Em depoimento a Plínio Lopes
Estou com 21 anos e sou portadora de fibrose cística, uma doença genética rara, crônica e progressiva, que afeta as células produtoras de secreções. Esses fluidos se tornam muito espessos e começam a aderir indevidamente a diversos órgãos, sobretudo os dos sistemas digestivo e respiratório, o que compromete o funcionamento deles. Fui diagnosticada aos dois meses de idade e atualmente, como tenho apenas 28% da minha capacidade pulmonar, me encontro na fila para um transplante de pulmão em Curitiba, onde nasci e moro.
Desde bebê, preciso me cuidar bastante. Vou a médicos e faço exames com regularidade. Por sorte, fui internada pela primeira vez só aos 18 anos, algo incomum em pacientes de fibrose cística. Geralmente, as internações se iniciam já na infância. Quando pequena, vivia me perguntando: por que preciso de tantos remédios, e as outras crianças, não? A doença, porém, ainda não me incomodava muito. Como tive diagnóstico precoce, sempre me vi diante dos limites impostos pela enfermidade, mas nunca deixei ela ser o limite do que eu posso ser.
A coisa complicou na adolescência. Rebelde, comecei a entrar em uma fase de não aceitação e vergonha da doença. Passei a não querer que os médicos tocassem em mim, a evitar as sessões de fisioterapia e a pular os remédios. Isso me fez mal fisicamente e psicologicamente. Aos 16, entrei na faculdade de medicina veterinária em Rio Verde (GO). Estudar em período integral consumiu totalmente a minha saúde e me levou à primeira internação.
Permaneci intubada por nove dias devido ao excesso de secreção nos pulmões. Os médicos que me atenderam no interior de Goiás desconheciam a fibrose cística e recorreram a um tratamento muito arriscado. São mínimas as chances de um portador da doença sobreviver à intubação. O mais recomendável é evitar o procedimento.
Eu tinha 70% de capacidade pulmonar quando me internei. Em decorrência da intubação, saí do hospital com apenas 30% dessa capacidade. Desde então, minha vida gira completamente em torno da fibrose cística. Sem contar com o fôlego de antes, precisei interromper a faculdade, voltar para Curitiba e reaprender a andar. Fico ligada 24 horas por dia a um cilindro de oxigênio e faço reabilitação cardiorrespiratória cinco vezes por semana.
No final de 2019, surgiu a notícia de um novo medicamento contra a doença, o Trikafta, fabricado pela farmacêutica norte-americana Vertex. As agências reguladoras dos Estados Unidos e da Europa o aprovaram, e os testes clínicos mostraram que o remédio pode melhorar o fluxo respiratório de pacientes com baixa capacidade pulmonar. Claro que a notícia me trouxe esperança. É uma luz no fim do túnel, né? Sempre que chego aos consultórios, pergunto para os médicos quando poderei retomar a faculdade e sair mais de casa. Eles são evasivos e me pedem para esperar. Por quanto tempo? Ninguém nunca me respondeu. O novo medicamento talvez acelere o processo. O transplante de pulmão também vai ajudar, mas não dá para saber quando conseguirei fazê-lo – se daqui a um ou dez anos.
O grande problema é que o Trikafta custa cerca de 30 mil dólares por mês e ainda aguarda aprovação da Anvisa para ser comercializado no Brasil. Uma farmacêutica da Argentina, a Gador, lançou um genérico chamado Trixacar, cuja dose mensal sai por 3 mil dólares. O valor segue proibitivo, mas o remédio é minha última chance. Se não conseguir tomá-lo, não sei se continuarei por aqui. Minha família está longe de ser rica. Mesmo assim, apostou tudo no Trixacar. Conversamos com um advogado, que entrou na Justiça para ver se o Estado paga o medicamento. Enquanto a gente espera a decisão judicial, juntamos as economias da família inteira e compramos duas caixas do remédio em Buenos Aires. Terminei de consumir uma em janeiro. Cada caixa dura trinta dias. Tenho mais um mês pela frente. Depois… Preciso de uns 165 mil reais para adquirir as caixas que me farão sobreviver até o fim de 2022.
Na primeira semana de medicação, tossi sem parar durante quatro dias até eliminar toda a secreção dos pulmões. Agora não tusso mais e consigo rir de novo. Parece a coisa mais besta, mas posso finalmente dar risada. Eu não podia antes, porque o riso desencadeava crises de tosse e falta de ar. Também voltei a fazer exercícios, o que é uma maravilha. Meus exames de sangue vieram normais. Eu estava anêmica, mas minha taxa de ferro subiu. Não bastasse, os exames de imagem indicam que meus pulmões ficaram muito mais limpos. Nem parece verdade.
Em agosto de 2021, passei mal e quase morri. Cheguei a me despedir da família. Realmente pensei que não iria superar aquilo. Precisava de ajuda até para tomar banho. Hoje não preciso mais. Eu tinha dificuldade para pegar um copo d’água. Hoje já consigo arrumar o meu quarto. Estou conquistando minha independência aos 21 anos. É estranho… Vejo meus colegas se formando ou montando casa. Algumas amigas viajam quase todo mês, vão para a Disney. Enquanto isso, faço festa simplesmente porque andei no shopping. Não imaginei que passearia de novo pelo shopping, nem mesmo depois do transplante.
Agora tento juntar dinheiro para comprar mais remédio na Argentina. Meus pais buscaram as duas primeiras caixas lá. Da próxima vez, quero ir. Nunca viajei de avião com o tubo de oxigênio a tiracolo. A pressurização da cabine pode prejudicar quem já não tem boa parte da capacidade pulmonar. Por isso, me sinto muito nervosa e ansiosa com a viagem. Procuro fortalecer meu corpo para aguentar o voo.
Infelizmente, perdi inúmeros amigos na fila do transplante. Eles poderiam estar aqui se o novo medicamento não custasse tão caro ou se já estivesse acessível no Brasil. É revoltante saber que nossas vidas têm literalmente um preço. A sobrevivência de ninguém deveria depender de grana… Não quero o remédio só para mim. De que adianta eu sobreviver se meus amigos não conseguirem? Então, meu foco está em me salvar e também em salvar os outros pacientes, principalmente ajudando eles a terem acesso aos tratamentos.