Desde meados de abril, a Índia tomou a dianteira em uma corrida que ninguém quer liderar: tornou-se o novo epicentro da pandemia de Covid-19, roubando a posição que o Brasil havia ocupado por meses. Mesmo com a calamidade, o contraste entre as estratégias diplomáticas dos dois países mostra como uma política acertada pode ser o grande diferencial.
A tragédia da segunda onda de Covid na Índia foi acompanhada de um levante diplomático incrivelmente bem-sucedido por parte do país. Diante do aumento exponencial do número de infectados e do colapso hospitalar que se abateu sobre grandes cidades como Mumbai e Nova Délhi, os indianos abriram diversas frentes de pressão pela ajuda americana.
Uma delas se deu via clamores públicos de celebridades. “A situação do meu país é crítica. Vocês enviarão vacinas para a Índia com urgência?”, perguntou a atriz Priyanka Chopra no Twitter, tagueando o presidente americano Joe Biden e o secretário de Estado, Antony Blinken. Com quase 30 milhões de seguidores, Chopra é uma das maiores celebridades locais e uma das poucas atrizes indianas com inserção em Hollywood.
Sua voz fez parte do mesmo coro integrado pelo renomado escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie. Com bem menos seguidores do que Chopra — “apenas” 1 milhão —, mas gozando de um prestígio inquestionável na literatura mundial, Rushdie também tagueou Biden em um apelo pela revogação da proibição de exportação de vacinas. Tanto a atriz quanto o escritor chamaram atenção para o fato de que os Estados Unidos estão com mais doses do que o necessário para imunizar sua própria população.
A chamada pública realizada pelas celebridades é só a ponta do iceberg de uma verdadeira operação de guerra montada pelo governo e pela sociedade indiana. Em questão de dias, o país garantiu duas vitórias impressionantes: convenceu o governo americano a revogar sua proibição à exportação de insumos para a fabricação de imunizantes e a doar doses sobressalentes da vacina da AstraZeneca.
Nada disso foi fácil. A campanha indiana encontrou forte resistência na Casa Branca até o último minuto. Em conversa com jornalistas americanos no dia 22 de abril, o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, ainda dava respostas evasivas sobre a possibilidade de enviar insumos ao país.
As incertezas sobre eficácia, segurança e logística das diversas vacinas fizeram com que países como os Estados Unidos adquirissem mais doses do que o necessário. No caso americano, foram comprados imunizantes da Pfizer, Johnson & Johnson, Moderna e AstraZeneca — este último sequer aprovado pela FDA. A precaução fazia sentido em um ponto mais nebuloso da pandemia, quando não se sabia ao certo se as farmacêuticas entregariam os lotes prometidos, ou quais seriam os efeitos adversos de cada imunizante. Com a campanha de vacinação em ritmo acelerado nos Estados Unidos e estudos mais consistentes sobre as vacinas, parece razoável ceder o estoque sobressalente a outras nações. No entanto, em um país onde o “America First” de Trump ainda pesa, Biden decidiu manter a proibição de seu predecessor sobre exportação de insumos, evitando a acusação de não priorizar seus próprios cidadãos.
Mas havia outro motivo para a hesitação americana. Embora pareça claro que o país deve doar seu excedente, a questão de para quem doar é bem menos simples. Quando o famoso “lobby indiano” começou a ser orquestrado, o número de mortos por Covid no país estava na marca dos 200 mil, e os números oficiais apontavam para uma média diária de 3 mil mortos. Apesar da provável subnotificação, esse número ainda era inferior ao de outros países. Com uma população seis vezes menor, o Brasil não só estava prestes a alcançar a marca dos 400 mil óbitos como registrava dias com mais de 3 mil mortes havia mais de um mês.
Àquela altura, no entanto, o lobby indiano já estava em cena, somando esforços de políticos, intelectuais e de grandes empresários do país à influência de uma poderosa diáspora indiana nos Estados Unidos. Em ações coletivas e individuais, esses grupos se mobilizaram para pressionar deputados, senadores e o próprio governo a ajudarem a Índia.
Não é a primeira vez que a diáspora indiana mostra seu peso. Em 2008, ela já havia entrado em cena para garantir um dos maiores triunfos diplomáticos da história da Índia: fazer com que o Congresso americano reconhecesse seu status como potência nuclear mesmo sem nunca ter assinado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Esse reconhecimento tinha sido negociado em um acordo controverso entre o então presidente George Bush e o governo indiano, mas provavelmente não passaria no Congresso. O que entrou na balança foram os milhares de ligações da comunidade indiana para deputados americanos. Além da insistência, não atrapalha o fato de que a renda per capita desse grupo é quase o dobro da população geral americana.
No campo econômico, uma das iniciativas do lobby partiu dos diretores dos cinco maiores think tanks indianos. Eles publicaram uma reportagem endereçada “aos amigos nos EUA”, pedindo que o governo revogasse a proibição de exportação dos insumos. Enquanto isso, o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, se reunia com os principais empresários indianos da indústria farmacêutica para alinhar a narrativa do lobby. “O mundo precisa ajudar a Índia, assim como a Índia ajuda o mundo”, tuitou Jaishankar ao fim da reunião, em referência às mais de 60 milhões de doses exportadas pelo país até agora.
Jaishankar não mentia, mas deixava bastante coisa de fora desse quadro. A principal delas é a gestão desastrosa do governo Modi, que declarou vitória sobre o coronavírus em fevereiro deste ano. Em pouco tempo, o país liberou aglomerações em festas de casamento e comícios políticos. No começo de abril, mais de 3 milhões de peregrinos se juntaram às margens do Rio Ganges para o festival religioso de Kumbh Mela. “Pensamos que o vírus tivesse ido embora”, disse o virologista Shahid Jameel, culpando a retórica do partido de Modi. Além de ignorar medidas básicas de prevenção, o país continua tendo um Ministro da Saúde que defende remédios sem comprovação científica.
O negacionismo do governo indiano lembra bastante a retórica bolsonarista, mas não impediu o sucesso da campanha. Um dia após a reunião de Jaishankar, o New York Times trazia a seguinte manchete: “Em meio a um surto mortal na Índia, EUA são pressionados a liberar insumos.” O governo americano bem que tentou responder aos apelos só com apoio moral. “Nossos corações estão com o povo indiano em meio ao terrível surto de Covid-19”, tuitou Blinken. Na mesma linha, a vice-presidente Kamala Harris disse que iria “rezar pelo povo indiano”. Mas a imprensa local deixou claro que não estava atrás de palavras de consolo. Um editoral do Indian Express, por exemplo, acusou os Estados Unidos de deixarem um aliado estratégico na mão.
Diante dessa mobilização ímpar, ninguém ficou surpreso que poucos dias depois Biden revogasse a proibição de exportação de insumos e comunicasse sua decisão em uma breve conversa telefônica com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi. No mesmo dia, o governo americano anunciou que doaria 60 milhões de doses da AstraZeneca para outros países. Embora o anúncio não especificasse o destino dessa doação, não há dúvidas de que a Índia será o maior beneficiário. “Nossa tigela é a maior e mais funda”, disse Modi após a notícia.
O triunfo do lobby indiano fica ainda mais notável se considerarmos que Modi é quase tão malquisto quanto Bolsonaro dentro do Partido Democrata. Com tendências claramente autoritárias, o líder indiano é o grande responsável pela erosão da maior democracia do mundo e se dizia fã de Trump. Porém, quando Biden venceu, Modi optou pelo pragmatismo, e rapidamente mostrou-se disposto a estabelecer um bom relacionamento com o democrata. Já Bolsonaro foi um dos últimos líderes do mundo a reconhecer a vitória de Biden, e ainda questionou a legitimidade de seu mandato.
É inegável que a Índia tinha bastante coisa a seu favor. O poder de sua diáspora americana e o fato de ser o segundo país mais populoso do mundo e um dos maiores exportadores de vacina certamente contribuíram para sua vitória diplomática. Para completar o pacote, eles ainda são um parceiro-chave dos Estados Unidos na tentativa de conter a ascensão chinesa — e o governo americano sabe muito bem que a geopolítica do século XXI será definida na Ásia.
Mas nem tudo em diplomacia é força: às vezes o segredo é só o jeito. O Brasil também teria bastante coisa a seu favor se estivesse disposto a fazer política. No entanto, o fato é que um país com bem menos mortos conquistou em dias algo que não conseguimos em meses. O caso indiano mostra que um outro governo brasileiro poderia ter feito muito mais no âmbito externo para mitigar os efeitos da doença em nosso âmbito interno. Um presidente brasileiro moderado poderia ter se juntado a outros governos sul-americanos para negociar compras conjuntas de vacina, sentando-se na mesa com a autoridade de quem representaria um bloco de mais de 400 milhões de pessoas.
Em vez de afirmar que “a grande maioria dos imigrantes [brasileiros] não tem boas intenções nem quer fazer o bem ao povo americano”, como Bolsonaro fez em 2019, um outro presidente poderia seguir o exemplo indiano e mobilizar a diáspora brasileira como um ativo estratégico para defender os interesses nacionais.
Em vez de emitir opiniões não embasadas e acusar as eleições de outro país de serem fraudulentas, um presidente brasileiro normal teria estabelecido um diálogo fluido com o governo americano, pressionando o vizinho a ajudar na contenção do vírus dentro de seu próprio continente. Em vez disso, o governo Bolsonaro tem sistematicamente fechado canais de diálogo com lideranças que, em circunstâncias normais, estariam dispostas a facilitar o acesso do Brasil a vacinas, com grandes consequências positivas para a população brasileira.
A comparação com a Índia fica mais frustrante quando constatamos que Modi e seu governo nem sequer seriam exemplo de boa gestão da pandemia. O que o exemplo indiano nos mostra, porém, é que às vezes a diplomacia pode fazer toda a diferença.