IX – Crise
Depois de dois meses de idas e vindas, a 4 de julho Sucksdorff tem um rompante de sinceridade, no estreito limite da circunspecção sueca. Em nova carta manuscrita, revela a Henny de Jong a gravidade da situação financeira em que se encontra, resultante do “desastre econômico” ocorrido com o filme , lançado no ano anterior – seu segundo fracasso depois de A grande aventura.
Em 1957, Sucksdorff fizera A flauta e a flecha, filmado numa vila dos Murias, povo que habita as florestas da Índia central. Uma saga na selva, tradução literal do título em sueco exprime de forma precisa o que a experiência de fazer esse filme representou para Sucksdorff.
Como de hábito, escreveu o roteiro, produziu, dirigiu e fotografou A flauta e a flecha, pela primeira vez em cores. A música ficou a cargo de Ravi Shankar. E o tema, recorrente desde seus primeiros curta-metragens, é o mesmo – o confronto entre um menino e um tigre que ameaça o modo de vida alegre e trabalhador dos membros da tribo.
Além do “desastre econômico” que provocou, A flauta e a flecha ganhou fama negativa que tornou difícil ver o filme, até mesmo para admiradores de Sucksdorff interessados na Índia.
Embora propenso a gostar e descobrir que a má reputação era imerecida, Robert Steele, professor da universidade de Boston, só conseguiu asssistir a A flauta e a flecha depois de quatro anos. (The Journal of the Society of Cinematologists, vol. 1, 1961. pp. 40-54).
Mesmo reconhecendo que a fotografia é linda, Steele não encontra o que admirar no filme, a não ser que é ambicioso, resultando de um trabalho gigantesco, da habilidade e das adversidades enfrentadas por Sucksdorff.
“[Os Murias] o puseram numa série de situações”, escreve Steele, “que resultaram em um tratamento desacreditado e falso. […] O filme não se sustenta como narrativa que faça sentido e seja emocionante, sobre a sobrevivência graças à eliminação de animais ferozes. Em vez disso, a beleza idílica e elegante do filme só nos faz lamentar que esses magníficos animais […] tenham sido mortos para o filme. Essas mortes impedem nosso prazer diante da beleza dos animais, dos pássaros e de um filhote de leopardo alimentado como um animal de estimação.”
Steele transcreve o texto de Sucksdorff distribuído para o público quando o filme foi exibido em New York, em outubro de 1960. Nessas anotações, depois de descrever a origem e isolamento dos Murias, Sucksdorff diz que eles “parecem ter se concentrado em resolver o que talvez seja o mais candente dos problemas humanos: como os seres humanos podem viver juntos e serem felizes.”
Esse raro texto escrito por Sucksdorff permite ter uma ideia da sua concepção do mundo, no início da década de 1960, pouco antes de vir ao Brasil. Visão idealista reconhecível na sua obra desde os primeiros filmes, na década de 1940, e à qual sempre permaneceria fiel.
Sucksdorff pergunta se “não há nenhuma possibilidade de combinar os aspectos mais positivos da cultura extremamente humanista dos Murias com o que a civilização tem a oferecer de melhor […]. Esse povo parece estar a um passo de alguma coisa que poderia ser uma civilização, alguma coisa que esteja realmente viva e plena de felicidade e compreensão humana.”
“Há duas coisas que acompanham um homem Muria por toda a vida: arco e flechas, e a flauta de bambú com fitas de conchas brancas de cauris”, escreve Sucksdorff. “São dois símbolos da luta por comida – um representa o tigre e o leopardo que matarão pessoas e animais domésticos. A flauta representa ternura, amor, jogos infantis e plantações de arroz. E o filme é sobre isso.”
Sucksdorff conclui as anotações afirmando: “Minha grande esperança é que quando o filme termine, esses Murias não pareçam mais estrangeiros exóticos para você [espectador], mas seus amigos – seres humanos seus companheiros.”
Steele não encontra no filme o que seria, segundo o texto de Sucksdorff, “o mais candente dos problemas humanos: como os seres humanos podem viver juntos felizes.”
O personagem principal, segundo Steele, não é “tratado com bondade ou reconhecimento especiais, sendo, pelo contrário, expulso da vila” e não se entende por que essa vila “deveria ser considerada uma ‘comunidade ideal’ pelos Murias”.
“Ele [Sucksdorff] nos deu um retrato romântico de um povo exatamente como viviam há mil anos, e não há nenhuma indicação no filme de que viverão de maneira diferente daqui a mil anos. Esta apresentação dos Murias é falsa. A aculturação está ocorrendo a passos largos hoje, à medida que povos tribais entram em contato com o hinduísmo, a independência da Índia, e os projetos de desenvolvimento em consequência dos planos quinquenais.”
E Steele prossegue: “[…] vendo os Murias no filme, não somos convencidos que eles têm uma riqueza da qual a Índia ou quem quer que seja possa se beneficiar. Isso é lamentável, por que muitos povos tribais da Índia, inclusive os Murias, têm de fato valores como honestidade, não-violência, e um código moral elevado que são muito estimados por antropólogos e etnólogos. […] Pelo que o filme mostra, não seria possível perceber muita diferença entre as estruturas sociais dos Murias e o povo da Suécia ou dos Estados Unidos.”
Contradizendo a intenção de Sucksdorff, “as imagens que vemos”, escreve Steele, “são [grifo de Steele] exóticas e as pessoas são estranhas.[…] Ele [Sucksdorff] maquiou o assunto, ou o estuprou? Ele limpou as pessoas e o ambiente. Ele ou comprou roupa nova para todos ou conseguiu que as roupas deles fossem lavadas, de maneira que vemos lindos brancos em vez da cor de lama que domina vilas e tribos da Índia. Se tivessem sido eliminadas as peles de leopardo surpreendentemente lindas como fundo dos créditos, enquadramentos tomados apenas por penas ou flores cuidadosamente arrumadas, intrincadas tatuagens etc., nos teria ajudado a olhar para essas pessoas como seres humanos em vez de criaturas exóticas que rivalizam com flora e fauna no seu esplendor.”
“O menino, o filhote de estimação descoberto de maneira inverossímil em uma armadilha de peixes, e o espírito da floresta se tornaram o repertório [de Sucksdorff], de maneira que ele pode fazer filmes parecidos onde quer que esteja.”
“Esse filme não me permite admirar o trabalho de Sucksdorff tanto quanto admirava”, escreve Steele. “Suponho que o filme seja constrangedor para ele e minha esperança é que aprenderá com seus erros e fará algum dia um filme sobre os Murias. Tento não pensar o que Jean Rouch ou Zavattini teriam feito com esse assunto, […] mas proponho que Sucksdorff, para que possa fazer um bom filme na Índia, inclua esses homens entre seus mentores.”
Jean Rouch, descartado pela Unesco e pelo Itamaraty, é situado por Steele em categoria superior à de Sucksdorff, confirmando a impressão que a escolha de Rouch para vir ao Brasil, naquela ocasião, poderia ter sido mais profícua.
Robert Steele não foi o único, naturalmente, a massacrar A flauta e a flecha. Depois de ter escrito, em 1955, que para ser justo a classificação de obra-prima irrestrita não podia “ser negada a A grande aventura”, o mesmo Bosley Crowther, crítico do The New York Times, escreveu, em 1960, que “Sucksdorff deixa [A flauta e a flecha] se tornar teatral e inverossímil. […] Seus animais, dois leopardos e um tigre, sem mencionar cervos variados e cabras têm a aparência de animais em um zoo, e seus nativos avançando para matar o tigre e depois um leopardo […] parecem atores amadores que foram paciente e cuidadosmanete ensaiados.” (cont.)
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