Na última sexta-feira, quando sobrevoou a Serra do Amolar, entre Corumbá (MS) e Cáceres (MT), na fronteira do Brasil com a Bolívia, a tenente Luisiana Guimarães Cavalca estremeceu. A bordo de um helicóptero da Marinha, ela pôde constatar que a recente devastação do Pantanal avançava mesmo por quilômetros. Uma série de grandes incêndios florestais, que a própria militar ajudou a conter, tinha consumido parte considerável da vegetação. Ao longo de uma semana, a bombeira e sua equipe conseguiram evitar que o fogo chegasse à serra. O maciço não só abriga um parque nacional e três reservas particulares como serve de refúgio para onças-pintadas, capivaras e jacarés, entre outros animais silvestres. Mesmo assim, a oficial não se sentia vitoriosa. “Durante o voo, foi me dando uma tristeza imensa”, relembra. “Eu olhava toda aquela área destruída, uma região tão extensa que a gente nem é capaz de dimensionar. Fiquei pensando em quantos bichos morreram e no tempo que vai demorar para tudo se regenerar. Quase chorei.”
A tenente de 36 anos, que integra uma força-tarefa do Corpo de Bombeiros do Paraná, comanda um grupo de catorze homens. A corporação enviou 39 profissionais para confrontar as queimadas que se intensificam no Pantanal desde o início do segundo semestre. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o bioma amargou 8 106 focos de incêndios em setembro, quando bateu o recorde de registros mensais. A tragédia é tão superlativa que o Pantanal já soma 18 259 pontos de fogo nos nove meses de 2020, índice 82% acima do verificado nos doze meses de 2019 . A cifra atual se revela ainda mais expressiva ao considerarmos que a do ano passado já estava num patamar alto: era a maior desde 2005. “Eu sabia que teria muito trabalho por lá, mas não imaginava que seria tanto”, afirma a militar.
As adversidades se apresentaram já na primeira missão, em 17 de setembro, dois dias depois de a bombeira desembarcar em Corumbá. Ela e seu agrupamento foram destacados para lutar contra o fogo que devorava os arredores do Porto da Manga, às margens do Rio Paraguai. A equipe avançou de caminhão até onde era possível. Em seguida, enveredou a pé pela mata e recorreu a um drone para monitorar o incêndio, que se alastrava por mais de um quilômetro. A baixa umidade e as altas temperaturas favoreciam a propagação das chamas. A fumaça produzia uma cortina tão densa que não permitia ver cinco metros adiante. “O fogo andava mais rápido que nós”, conta a tenente. Enquanto o enfrentava, ela presenciou uma cena que a indignou. “Um senhor incendiava a vegetação que ficava do outro lado do rio. Infelizmente, estávamos sem barco e não conseguimos impedi-lo.”
A missão seguinte, na Serra do Amolar, exigiu paciência e muita liderança. “Como minha função é de comando, preciso pensar o tempo inteiro na equipe. Tenho que traçar rotas de fuga, definir qual a melhor tática de combate, tudo…” Os trabalhos no maciço se prolongaram entre os dias 25 de setembro e 2 de outubro. Na esperança de debelar o incêndio, a militar adotou prioritariamente uma técnica batizada de contrafogo, que consiste em queimar parte da mata para criar uma linha controlada de fogo. “Quando o incêndio se aproxima da linha, as chamas se encontram e não têm mais por onde se alastrar.”
Os primeiros momentos na serra foram decisivos e obrigaram a tenente a pelejar por 33 horas ininterruptas. No dia 25, os bombeiros acordaram às cinco da manhã e logo se deslocaram até o ponto crítico, aonde chegaram às duas e meia da tarde. Lá, a oficial designou que alguns homens subissem um morro para avaliar a situação. Quando os enviados retornaram, já era noite fechada. Eles não traziam boas informações: o incêndio estava avançado rapidamente. Às 22 horas, o grupo começou um contrafogo, tarefa que atravessou a madrugada. A militar orientou a instalação de um ponto de apoio, em que os bombeiros poderiam descansar e se alimentar. O foco só foi controlado às 6h30 do dia 26. A tenente ainda precisou cuidar da transição das equipes. Quando finalmente se deitou na cama, passava das 14 horas. “É claro que a gente cansa, tem sede e sente medo. Mas estamos fazendo o que gostamos. Eu me sinto honrada de representar a minha corporação e sei que meus familiares se orgulham de mim. Isso me dá forças para continuar.” Embora ela e seus comandados tenham contido todos os pontos de incêndio na última sexta-feira, a Serra do Amolar voltou a sofrer novas queimadas na segunda, dia 5. O grupo da oficial, entretanto, foi substituído por outro.
Luisiana Guimarães Cavalca nasceu em Curitiba e já na infância manifestou o desejo de ser bombeira. Filha de um dos pioneiros do triatlo no Paraná, herdou do pai a aptidão por esportes e se formou em educação física, mas nunca exerceu a profissão. Pouco depois de terminar a faculdade, ingressou no internato da Academia Policial Militar do Guatupê, em São José dos Pinhais, onde conheceu Alexandre Mançano Cavalca, que também se tornaria oficial do Corpo de Bombeiros. Todas as noites, os dois esticavam o jantar na copa da academia. Em abril de 2009, um mês após se encontrarem pela primeira vez, começaram a namorar. No dia de sua formatura, em dezembro de 2010, a bombeira foi surpreendida pelo parceiro, que lhe deu uma caixinha. “Dentro, tinha uma folha de papel em branco. Ele me disse para fechar os olhos e imaginar que, naquela folha, iríamos escrever a nossa história. Foi assim que fiquei noiva.” O casamento aconteceu em agosto de 2011.
Por ter sido uma das melhores da turma, a jovem pôde escolher em que cidade trabalharia. Mudou-se para Maringá, onde o marido já atuava, e se ligou ao 5º Grupamento. O combate às queimadas entrou na vida do casal em 2014, quando ambos fizeram um curso de dois meses que ensinava como agir em incêndios florestais. “Meu marido queria muito ter ido para o Pantanal. Só que o Alexandre é capitão e, desta vez, apenas os tenentes poderiam viajar. Ele me telefonou e disse: ‘Você é quem vai.’ Me deu a maior força. No dia seguinte, eu estava embarcando.”
A oficial afirma que não enfrenta grandes dificuldades para se impor diante dos catorze homens que comanda, apesar de as mulheres representarem somente 12% da corporação – dos 66,8 mil bombeiros do Brasil na ativa, apenas 8 mil são do sexo feminino. Além dela, mais uma tenente integra a força-tarefa paranaense no Pantanal. “O coronel disse que sou um exemplo. Acho que sou mesmo. É importante haver mulheres em postos de chefia, ocupando espaços que ainda não são femininos, mas que poderiam e deveriam ser. Afinal, minha mochila de equipamentos pesa os mesmos 20 kg que as dos meus colegas”, argumenta a comandante. “De fato, ocorreu uma quebra de paradigmas. Nunca, na história do Corpo de Bombeiros do Paraná, mulheres participaram de missões como essa. Elas estão desempenhando a tarefa de forma muito satisfatória”, avalia o tenente-coronel Ezequias Natal, responsável pela força-tarefa no Pantanal.
A militar, porém, refuta o rótulo de heroína. “Sou apenas uma oficial dos bombeiros.” Na Serra do Amolar, num momento de descanso, ela saiu para vistoriar os arredores. Quando deu por si, estava a 1,5 km da equipe, o que contraria os protocolos de segurança na região (bombeiros e brigadistas não devem se distanciar uns dos outros, sob o risco de ataque de onças). “Mal percebi que tinha me afastado demais, voltei correndo. Assim que cheguei, um colega disse: ‘Eis a nossa heroína!’ Eu retruquei: ‘Heroína?! Morri de medo das onças!’”
Já nos primeiros dias de serra, alguns bombeiros perceberam que um filhote de capivara tentava fugir das chamas. Um vídeo gravado pela equipe da tenente mostra o animal com as patas queimadas, em carne viva, enquanto um dos oficiais procurava hidratá-lo. O pequeno roedor acabou não resistindo e morreu logo depois de o grupo voltar à base. “Também vi muitos jacarés no meio do fogo. Muitos”, recorda a militar. “A possibilidade de salvar os animais é uma coisa que me move bastante.”
No próximo dia 10, a comandante deve se “desmobilizar”, ou seja, encerrar sua participação na força-tarefa e voltar a Maringá. Mãe de duas crianças – Miguel, de 5 anos, e Sara, de 2 –, ela nunca se viu tanto tempo longe da família. Evita pensar na distância para não “ficar mexida” e segura o choro ao conversar com os filhos pelo telefone. Na última sexta, recebeu um vídeo em que Sara aparece brincando com uma mangueira de água, como se fosse “a mamãe”. Miguel também lhe enviou um áudio, contando que foi ao parquinho e que falou para as outras crianças: “Minha mamãe é bombeira e está na floresta, salvando os bichos.” A tenente não esconde o orgulho. “A educação ambiental precisa começar cada vez mais cedo. Fico feliz que os meus filhos já estejam compreendendo a importância dela.”