Lá se vão 42 anos desde que o psicólogo Milton Cunha partiu para a cidade de que se tornaria rei. Ele era um jovem de 20 anos que, àquela altura da vida, tinha sofrido todo tipo de crueldade na casa da família, em Belém do Pará. Do pai, guarda a lembrança de um episódio perturbador: quando ainda era menino, o colocou no colo e o tocou em seu pênis; da mãe, se lembra das humilhações com porradas e xingamentos, tentando consertar o seu jeito afeminado. Num final de tarde de 1982, ele juntou as roupas numa mochila, se despediu dos três irmãos e embarcou numa viagem em um caminhão pau de arara com destino ao Rio de Janeiro. Tomou banho no banheiro da Rodoviária do Rio – “lugar fétido, cheio de barata, um horror” – e saiu à procura de moradia. Soube que uma pensão alugava camas para “rapazes de fino trato” em Copacabana e se mandou para lá. Dividiu um quarto com seis homens. Por que abandonou a família para conviver com estranhos? “Eu não tinha opção, amado. Ou saía de casa, ou morria.”
Copacabana ainda é o bairro de Milton Cunha, mas hoje ele mora com o marido em um apartamento próprio. “Eu sou muito bom com dinheiro”, explica. “Não faço nenhuma aparição de graça, só se for por filantropia. Cobro horrores de dinheiro, comprei essa casa assim. Não sou desses que dorme em barracão de escola de samba, no meio da poeira.” Ele já foi carnavalesco e dirige peças de teatro. Mas se estabilizou na vida comentando os desfiles de Carnaval na TV Globo.
A porta do elevador abre diretamente dentro do seu apartamento de dois quartos, no nono andar de um edifício nem chique nem decadente construído em 1969. No ano passado, estive lá para acompanhar uma reunião de Cunha com os amigos. Cheguei às 19h e o encontrei conversando com o marido, duas mulheres e um casal de espanhóis vestidos de Gucci da cabeça aos pés. Dali a pouco, uma porta-bandeira da Portela chegou acompanhada do namorado. Mais tarde, apareceu uma passista com nanismo da Unidos da Viradouro. “Não ando com famoso nem com socialite”, diz o anfitrião. “Sou de um grupo muito louco, de gente anã, gorda, preta, todo tipo de excluído.” O nome do grupo em que eles se comunicam no WhatsApp? “Íntimos do Milton”. O critério para entrar? “Sou eu”, diz ele.
Na sala de estar falta espaço até para andar. Cada palmo de superfície foi ocupado por esculturas trazidas de Macau, Las Vegas e Durban, livros de teoria literária, artesanato popular, poltronas, cadeiras, uma mesa de centro, plantas (de plástico) e quadros (tortos de propósito). “Eu sou uma árvore de Natal”, diz Cunha. Um dos grandes prazeres dele é se esparramar no sofá de manhã para ler o jornal ao som de uma boa ópera. À noite, se esparrama para ver televisão. Assiste de tudo, mas conta que não viu a série Vale o escrito: a guerra do jogo do bicho, da Globoplay. Ele concedeu entrevista aos documentaristas, mas não quer se assistir falando dos bicheiros. “A Xuxa disse que estou ótimo na série, isso basta.”
O mundo do bicho convidou Milton Cunha para entrar no Carnaval no início dos anos 1990. Ele era figura carimbada na Zona Sul carioca, onde dirigia peças de teatro e curtia as casas noturnas. Um dia, estava na Boate Scala, no Leblon, e uma de suas amigas se atracou com um dos homens mais poderosos da cidade, o contraventor Anísio Abraão David, chefe da Beija-Flor de Nilópolis. Anísio ficou entre embasbacado e encantado com a personalidade espalhafatosa de Milton Cunha. Viu ali uma chance de fazer a sua Beija-Flor voltar a brilhar depois de dez anos sem vitórias. Convidado para ser carnavalesco, Cunha ficou na Beija-Flor durante quatro anos, depois trabalhou em União da Ilha, Unidos da Tijuca, São Clemente, Viradouro, Porto da Pedra e Cubango. Nunca venceu um campeonato.
Desfilando na Sapucaí com a Viradouro, em 2009, Cunha percebeu o olhar sem-vergonha de um rapaz atlético que estava na arquibancada. Era o passista e preparador físico Eduardo Costa. Os dois se atracaram. Dali a pouco tempo, trocaram alianças. Estão casados até hoje.
Saindo da sala de estar do apartamento do casal, chega-se ao corredor dos quartos e banheiros. Ali, há mais de trinta porta-retratos de Milton Cunha e Eduardo Costa pregados na parede, em molduras de diferentes cores e estampas. Virando à direita, caímos numa varanda ornada com plantas e bichos – macacos, araras, lagartos. “Amado, isso é tudo falso, de plástico”, diz Cunha. “Essa casa é uma grande alegoria, igual a mim.”
O irmão mais novo de Milton Cunha chegou ao Rio de Janeiro quatro anos depois dele. “O Milton foi a Belém para uma visita à família e, na despedida, quando ele entrava no táxi, eu agarrei os braços dele, olhei no fundo dos olhos e disse: me tira daqui”, lembra Marcelo Cunha. Um mês depois, chegaram as passagens de ônibus, enviadas por Milton, para a retirada do irmão. “Eu não teria a menor possibilidade de viver numa família que demonstra amor desse jeito esquisito, mal educado”, diz Marcelo. A mãe, Cleonice, bateu a cabeça de Marcelo na parede no dia em que o viu transando com outro homem. “Nós ficamos marcados pela crueldade.”
Milton Cunha esconde que visitou a família depois de ter saído de casa. Costuma contar que voltou a Belém do Pará apenas nos anos 1990, quando já era “a estrela da Beija-Flor”, e a mãe, depois de vê-lo no telejornal local, telefonou para dizer que “o perdoava por tudo.” Ele gargalha e se lembra da resposta: ‘Quem não te perdoa sou eu, amada’”. Os pais eram fumantes compulsivos. Ele morreu do coração, ela do pulmão. Os filhos não foram aos enterros.
“A família tradicional é um horror. Só tem louco. É um hospício geral”, diz Milton Cunha. Ele quer reunir as lembranças da infância em uma fotobiografia. Começou a pensar num projeto de memória durante a pandemia de Covid. Vasculhou antigos HDs e catalogou as fotos da vida toda. “Com três anos eu já proclamava poesia. Tenho foto disso.” O livro deve se chamar “Close dos Closes”. Cunha explica o título: “A ideia é que seja um close muito aproximado, que chegue até a minha alma, para as pessoas verem de perto a dor da criança viada que mora em mim.”
No Rio, o irmão Marcelo se descobriu pintor. Comercializa seus quadros na tradicional feira hippie de Ipanema, na praça General Osório. Localizá-lo não é difícil: sua barba é pintada de azul caneta. Ele já estampou alguns dos clássicos ternos de Milton Cunha, que o apresentador manda confeccionar sob medida em fábricas de Ipanema e São Cristóvão. Devido ao modo de se vestir e à semelhança física, Cunha costuma ser chamado de “Elton John brasileiro”. Detesta. “Ele é que é o Milton Cunha inglês.”
O apresentador veste os ternos para as gravações da TV Globo à luz do dia, numa época do ano em que a sensação térmica costuma ultrapassar os 40 graus no Rio de Janeiro. A pele dos seus braços tem uma alergia permanente causada pelo suor excessivo. “Eu fico ensopado, pingando cascatas. Foda-se, eu quero glamour”, diz ele. “Eu vendo um personagem. Faço isso pelo dinheiro. Se aparecer de camisa, estou fodido, ninguém me reconhece.” O personagem foi construído com tanta consistência que ele não consegue circular por nenhuma área da cidade sem ser abordado. Todos querem foto com Milton Cunha, até as socialites que ele despreza. Se quer pedir um favor ao prefeito, basta dar um telefonema.
A partir de dezembro, na iminência do Carnaval, o tempo e a qualidade de sono dele diminuem. “Aí fica tudo uma merda, amado. Eu sou um senhor de 61 anos. Dormir quatro horas por noite derruba a minha imunidade. Tenho que tomar vitaminas que vêm dos Estados Unidos só para mim. Hoje estou melhor, mas teve Carnaval que eu passei à base de injeções.”
A noite de encontro com os amigos parecia estar chegando ao fim. A empregada havia servido todas as garrafas de champanhe e cerveja da geladeira. Cunha mandou comprarem mais, e aproveitou para pedir duas pizzas. Todos foram se acomodar na apertada varanda com decoração florestal. Milton Cunha não anunciou, mas estava comemorando. Em 2023, subiu de cargo na Rede Globo. Além de apresentar a transmissão dos desfiles das escolas de samba do Rio, neste ano ele também foi escalado para a cobertura do campeonato paulista. “Estou de-ses-pe-ra-do”, diz, a respeito da carga de trabalho. Quando terminar a agenda do Carnaval, ele percorrerá o país dando aulas de confecção de fantasias. Precisa encontrar tempo para terminar o seu terceiro pós-doutorado na UFRJ, sobre a relação entre o Carnaval e o folclore.
“O estudo é um plano permanente na minha vida”, diz ele. “Chegando no Rio, em 1982, eu prometi a mim mesmo que trabalharia muito até o ano 2000. Disse: ‘Milton, você não vai estudar, não vai para a praia, não vai para a farra, nada, só trabalhar.’ Aí, quando chegou o ano 2000, eu disse: ‘Milton, o combinado é você voltar a estudar agora.’” Ele fez primeiro uma especialização em Moda e Indumentária pela Universidade Estácio de Sá.
Conheceu, no meio do samba, o professor Samuel Abrantes, da Escola de Belas Artes, que o incentivou a se candidatar ao mestrado de Ciências da Literatura da UFRJ. Cunha conquistou uma vaga na turma de 2004. Da bibliografia do curso, amou Terry Eagleton e detestou Martin Heidegger. “A coisa, coisal, da coisificação, do coisamento, da coisa que vai virando coiso. Acho horrível”, suspira, debochando do autor alemão. Ele encontrou entusiasmo no estudo dos sistemas simbólicos de Roland Barthes e partiu daí para elaborar uma dissertação sobre dez enredos de Joãosinho Trinta. Depois de um ano de descanso, ingressou no doutorado para analisar outros vinte enredos do carnavalesco.
Adora conviver com os septuagenários do meio acadêmico. Sentar para conversar com “aquelas pessoas que já estão sem força até para falar, mas têm uma enorme capacidade intelectual”. “Isso eleva o meu espírito. Me faz pensar que eu quero ser isso”, diz Cunha. “Uma das coisas que eu quero ser é isso. Mas, na hora de morrer, eu quero estar na avenida [da Marquês de Sapucaí].”
Me retirei da roda de conversa para ir ao banheiro. Ao fechar a porta, escutei o som crescente de um teclado ecoar pelo cômodo. Olhei para os lados, confuso. Máscaras de Carnaval e porta-retratos de Cunha com o irmão e o marido me olharam de volta. Então uma voz ressoou os versos: “Just a small town girl/Living in a lonely world/She took the midnight train going anywhere”. Era Don’t Stop Believing, da banda americana Journey. Descobri que a música saía de uma pequena caixa de som que Milton Cunha camuflou no armário, a fim de manter os seus convidados entretidos até no toalete. Uau.