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Missão 115 – atentado e omissões

Filme relega a segundo plano o fracassado ataque a bomba no Riocentro – que seria seu tema central

Eduardo Escorel | 30 ago 2018_18h30
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Passados 37 anos desde o fracassado ataque a bomba ao Riocentro, seria razoável esperar de um filme sobre o assunto que, baseando-se em fontes confiáveis, procurasse revelar novas informações a respeito, identificasse nominalmente executores e mandantes, comentasse a conjuntura política da época, assim como as reações à tentativa frustrada de explodir as bombas no Centro de Convenções durante o show comemorativo do Dia do Trabalhador, na noite de 30 de abril de 1981. Missão 115, de Silvio Da-Rin, procura atender mas frustra em parte essas expectativas.

O título, aliás, revela-se dúbio logo na sequência inicial. Fica claro no prólogo que o filme, na verdade, não é especificamente sobre o atentado. Sua ambição é maior. Missão 115 pretende tratar também da chamada Lei de Anistia, da suposta inexistência de documentos dos órgãos de segurança e do resultado da Comissão Nacional da Verdade. Nessa tentativa, em princípio meritória, de ser abrangente, inclui até considerações sobre o impeachment de Dilma Rousseff que levaram pessoas da plateia a protestar na sessão do último domingo, às 17h40, no Rio, quando o historiador Carlos Fico afirma que não houve golpe, referindo-se à destituição da ex-presidente. Além de gritos “Foi golpe! Foi golpe!”, houve aplausos quando o deputado Wadih Damous declara que foi golpe. Sem falar do solitário espectador que berrou “Lula livre!”.

Não se espera de nenhum diretor que controle a reação da plateia, mas não há dúvida de que Missão 115, da forma como é construído e narrado, induz reações como essas e acaba relegando seu suposto tema central – o fracassado atentado terrorista cometido por setores do Exército e dos órgão de segurança da ditadura – a segundo plano.

Outro fator prejudicial a Missão 115 surge também no prólogo. Cedendo ao modismo que já vai se tornando clichê, o próprio Da-Rin, diretor do filme, está diante da câmera, de camisa vermelha, desenhando uma planta baixa e descrevendo “a sala de tortura e uma área de tomar depoimentos” de um quartel do Exército, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, durante diligência da Comissão Nacional da Verdade. No local, os militantes Chael Charles Schreier, da organização VAR-Palmares, e Severino Viana Colou, da COLINA, foram presos e torturados, em novembro de 1969. Ambos morreram em consequência das sevícias a que foram submetidos e no caso de Schreier, seu corpo foi entregue à família em um caixão lacrado.

Não há a menor dúvida quanto à gravidade desses fatos. Mas o espectador não deixará de se perguntar o que Da-Rin está fazendo ali, em cena, junto como os integrantes da comitiva. Ele por acaso integra a Comissão Nacional da Verdade? Sabemos não ser o caso, mas o filme não esclarece. Essa e as demais aparições de Da-Rin resultam constrangedoras. Inclusive a cena em que ele, balançando a cabeça em sinal de aprovação, assiste ao discurso da então presidente Dilma Rousseff recebendo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, e a que encerra Missão 115, na qual ele chega de carro diante do Riocentro – simples de serem eliminadas, é difícil entender como puderam sobreviver na edição.

Ao terminarem os 2’22” do prólogo, o espectador haverá de se  perguntar quando Missão 115 vai abordar a Missão 115. De fato, não demora, pois em seguida ao crédito do título, da direção e do coprodutor, somos apresentados a Claudio Guerra no Quartel do Presídio da Polícia Militar de Maruípe, em Vitória, no Espírito Santo. Guerra, atualmente pastor evangélico, é ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo.

No seu primeiro depoimento para a câmera de Da-Rin, Guerra afirma ter integrado o grupo secreto responsável pela tentativa de atentado no Riocentro. Sentado diante de um fundo preto, assim como os demais depoentes do filme, ele declara que “achava estar fazendo o correto, que estava combatendo o comunismo. Inicialmente, como executor de operações, tirando vidas de pessoas, depois ocultando cadáveres e, posteriormente, também [como] estrategista, preparando alguns atentados”.

Seria de esperar, nesse instante, alguma reação ou comentário de Da-Rin, mesmo que em off, ainda mais por ele ter aparecido minutos antes no filme. Mas não – não há o menor sinal de que as palavras de Guerra tenham causado alguma impressão mais forte no diretor. O filme segue adiante, indiferente, passando imediatamente após a palavra “atentados” para uma sequência feita com imagens de arquivo, sobre os atentados a bomba, realizados em 1981, no Rio, a bancas de jornal, à sede da OAB e à Tribuna da Imprensa. Em seguida, Hélio Fernandes descreve as medidas tomadas para continuar a imprimir o jornal, seguido de outro depoimento, esse de Antonio do Passo Cabral, Procurador da República e professor da Uerj.

Transcorridos apenas 6’10” de Missão 115, outra questão perturbadora se manifesta. Tratamento visual idêntico é dado ao terrorista e assassino confesso, ao jornalista e ao Procurador da República – os três apresentados com a mesma iluminação, contra um fundo preto, em pé de igualdade. Não havendo qualquer equivalência moral, ética ou de credibilidade entre eles, o filme peca em não diferenciá-los de alguma forma.

Missão 115 é, basicamente, um enorme conjunto de depoimentos, alguns irrelevantes, outros fracionados e distribuídos ao longo de todo o filme. Em certos casos, são o que Da-Rin tem a oferecer de melhor, embora nem sempre contenham novidades e, usados em excesso, seu conteúdo torna-se difícil de apreender. Foi preciso assistir a Missão 115 pela segunda vez, detidamente, no computador, para conseguir valorizar devidamente muitas considerações feitas.

Em sua segunda intervenção, aos 11’35”, Guerra chega a dizer que “tinha prestígio e recebia bem na época – o suficiente para comprar um carro todo mês, se quisesse”. E ainda havia os prêmios, alguns dos quais ele diz ter recebido. Mas, continua, “quem recebeu mais prêmios foi o pessoal de São Paulo, por que no início eles operaram mais, conseguiram matar alguns líderes. […] os prêmios vinham da Fiesp, que arrecadava, dos banqueiros, tipo o Gastão que era o dono do Banco Mercantil do Estado de São Paulo e foi o primeiro que arrecadou para montar a Operação Bandeirantes lá em São Paulo”.

Mais uma vez, Missão 115 acolhe a desfaçatez de Guerra com indiferença e neutralidade, sem levar em conta a gravidade do que ele declara, nem fazer qualquer consideração a respeito. Peca, dessa maneira, por omissão.

Igualmente falha é a declaração do historiador Carlos Fico, que o filme parece incorporar, na qual ele procura diferenciar “atos de terrorismo de direita” da comunidade de segurança e dos “elementos dos porões da ditadura”, de um lado, e de outro “a violência armada praticada pela esquerda”. Para Fico, o que as distingue seria o fato dessa última ser “baseada em uma opção doutrinária, ideológica”, ao contrário das ações da direita. Nesses termos, a esquerda é eximida de responsabilidade por seus atos, mesmo com a intervenção mais equilibrada do deputado Wadih Damous, segundo o qual, “fica para quem julga hoje o critério de concluir se foi uma opção correta ou se foi politicamente incorreta. Agora, terrorismo é que não foi. Terrorismo, quem praticou foram os elementos dos porões da ditadura”.

Outro modismo, também semeado periodicamente, em doses breves, no decurso de Missão 115, é a encenação, a partir de 7’23”, do preparo de artefatos explosivos. A atmosfera e trilha musical são típicas de filme de mistério, com direito a cúpula de luz usada em interrogatórios e ventilador em primeiro plano. Na primeira dessas sequências, vemos um homem de costas que tira o paletó, põe uma pistola sobre a mesa, senta e acende o cigarro – o isqueiro metálico é um Zippo, naturalmente. Entende-se que a passagem direta para a posse do presidente João Batista Figueiredo fosse irresistível, mas não deixa de ser, mais uma vez, óbvia. Recorrer a encenações em documentários lidando com eventos do passado é um recurso legítimo, sempre tentador. No caso de Missão 115, porém, elas não parecem acrescentar nada à significação do filme.

O Serviço Nacional de Informações (SNI) é claramente indicado em Missão 115 como responsável pelos atos de terrorismo praticados na época, inclusive a trapalhada no Riocentro, o que não passa, porém, de chover no molhado. Da mesma forma, nomear os generais Sílvio Frota e Newton Cruz é indicar os suspeitos de sempre. Hélio Fernandes menciona de forma genérica “origens muito mais altas e ostensivas”.

Guerra indica de onde saíram os integrantes da missão encarregada do atentado no Riocentro – o grupo militar, do quartel do Exército na Barão de Mesquita; o da Polícia Civil, do escritório do SNI, na avenida Presidente Vargas. Afirma que “o Riocentro foi planejado e executado pelo coronel Perdigão [Freddie Perdigão Pereira, integrante do Centro de Informações do Exército e do SNI]. Ele fez todo o planejamento, com o conhecimento, diga-se de passagem, do comandante do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna], de conhecimento da Presidência da República, tinha conhecimento o SNI nacional”. Ao dizer, porém, que “foi muito bem planejado”, não há como deixar de colocar em questão, ao menos em parte, suas afirmações.

Cabe ao jornalista Chico Otávio atribuir responsabilidade direta pela Missão 115 ao coronel Julio Molinas, “que tinha sido assassinado em um suposto assalto na periferia de Porto Alegre. Quando a polícia gaúcha apreendeu documentos na casa de Molinas, arrecadou ali alguns documentos que são históricos. Ele era, na época [do atentado do Riocentro], o chefe do DOI aqui no Rio, ele era o comandante, o número 1 do DOI. Em um dos documentos manuscritos apreendidos, ele orienta os seus subordinados a como agir no sentido de fraudar a verdadeira história que estava por trás do atentado. Esse documento é a prova cabal do envolvimento direto do comandante daquela ação. É óbvio que era, no mínimo, de conhecimento da cadeia de comando”.

O documento que Otávio menciona é exibido durante seu depoimento. A existência de prova documental é um ponto alto de Missão 115, apesar de mais uma vez ser mal aproveitado, dada a dificuldade para o espectador de ler o que está escrito. Apenas fragmentos, em parte escritos a mão, são compreensíveis: “Prazo Urgente”, “Equipe: Ribeiro – Jorge”, “cobertura do evento”, “Rio Centro 21 horas”, “Data 30 de abril 81”, “Missão nº 115”. Dada a maneira como é mostrado, de passagem e por muito pouco tempo, o espectador de Missão 115 terá dificuldade em corroborar conclusões baseadas no que consegue apenas entrever do documento.

Além de chegar às telas 37 anos após os eventos de que trata, conforme já assinalado no início deste post, Missão 115 apresenta outra lacuna: a falta de conexão explícita entre o terrorismo de Estado da ditadura e as ideias de um dos atuais candidatos a presidente da República. Essa defasagem é da natureza do processo demorado de feitura de todo filme. Nesse aspecto, demonstra como um documentário pode se tornar obsoleto. Não cabe, porém,  responsabilizar Da-Rin por isso.

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Após a publicação deste texto, o diretor de Missão 115, Silvio Da-Rin, escreveu uma resposta a Eduardo Escorel, com considerações sobre o filme. A íntegra pode ser lida aqui.

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