subjugou as Forças Armadas em questão de minutos. O que deveria ter sido uma operação cirúrgica e controlada para prender, com uma ordem de extradição para os Estados Unidos, o traficante Ovidio Guzmán López, filho de Joaquín Guzmán Loera, vulgo “El Chapo”, terminou com o governo mexicano sendo forçado a decidir entre duas opções: libertar um dos criminosos mais procurados do país horas depois de capturá-lo num condomínio da cidade ou endossar o possível assassinato de mais de duzentos civis, incluindo muitos familiares de soldados.
As imagens daquele dia, gravadas com celulares, ilustram o fiasco da estratégia militar: sicários com fuzis invadindo a Nona Zona Militar da cidade, as ruas tomadas por civis armados, soldados sendo retidos nas estradas para evitar que ajudassem seus companheiros no fogo cruzado, e até mesmo o sequestro de viaturas militares pelos narcotraficantes.
A decisão foi libertar Ovidio Guzmán. Numa primeira versão, o governo federal alegou que a operação tinha sido fortuita e sem aprovação do alto comando. Dias mais tarde, reconheceu que havia sido planejada pela Polícia Militar Ministerial e pela Divisão Antidrogas da extinta Polícia Federal, agora Guarda Nacional. Em 19 de junho de 2020, oito meses depois, o presidente da República, Andrés Manuel López Obrador, admitiu que a ordem partira dele, reconhecendo assim a operação fracassada que ficou conhecida no México e no mundo inteiro como o “Culiacanazo”.
Ernesto Martínez, um repórter que faz a cobertura de segurança para uma rádio local e um dos jornalistas mais bem informados sobre os tortuosos temas da violência, estava lá. “A partir desse momento, os grupos criminosos ganharam força e o Estado de Direito deixou de existir”, diz o jornalista que relatou ao vivo o tiroteio entre militares e sicários do Cartel de Sinaloa.
Segundo os planos do governo, isso nunca deveria ter acontecido, muito menos em Sinaloa, e menos ainda em Culiacán, um lugar onde ocorre há anos uma profunda militarização das atividades civis com a intenção de reduzir a violência gerada pela criminalidade.
A demonstração mais simbólica aconteceu em 28 de novembro de 2018, a três dias da posse de López Obrador na presidência da República. Nas mesmas ruas da cidade onde quase um ano depois aconteceria o “Culiacanazo”, desfilaram 3.079 militares, 15 aeronaves, 74 cães policiais e mais de 70 veículos de combate. Muitos deles eram membros da Polícia Militar que ficariam alojados numa nova base em Culiacán chamada El Sauz, que custou ao governo estadual 700 milhões de pesos (cerca de 35 milhões de dólares).
Foi um desfile de luxo: aviões cruzaram o céu, soldados marcharam em perfeita sincronia, os blindados pareciam invencíveis, e até saíram os homens camuflados para operações na selva. Diante de militares do alto escalão e de uma população que aplaudiu os fardados por sua “galhardia militar”, o então governador de Sinaloa, Quirino Ordaz Coppel, disse: “Saibam que admiramos, reconhecemos e valorizamos muito seu trabalho; que nos sentimos muito orgulhosos de vocês e que sabemos que isso nos ajudará a ter uma convivência mais harmoniosa e pacífica”.
Mas em 17 de outubro de 2019, aquela cenografia de poderio militar foi desmontada. O Conselho Estadual de Segurança Pública anunciou que os militares da base militar de El Sauz haviam sido transferidos para outras tarefas, como as de contenção do fluxo migratório no Sul do país. “Agora eles já perderam o respeito; para eles (os traficantes) essa autoridade não existe”, advertiu Martínez. Naquele dia, Culiacán, o laboratório militar do México, foi a cidade do crime.
Militares por terra, mar e ar
A partir da segunda metade do século passado, as Forças Armadas mexicanas marcaram os rumos do país. Segundo o Inventario nacional de lo militarizado. Una radiografía de los procesos de militarización en México, documento produzido pelo Centro de Pesquisa e Ensino Econômicos (CIDE), os militares foram um ator fundamental na manutenção da ordem autoritária antes da transição para a democracia: seja reprimindo movimentos rurais e urbanos, seja negociando, formal e informalmente, a proteção de particulares em nível local. Mas o uso maciço das Forças Armadas tem sido um expediente recorrente desde 2006, quando o ex-presidente Felipe Calderón declarou a guerra contra as drogas.
O inventário registra mais de 130 funções e cerca de 85 bilhões de pesos mexicanos (cerca de 4 bilhões de dólares) em verbas — sem contar os bens imóveis — repassados às Forças Armadas por órgãos federais, por meio de convênios, entre 2007 e 2021. “Atualmente, as atividades com ampla intervenção do Exército abrangem a construção de infraestrutura pública e privada; a distribuição de combustíveis, livros didáticos para o ensino básico e fertilizantes; a vigilância das fronteiras Norte e Sul; a detenção e inspeção de imigrantes; o controle portuário e aduaneiro; e até mesmo a participação dos chefes do Exército e da Marinha no Conselho de Ciência e Tecnologia”, lê-se no documento.
No México, as Forças Armadas têm autorização para efetuar prisões, confiscar bens, preservar o local do crime e inspecionar a entrada e saída de pessoas do país. Contam com uma Guarda Nacional que eliminou a Polícia Federal e que permanece militarizada em seus corpos e comandos, apesar da promessa de que teria caráter civil. A administração dos portos ficou sob a responsabilidade da Secretaria da Marinha. E colocou-se um militar à frente da Agência Federal de Aviação Civil.
Além disso, durante a pandemia, o Exército foi incumbido da distribuição, guarda e aplicação da vacina contra a Covid-19, além da vigilância de dezenas de instalações, incluindo hospitais e depósitos, para proteger os profissionais de saúde de possíveis agressões. O Ministério da Defesa Nacional lançou editais de contratação de especialistas da área de saúde, médicos e enfermeiros, tarefa que originalmente cabia ao Ministério da Saúde.
López Obrador também encomendou aos militares a construção e gestão de três trechos do Trem Maia e do Aeroporto Internacional Felipe Ángeles, em Santa Lucía, e os colocou no comando dos aeroportos de Chetumal, Palenque e Tulum.
Embora o processo de militarização maciça tenha começado em 2006, com o ex-presidente Felipe Calderón (PAN), e continuado com Enrique Peña Nieto (PRI), a transferência de atividades e recursos econômicos de civis para militares ganhou força sob a gestão de Andrés Manuel López Obrador (Morena). O poder castrense ultrapassou partidos políticos e ideologias.
“Os militares são treinados para eliminar o inimigo”, diz Catalina Pérez Correa, coautora do Inventario Nacional de lo Militarizado, ao comentar as violações de direitos humanos decorrentes da intervenção de militares em funções civis. “Os soldados estão fazendo o que têm que fazer, o erro é dos civis que os colocaram nessa posição.”
O Exército está cada vez mais presente no cotidiano dos mexicanos, mas não deixou de ser o Exército num aspecto fundamental: a opacidade como corpo de segurança nacional. Por exemplo, não acata as resoluções do Instituto Nacional de Transparência. “Isso vem sendo usado nessas instituições para não fornecer informações, desconhecemos os contratos de obras públicas, a destinação de bens públicos”, explica a acadêmica.
A ampliação da militarização da coisa pública parte da ideia de que os militares são menos corruptos que os civis; contudo, a opacidade castrense aumenta os riscos de corrupção. Para Pérez Correa, os governos civis usam os militares para disfarçar facilmente suas deficiências estruturais, e o ônus de eventuais erros não recai sobre os políticos, e sim sobre as Forças Armadas: “É muito mais fácil dizer: ‘Eu não vou mexer com isso, melhor deixar os militares fazerem’”.
As Forças Armadas, por sua vez, aproveitam as verbas civis para melhorar a viabilidade econômica de sua estrutura, como, por exemplo, os serviços de saúde e habitação. Ainda mais grave, explica Pérez Correa, é os governos permitirem que os militares obtenham dinheiro diretamente, sem necessidade de aprovação do Legislativo, como acontecerá com os três trechos do Trem Maia e com o aeroporto Felipe Ángeles de Santa Lucía. “No final das contas, orçamento é poder”, diz a acadêmica. “E o poder do Exército é tão grande que é muito difícil afirmar que os militares estejam subordinados ao poder civil.”
Mais Exército depois do “Culiacanazo”
Quando Quino Ordaz Coppel chegou ao governo de Sinaloa, em 2017, encontrou as polícias desarticuladas e optou por militarizar a segurança pública: manobrou para colocar um militar no comando da maioria das polícias dos dezoito municípios do estado, nomeou um militar como secretário de Segurança, outro como subsecretário, e um terceiro como diretor da Polícia Preventiva do Estado.
O governo estadual gastou centenas de milhões de pesos na base militar de El Sauz, com drones operados pela Secretaria da Marinha — mais tarde doados a essa instituição —, em veículos e comunicações para melhorar a segurança dos cidadãos. O resultado é pouco convincente: os assassinatos, de fato, diminuíram, mas o número de desaparecidos aumentou. Em 2017, foram registrados pouco mais de 800 desaparecimentos, enquanto em 2019 houve mais de 1.200, conforme relato da revista Espejo. Por outro lado, o Ministério Público de Sinaloa informa que, no mesmo período, o registro de homicídios dolosos caiu de 1.564, em 2017, para 936 em 2019.
Alejandro Sicairos, um experiente jornalista de Sinaloa, comenta que a militarização dos comandos da polícia civil parece ser mais uma concessão aos militares de alta patente do Exército do que uma providência para melhorar a segurança. “Já estamos há quase cinco anos insistindo nesse modelo de comando militar nas polícias e não vimos nenhuma mudança considerável nos resultados”, diz ele.
A presença de tantos militares no governo, analisa Sicairos, faz parte de uma estratégia federal e local para ganhar o apoio das Forças Armadas e garantir estabilidade política e governamental em troca de cargos públicos e verbas, mas isso implica em riscos muito altos. “Os militares, quando resolvem se insubordinar ao poder civil, não hesitam em tomar suas próprias decisões, mesmo que recebam todos os privilégios do governo”, adverte.
Mas a aposta na militarização do estado considerado berço dos cartéis do país segue firme: o novo governador de Sinaloa, Rubén Rocha Moya, manteve o tenente-coronel Cristobal Castañeda Camarillo à frente da Secretaria de Segurança Pública de Quirino Ordaz Coppel, atendendo à solicitação da Defesa Nacional. Foi o único funcionário a permanecer no novo gabinete depois da troca de governo do PRI para o Morena.
Ricardo Jenny del Rincón, ex-coordenador-geral do Conselho Estadual de Segurança Pública, um órgão da cidadania que trabalha em sinergia com autoridades de segurança do governo, afirma que em Sinaloa foi solicitada a presença dos militares em praticamente todos os setores das polícias porque o governo de Ordaz Coppel havia encontrado instituições fracas e desarticuladas, com contratos vantajosos para particulares. Além disso, o governador tinha uma amizade muito próxima com o ex-secretário de Defesa Nacional, Salvador Cienfuegos Zepeda.
Para Del Rincón, que pediu demissão do cargo semana passada, a polícia estadual teve mesmo uma melhora em capacidade de força, comunicação e administração desde que os militares assumiram seu comando. Ele reconhece que é preciso ceder espaço para os civis, pois sabe que os soldados são treinados para a segurança nacional, para a guerra, para o combate ao tráfico de drogas e para o socorro em desastres naturais, não para a segurança pública. Diferentemente da polícia civil, argumenta, os soldados não estão preparados para prevenir roubos de casas e veículos, violência familiar, sequestros, agressões, estupros, feminicídio.
“Entendemos que se deve aproveitar o que os militares deixaram de positivo enquanto estiveram à frente dessas instituições, mas eles mesmos têm que conduzir sua saída gradual e inteligente e transferir o comando a quadros civis”, explica.
Mas a saída não aconteceu e, apesar dos parcos resultados na segurança e do sentimento de desamparo que o “Culiacanazo” provocou, o pacto com os militares foi renovado e reforçado.
Berço de cartéis, terra de militares
Sinaloa tornou-se um laboratório da militarização de Norte a Sul: há projetos para a construção de oito quartéis da Guarda Nacional. Um deles fica na cidade de Guamúchil, na estrada principal que atravessa o município de Salvador Alvarado. Foi construído bem em frente à base de combustíveis da Petróleos Mexicanos. É um recinto cercado de altos muros de blocos brancos e cinza, com farpado no topo. À primeira vista, parece uma prisão. É impossível passar pelo local sem se sentir observado pelos soldados da Guarda Nacional que vigiam a estrada e a entrada do quartel do alto de uma torre de concreto.
Em Mazatlán, a Secretaria da Marinha controla a Administração Portuária Integral (API) e as ilhas Marías, um antigo presídio que está sendo transformado em zona turística e, embora pertença ao estado vizinho de Nayarit, tem a cidade costeira de Sinaloa como porto de partida.
No dia 25 de outubro de 2021, o governo estadual encomendou à Secretaria da Marinha a construção de uma avenida, “com o investimento de cerca de 200 milhões de pesos em quase dois quilômetros”. Ao fundo do local viam-se quatro retroescavadeiras aguardando o sinal verde para começar as obras. O então governador Quirino Ordaz, o prefeito de Mazatlán e o governador recém-eleito, Rubén Rocha, não faltaram ao evento inaugural.
“A avenida Delfín terá 1. 803 metros de comprimento e contará com seis pistas, uma ciclovia e uma ponte de 21 metros. Partirá da avenida Atlântico e chegará até o bairro de Colonia Chulavista. Será uma via de acesso à área da Marina que não existia para essa parte da cidade”, lê-se no comunicado oficial do governo de Sinaloa, no qual se destaca o comparecimento e a aprovação de Rocha, o novo governador.
Essa notícia preocupa grupos civis que se dedicam a promover a transparência em Sinaloa, como o Observatório Cidadão de Mazatlán. Seu diretor, Gustavo Rojo, alerta que o principal problema dos militares é a extrema opacidade de seus processos de contratação.
“Não me lembro, na história recente de Mazatlán, de outra obra que tenha sido realizada pelas Forças Armadas, como neste caso. É a falta de transparência que nos preocupa, pois sabemos que quando se trata de civis temos o direito de acesso à informação, mas, quando são militares, eles encaram erroneamente essas informações como questão de segurança nacional”, critica Rojo no porto turístico que vive uma época de ouro por causa do turismo crescente e do investimento público e privado.
O ativista explica que a obra é importante em termos de recursos — pouco mais de nove milhões de dólares —, porém mais importante é seu traçado, pois cortará uma das áreas mais caras de Mazatlán: a Marina.
“Minha preocupação é que, a partir de agora, todas as obras sejam militarizadas”, conclui.
Em Culiacán os soldados têm quartéis da Guarda Nacional, operam viveiros, construíram a base militar de El Sauz com capacidade para mais de 3 mil militares e suas famílias, e mesmo agora, com a pandemia da Covid-19, operam de forma intermitente o Hospital Geral de Culiacán, originalmente planejado para civis.
Na cidade do “Culiacanazo”, onde ocorreu a maior derrota do Exército Nacional durante o governo de López Obrador, a aposta na militarização continua. Mudou o governador, mudou o partido no poder e mudou até a maneira de o crime organizado se relacionar com a sociedade de Sinaloa. A única coisa que não mudou foi a crescente influência militar no governo civil. E ela continua a passo vivo.
Tradução: Rubia Goldoni e Sérgio Molina