Em dezembro, Gilberto enfrentou uma série de problemas com sua nova tornozeleira eletrônica. O aparelho da marca Zatix, fornecido e operado pela Show Tecnologia, havia chegado no dia 3, mas estava superaquecendo e ficava a maior parte do tempo sem sinal. Para piorar, a bateria exigia recarga depois de apenas quatro horas de uso. O monitorado recorreu, então, ao power bank, espécie de bateria extra que acompanha a tornozeleira. Quando conectado à tomada, entretanto, o acessório explodiu. Gilberto – que mora em Campo Largo, na região metropolitana de Curitiba, e prefere revelar somente o primeiro nome – não se machucou, apesar do susto. Em contrapartida, o superaquecimento recorrente da tornozeleira tostou a pele ao redor de seu tornozelo esquerdo.
Falhas do gênero vêm comprometendo cada vez mais o monitoramento de presos no Paraná. Em novembro de 2018, a Show venceu um pregão para fornecer tornozeleiras eletrônicas ao governo estadual. Quase dois anos depois, em agosto de 2020, assinou o contrato. Desde que ganhou a licitação, porém, a empresa tem se defrontado com reviravoltas e disputas judiciais. Num relatório anexado a um dos processos, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) afirma que a Show descumpriu três vezes o cronograma que ela mesma apresentou. Em vez de entregar 12 mil tornozeleiras até 7 de dezembro do ano passado, disponibilizou 115 – menos de 1% do que havia sido prometido.
Depois da data-limite, o Departamento Penitenciário do Paraná (Depen-PR) promoveu inúmeras videoconferências com a empresa para tentar estabelecer um novo cronograma. Realizada em 11 de dezembro, uma dessas reuniões transcorreu em clima tenso. Na ocasião, um representante da Show garantiu que a empresa já dispunha de 2 mil a 3 mil tornozeleiras testadas e preparadas para pronta-entrega. Disse também que havia outro lote prestes a ser montado. Até agora, no entanto, a Show tem apenas cerca de oitocentas tornozeleiras em funcionamento no Paraná, de acordo com a própria fornecedora.
Em razão das frequentes falhas técnicas, o delegado Renan Barbosa Lopes Ferreira, do Depen-PR, instalou um dispositivo de monitoramento em seu tornozelo, a fim de fazer um teste. O aparelho registrou duas violações, como se tivesse sido rompido, o que não aconteceu. Além disso, indicou que o delegado passou por lugares onde não esteve. Houve, ainda, demora de horas e até dias para que a localização do policial fosse atualizada pelo equipamento. A bateria também não resistiu às 24 horas de uso sem recarga, definidas em edital. O relatório do delegado sobre o teste consta dos processos judiciais.
Atualizar em tempo real a localização é determinante, sobretudo em casos de medidas protetivas decretadas pela Justiça com base na Lei Maria da Penha. O rastreamento da tornozeleira permite que as forças de segurança verifiquem se o monitorado está respeitando a área de exclusão. Ou melhor: se mantém distância da mulher que requereu a proteção. Numa reunião ocorrida em 17 de dezembro, um representante da Show explicou que, quando não são transmitidos em tempo real às forças de segurança, os dados ficam salvos e podem ser acessados posteriormente. “Para nós, não adianta muito, porque aí a mulher já pode ter morrido. Eu preciso enxergar onde [o monitorado] está para acionar a PM e pegar o cara”, contrapôs o delegado Lopes Ferreira durante o encontro.
Segundo relato apresentado na mesma reunião, o sinal apontava que uma das tornozeleiras presentes no Paraná se encontrava em Gana, na África. Representantes da Show atribuíram o deslize a “um erro na memória do equipamento” e afirmaram que esse tipo de distorção poderia ser corrigido com a atualização do software do aparelho. Outro problema destacado na reunião e apontado pela PGE nos processos é que a Show foi habilitada na licitação para entregar tornozeleiras produzidas pela Sinergye. Mas quando o contrato começou a vigorar, a fornecedora passou a entregar dispositivos da marca Zatix, que pertence ao grupo da própria Show.
O governo do Paraná sabia das falhas nas tornozeleiras desde o ano passado. No dia 9 de dezembro, o diretor-geral da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SESP), João Alfredo Zampieri, notificou a Controladoria-Geral do Estado sobre o descumprimento do contrato e pediu a abertura de um processo administrativo contra a Show. Em 6 de janeiro, o pedido foi encaminhado à Casa Civil do governo do estado – já que uma ação com essa depende de autorização do governador. Até o dia 26, no entanto, o pedido ainda não havia sido analisado. À piauí, a Casa Civil informou que o procedimento administrativo será instaurado, mas que ainda não há previsão de quando isso deve ocorrer. Caso vá adiante, o processo pode fazer com que a empresa fique temporariamente impedida de participar de licitações e proibida de fazer novos negócios com o poder público.
Para começar a operar no Paraná, a Show – que tem sede em João Pessoa (PB) – contratou quarenta funcionários e alugou nove salas num prédio comercial de Curitiba. Em cada sala, de fato, podem-se ver pilhas de caixas de tornozeleiras prontas para uso. Representante da empresa, Eduardo Leite Cruz Lacet alega que a instalação dos dispositivos depende de agendamentos feitos pelo Depen-PR. “Temos todas as condições de fornecer a quantidade de aparelhos prevista no contrato. Só que o Depen-PR vem agendando de setenta a oitenta instalações por dia. É muito pouco. Somos os maiores interessados em entregar as encomendas porque ganhamos por tornozeleira instalada.” Conforme o contrato, a Show recebe 140,45 reais por unidade em funcionamento – o menor preço ofertado no pregão.
Lacet afirma que a tornozeleira da Zatix, embora não tenha sido habilitada na licitação, é “superior” ao modelo proposto inicialmente, já que possui maior capacidade de memória e mais velocidade de processamento. “Em tecnologia, as coisas evoluem muito depressa. A gente está disponibilizando um produto melhor. O próprio edital prevê essa possibilidade.” Em relação aos apagões de localização constatados no teste feito pelo delegado do Depen-PR, o representante da Show diz que, em condições normais, o agente penitenciário responsável por checar o deslocamento dos presos perceberia a falha e acionaria a assessoria técnica da empresa. “Precisamos separar o que é um problema real do que é falta de afinidade dos agentes com o nosso sistema. Nós capacitamos 250 deles para operar os equipamentos. É natural que necessitem de um tempo até se acostumarem com o serviço”, prossegue Lacet. “Sobre a explosão do power bank, fiquei sabendo agora. Apenas uma perícia poderia explicar o que aconteceu.”
Esse é o segundo contrato para fornecimento de tornozeleiras eletrônicas firmado pela Show, que tem como carro-chefe o rastreamento veicular. A primeira experiência com monitoramento de presos ocorreu no Tocantins em 2018 e não foi bem-sucedida. O contrato acabou suspenso após uma ação do Ministério Público estadual. Segundo o órgão, a empresa descumpriu cláusulas essenciais do acordo, que previa a instalação de até 2 mil tornozeleiras. “Nós é que quisemos encerrar o contrato, porque não nos pagavam”, afirma Lancet. “Os pagamentos estavam atrasados.”
Hoje o monitoramento de presos se mantém no Paraná graças a outra empresa, a Spacecom. Por meio de liminares, o Tribunal de Justiça autorizou o governo do estado a contratá-la em caráter emergencial. A medida cautelar mais recente, concedida no último dia 13, prorrogou por três meses o acordo com a Spacecom, que cobra 148 reais por tornozeleira em operação. Dos pouco mais de 11 mil aparelhos em funcionamento no Paraná, 10,3 mil são dessa empresa. O imbróglio judicial envolve, ainda, uma decisão do Tribunal de Contas do Estado, que, em novembro de 2020, anulou a licitação de 2018 vencida pela Show, por falhas no edital. A fornecedora recorreu.
A Spacecom atua no Paraná desde quando o sistema de monitoramento eletrônico foi implantado por lá, quase sete anos atrás. Vencedora da licitação anterior, de 2014, a empresa renovou o contrato por cinco vezes, o máximo permitido. Mesmo assim, não escapou de questionamentos. Em 2019, chegou a responder a uma sindicância instaurada pelo governo paranaense, que alegou descumprimento de cláusulas do contrato. A Secretaria de Estado da Segurança Pública e o Depen-PR não informaram o resultado do processo.
Em 22 de novembro de 2019, seis dias depois de ter sido preso por posse de arma de fogo, Gabriel Juventino Barboza passou a ser monitorado por uma tornozeleira da Spacecom. Em 18 de dezembro, retornou à prisão – agora preventivamente –, sob a acusação de violar as regras do monitoramento. A defesa recorreu em 20 de março de 2020 e ele voltou às ruas, de novo com tornozeleira. A liberdade monitorada, no entanto, não durou muito: em 31 de agosto, Barboza foi preso mais uma vez, depois de a Justiça aceitar os argumentos do Ministério Público de que ele continuava violando o monitoramento reiteradamente. Desde então, o rapaz de 25 anos permanece atrás das grades.
A defesa de Barboza analisou o histórico das violações registradas pela Spacecom. Uma das faltas teria ocorrido no dia 19 de março, quando o jovem ainda estava preso e, portanto, sem tornozeleira. O advogado André Luiz Aguiar também aponta que o equipamento passou a indicar como novas algumas violações que já tinham sido reportadas. Outro problema levantado é que a residência de Barboza pode estar localizada numa “área de sombra”, onde o sinal das operadoras oscila ou aonde nem mesmo chega, o que pode gerar erros de registro.
A Spacecom afirma que não teve acesso aos dados do caso em questão, mas diz que o sistema registra corretamente cada violação e a associa apenas a uma data e uma hora. Mesmo quando as faltas ocorrem num dia e se estendem até o dia seguinte, o tempo das violações não são computados em duplicidade.
A piauí tentou ouvir a Secretaria de Estado da Segurança Pública e o Depen-PR, mas os órgãos não indicaram ninguém para entrevista. Tampouco responderam aos questionamentos enviados por e-mail. Um agente penitenciário que trabalha num dos Postos de Atendimento ao Monitorado (PAM), onde as tornozeleiras são instaladas nos presos, definiu a migração da Spacecom para a Show como “uma bagunça”. Num relatório anexado pela PGE aos processos, diversos PAMs apontam problemas técnicos na colocação das tornozeleiras e falta de assessoria por parte das operadoras. “Existe uma preocupação grande entre nós. Se chega uma ordem da Justiça para botar um número xis de tornozeleiras, podemos responder por crime de responsabilidade se não fizermos a instalação direito. Eu diria que o sistema está em risco”, afirmou o agente, sob condição de anonimato. “Queríamos ter a chance de realizar nosso trabalho sem as falhas básicas que vêm ocorrendo.”
* Reportagem atualizada às 12:48 do dia 26/01 para incluir posicionamento enviado pela Casa Civil do Paraná.