(Clique aqui para ler a série "Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido" desde o início)
XV – Carnaval
Com o curso chegando ao fim, em fevereiro de 1963, Sucksdorff continuava a escrever para a Unesco reclamando da falta de dinheiro. Frequentava, além disso, pés sujos assustadores, em Copacabana, onde se regalava, no café da manhã, comendo peixe frito em pé, no balcão. Depois, para seu espanto, passava mal.
Mil dólares que gastara do próprio bolso ainda não tinham sido reembolsados, e Cr$ 2.000.000,00 (cerca de R$ 72,000.00), prometidos pelo Itamaraty, deveriam chegar apenas no final do mês “que não só é a última semana do seminário, mas também pleno carnaval, quando ninguém trabalha aqui”, escreve Sucksdorff.
“O seminário tem sido terrivelmente prejudicado e eu estou muito insatisfeito”, prossegue Sucksdorff. “A situação é um tanto desagradável e sou obrigado a ver este seminário se esvair, resultando em um fiasco idiota por total falta de dinheiro e de possibilidades administrativas. Estou recomendando com insistência a prorrogação do seminário para que possamos ao menos trabalhar um mês com dinheiro e equipamento à nossa disposição.”
O que teria pesado mais para Sucksdorff naquele momento? O desejo sincero de resgatar em 30 dias o que não fizera em cinco meses, ou a vontade de ficar no Brasil e receber mais um mês de salário, enquanto adiantava o trabalho no seu novo projeto?
“Apesar de todos os obstáculos”, ele escreve, “eu gosto muito do Brasil e vou tentar ficar aqui quando o seminário terminar para fazer um filme.”
Depois de dizer que “vai fazer um filme seu agora, junto com os melhores alunos do seminário”, em um arroubo final de autoconfiança, Sucksdorff escreve a Henny de Jong que “antes de deixar o Brasil tenho certeza que algo de valor terá sido feito como resultado da minha estadia aqui.”
A prorrogação do curso até final de março de 1963, proposta por Sucksdorff desde outubro, acabou sendo aprovada e financiada pelo governo brasileiro. Com os 22 alunos selecionados para a parte prática do curso reduzidos a menos da metade, o que restaria fazer de algum valor era um filme, como fora proposto desde o início pela Unesco, ideia à qual Sucksforff resistira por considerar os recursos disponíveis insuficientes.
Liderados por Vladimir Herzog, 7 ou 8 alunos remanescentes somaram forças e realizaram o documentário de curta-metragem Marimbás (1963, 11’, disponível em DVD da Programadora Brasil). Como único legado tangível do curso, não chega a ser um atestado de bom aproveitamento, nem demonstra qualquer talento especial.
Marimbás foi produzido, segundo informam os créditos (apenas em letras minúsculas) “pelo departamento cultural do itamaraty em colaboração com a unesco”, e “realizado pelos alunos do curso de cinematografia de arne sucksdorff”. Fizeram parte da equipe Lucila Ribeiro, Shauli Isaac e Vladimir Herzog – roteiro; Francisco Chagas da Costa – som e direção de produção; Dib Lutfi, Roberto Bakker e Luiz Carlos Saldanha – câmera; Lucila Ribeiro – continuidade e montagem. Dib Lutfi assina também a direção de fotografia que fez, segundo seu testemunho, com orientação de Sucksdorff. Vladimir Herzog é o diretor. Embora seu nome não conste dos créditos, Alberto Salvá declarou ter feito entrevistas para o filme com “pescadores, salva-vidas, banhistas, para saber como era a vida de praia”.
O documentário observa a meia distância e ouve em voz off as lamúrias dos trabalhadores que vivem da pesca na colônia do Posto 6, em Copacabana. Em retrospecto, chama atenção a qualidade técnica sofrível do som direto e o fato de não ser sincronizado com a imagem, indicando que a câmera usada não era apropriada para esse fim.
Tributário de um miserabilismo comum, na época, Marimbás (“marimbá vive da pesca, não é pescador”, informa uma legenda) procura acompanhar o cotidiano dos trabalhadores, e mostrar a precariedade em que viviam em suas canoas, esquentando sua comida em fogareiros, tomando banho na praia, e costurando as redes, enquanto a poucos metros banhistas faziam ginástica. Nos planos gerais, o cartão postal formado pela praia de Copacabana, com o Pão de Açucar ao fundo, procura realçar o contraste entre as condições de vida mostradas e a beleza da paisagem.
Um dos trabalhadores recebe maior atenção, sem chegar a ser individualizado e formar um personagem. E o arrastão final remete a Barravento, primeiro filme de Glauber Rocha, concluído em 1961, e exibido aos alunos na primeira parte do curso.
Os únicos traços reconhecíveis de Sucksdorff, em Marimbás, são os enquadramentos e a fotografia dos cartões postais. De resto, o documentário não guarda relação com seus filmes, o que deve ser atribuído à falta de afinidade dos alunos com o cinema dele, da qual o comentário de Paulo Emílio, publicado em março de 1963, é uma prova eloquente.
Fechando o ciclo iniciado um ano antes com o convite feito a François Reichenbach, pela Unesco, para vir ao Brasil, o acaso se encarregou de trazê-lo ao Rio um ano depois, quando o curso estava para terminar. Registrando a presença dos dois, Paulo Emílio capta a insatisfação existente em relação a Sucksdorff:
“Está atualmente entre nós o documentarista sueco Sucksdorff e para chegar o francês Reichenbach. O autor de La Grande Aventure se situa certamente em nível artístico mais alto que o realizador de L’Amérique Insolite. Se a juventude brasileira interessada pelas coisas do cinema anuncia sua preferência pelo segundo é porque Reichenbach impregna mais abertamente suas obras dessa quota de inteligência que se torna cada vez mais indispensável.”
Terminado o curso no final de março, cumprindo o que anunciara à Unesco, Sucksdorff filmouFábula, ainda em 1963, nos morros da Babilônia, do Pasmado, do Cantagalo, e principalmente nas areias da praia de Copacabana, com a participação de três “alunos do seminário”. Em funções de destaque, colaboraram Flávio Migliaccio, como co-roteirista, ator e diretor do elenco infantil; Dib Lutfi, como câmera, e Roberto Bakker, como diretor de produção. A tradução do título original, em sueco, seria Minha casa é Copacabana.
•
A verdadeira casa, além de morada final de Sucksdorff, porém, seria o Pantanal.
Depois da decepção por Fábula não ter sido selecionado para o Festival de Cannes de 1965, no ano seguinte Sucksdorff foi pela primeira vez a Mato Grosso preparar um filme para a televisão sueca. Voltou para filmar em 16mm, em 1967, ano no qual completou 50 anos e conheceu Maria Graça de Jesus, cuiabana formada em agronomia, com quem veio a se casar, em 1970. (as informações biográficas do período posterior ao curso provém de Luiz Carlos de Oliveira Borges, Mito do cinema em Mato Grosso – Arne Sucksdorff, volume 2, Cuiabá: Entrelinhas, 2008)
Em 1971, mais um fracasso estrondoso associado a Sucksdorff foi lançado – Grito dos pinguins (ou Sr.Forbush e os pinguins), oficialmente co-dirigido por ele, Alfred Viola e Roy Boulting, mas para o qual filmara na Antártica apenas as cenas numa colônia de pinguins.
De passagem pela Suécia, recebeu de um grupo de industriais 60 mil hectares, no norte de Mato Grosso, onde planejou instalar uma reserva ecológica – projeto frustrado quando as terras foram desapropriadas pela FUNAI para serem anexadas ao Parque Nacional do Xingu.
Vivendo isolado, em um acampamento no Pantanal, entre 1970 e 76, realizou Mundo à parte, série de 4 filmes feitos para a televisão sueca.
Em 1979, depois de denunciar tentativas de corrupção da FUNAI, sofreu um atentado à bala. E o corpo do seu caseiro, depois de assassinado, conforme relato pessoal feito anos depois, foi deixado sobre a cama de Maria e dele com uma arma entre as pernas. Segundo outra versão, que o próprio Sucksdorff contou a Luiz Carlos de Oliveira Borges, o coração do caseiro teria sido retirado e colocado sobre a cama.
Passando a viver em Cuiabá, a partir de 1980, lança no ano seguinte Pantanal – paraíso perdido, livro com suas fotografias da região.
No início da década de 1990, muito debilitado, é levado de volta à sua terra natal, graças à intervenção do governo sueco. Em 1994, vem pela última vez a Cuiabá, onde acompanha por três semanas as filmagens de um projeto baseado na história da vida dele.
Morto aos 84 anos, em 2001, as cinzas de Arne Sucksdorff foram lançadas de um balão, no Pantanal, por Maria, sua mulher.
•
Como é natural, as avaliações do curso dado por Arne Sucksdorff, no Rio, de outubro de 1962 a março de 1963, variam muito.
Embora seja inegável não ter levado “a produção de filmes documentários no Brasil a tomar novo impulso e atingir um alto nível”, nem chegado a “deixar um grupo de realizadores bem treinados”, ou despertado “vivo interesse no conjunto do país”, e muito menos dado “novo impulso ao cinema brasileiro” – se é incontestável que deixou de atender essas grandiosas expectativas da Unesco, nem por isso deve ser tomada ao pé da letra a visão de Sucksdorff quando escreveu que a missão foi um “fiasco idiota” ou “não foi muito bem sucedida”, opinião que mantinha no final de 1963, e voltou a manifestar em carta para a Unesco, em fevereiro de 1966: “meu trabalho no Rio foi cercado por muitos problemas e aborrecimentos; não só foi mal organizado, não foi organizado de todo, e faltou tudo, tudo que me tinha sido prometido, até dinheiro para levar adiante o curso de treinamento. Esse dinheiro chegou mais ou menos um mês depois que o curso tinha terminado.”
Mesmo admitindo que o curso foi, de fato, improvisado, prejudicado por atrasos, desorganizado, e carente de recursos, a avaliação de Sucksdorff não leva em conta que um grupo significativo de alunos soube aproveitar a oportunidade, cada um à sua maneira, numa época em que praticamente não existia, no Brasil, qualquer alternativa para estudar cinema. O que havia eram cursos esporádicos de curta duração e, desde 1962, uma cadeira de cinema na Universidade Católica de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
Assim, com todas as limitações que existiram, o curso de Arne Sucksdorff, patrocinado pela Unesco e pelo Itamaraty, supriu uma demanda real e contribuiu para o surgimento de novos profissionais de cinema.
Princípios elementares de linguagem puderam ser aprendidos, assim como o manuseio de câmera, gravador e mesa de montagem. A convivência de 5 a 6 meses dos poucos que participaram até o fim do curso, certamente fortaleceu neles a convicção de que fazer cinema, no Brasil, era possível. E levou alguns alunos, nos anos seguintes, a se tornarem roteiristas, fotógrafos, montadores, produtores e diretores. Não é pouco, mesmo sendo distante dos elevados ideais formulados pela Unesco.
Com a criação do curso da Universidade de Brasília, em 1965 e da Escola de Comunicação e Artes da USP, em 1967, à qual se seguiram outras opções de formação, o ensino e aprendizado de cinema, no Brasil, começou a se transformar. E passados 50 anos, a missão Sucksdorff se tornou uma lenda.
•
Além dos alunos que participaram da equipe de Marimbás, citados acima, também participaram da segunda parte do curso, de caráter prático, Antonio Carlos Fontoura, Flávio Migliaccio Luis Alberto Barreto Leite, Nelson Pompéia, Nelson Xavier e também o benjamim da turma, um adolescente de 17 anos, homônimo do autor destes posts. Dos 8 restantes, que completariam a lista dos 22 selecionados, a memória não guardou registro.
•
Graças à dedicação e persistência da editora Dominique Paris, colaboradora e amiga de longa data, foi possível vencer o ceticismo do encarregado do arquivo da Unesco, em Paris, e localizar a pasta de documentos referentes à missão Sucksdorff.
Enquanto isso, no arquivo do Itamaraty, ainda não foi localizado nenhum documento sobre o curso.
Curiosamente, embora tenha um arquivo organizado, a Unesco não dispõe de serviço de reprodução. Nem scanner, nem uma simples fotocopiadora. A solução usual, indicada pelo próprio encarregado do setor, é o próprio pesquisador reproduzir o que lhe interessa – o que Dominique fez com a paciência e o desvelo requeridos para fotografar cerca de cem documentos.
Obrigado, Dominique.
Fim
Leia também
Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 8)