O debate público sobre a relação entre religião e política saiu das urnas em 2018 com duas afirmações: “os evangélicos elegeram o Bolsonaro” e, ainda mais genericamente, “a política foi invadida pela religião”. Foi invadida mesmo? Começou em 2018? De fato, um presidente eleito pelo voto popular com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, apesar de não ter sido o primeiro candidato presidencial a demarcar claramente o seu posicionamento religioso, não é trivial. O primeiro com um apoio tão marcante no segmento evangélico – com 70% dos votos – tampouco é algo que não chame a atenção. E um governo federal que demonstra forte influência de grupos religiosos cristãos na composição de quadros e definição de agendas também não é corriqueiro.
Qualquer análise sobre a influência da religião na política, seja de forma ampla, seja especificamente nos processos eleitorais, precisa ser mais do que uma fotografia do momento e olhar para os processos, tendências e desdobramentos dessa relação. A partir desse prisma, observamos continuidades e novidades no espectro das candidaturas com identidade religiosa, especialmente cristãs, nessas eleições.
A principal continuidade, que se aprofunda a cada ciclo eleitoral desde a redemocratização, refere-se ao papel das grandes corporações evangélicas pentecostais e sua incidência real nas eleições para os legislativos e executivos municipais. As principais são as Assembleias de Deus, com suas diferentes subdivisões e ramificações, nem sempre alinhadas politicamente, e a Universal do Reino de Deus. A evolução do número de candidaturas e de eleitos ligados à Universal salta aos olhos. Segundo levantamento da Agência Pública, foram eleitos 208 prefeitos no primeiro turno e 2.594 vereadores em todo o país – ainda sem termos os dados totalmente consolidados por parte do TSE. Praticamente o dobro de prefeitos e 60% de crescimento no número de vereadores em comparação com a eleição anterior.
Não é possível igualar essas grandes corporações evangélicas. Elas têm inúmeras diferenças, a começar pela base de fiéis, sendo a Assembleia de Deus a maior e a que mais cresce, mas são as igrejas que se mantêm, ano após ano, com a maior representação no sistema político brasileiro.
Uma nuance que vale ser observada com mais atenção depois dessas eleições, no entanto, é a estratégia eleitoral dessas igrejas via suas filiações partidárias. O antigo PRB, atual Republicanos, mais próximo à Universal, é um dos partidos que mais cresceram e mais elegeram candidatos este ano. Ao mesmo tempo o PSC – Partido Social Cristão – mais ligado às candidaturas das Assembleias de Deus é o que mais perdeu filiados que adotam título religioso nas urnas para outros partidos. Por que se pulverizaram nesse caso?
Outra continuidade diz respeito justamente a candidaturas com o título religioso no nome da urna, que crescem continuamente a cada pleito num ritmo superior ao crescimento das candidaturas totais. Um aumento de aproximadamente 20% em eleições municipais, sendo os partidos de direita aqueles que apresentaram o maior crescimento nessas eleições: 35%. Já os partidos de esquerda tiveram um aumento de 16% e os de centro uma queda de 12%. A identificação explicitamente religiosa na urna nunca foi um fator de êxito eleitoral, mas segue presente como estratégia de comunicação e mobilização de identidades e valores morais.
Um terceiro elemento de continuidade foi a reivindicação por essas candidaturas de pautas vinculadas ao chamado “bolsonarismo”. Uma identificação não com a figura do presidente, mas com pautas do seu governo e defendidas por suas bases. Bolsonaro não foi um cabo eleitoral eficiente, mas as pautas conservadoras que o elegeram continuaram fortes.
Já havíamos apontado nas eleições de 2018 que as pautas na imensa maioria das candidaturas evangélicas e de eleitos desse segmento foram as mesmas das candidaturas não religiosas de espectro conservador: defesa da moral, defesa da família, pelo controle e pela ordem no campo da segurança pública, permeadas por um forte posicionamento antiesquerda. Em 2020, as candidaturas com identidade religiosa identificadas seguiram com perfil majoritariamente conservador reproduzindo variações dessas pautas. Os principais slogans de campanha de uma candidata à Câmara de Belo Horizonte são uma síntese disso: “muito cristã e conservadora, contra o aborto, contra a erotização infantil, defensora da família, a favor do livre mercado.” Nessas campanhas, vimos mais Damares e menos Bolsonaro. Eram mais comuns vídeos de apoio ou fotografias ao lado da ministra, uma personagem que se tornou uma espécie de símbolo dessas pautas.
As candidaturas com identidade cristã vêm se consolidando mais em torno de pautas morais conservadoras do que propriamente a referências mais diretas à Bíblia ou a símbolos religiosos numa tentativa de mobilizar mais pessoas. Fala-se de religião sem necessariamente precisar falar diretamente sobre religião.
Já um elemento que não é novo, mas se aprofunda, é a articulação de políticos-religiosos evangélicos e católicos conservadores. Três exemplos são emblemáticos. O primeiro é a candidatura de Bruno Covas (PSDB) em São Paulo, que conseguiu apoio das principais lideranças e igrejas evangélicas da cidade, com um político católico carismático de forte mobilização de sua identidade e pautas morais religiosas na sua atuação pública como vice – o vereador pelo MDB Ricardo Nunes. Outro exemplo é a candidatura do bispo licenciado da Universal do Reino de Deus e atual prefeito do Rio de Janeiro pelo Republicanos, Marcelo Crivella, e sua vice de chapa, Andréa Firmo, uma tenente-coronel do exército que a todo momento enfatiza ao longo da campanha sua identidade, em suas palavras, “católica e conservadora”. E também a candidatura à prefeitura de Goiânia do senador Vanderlan Cardoso (PSD), importante liderança da Frente Parlamentar Evangélica e membro da Assembleia de Deus, que teve a campanha coordenada pelo presidente da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana, deputado Franscisco Jr.
Essa aproximação entre lideranças políticas conservadoras católicas e evangélicas não é nova. Ganha mais visibilidade a partir de 2010 com as reações no Congresso Nacional ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e suas propostas de avanço no reconhecimento de direitos das mulheres e diversidade sexual. Mas a articulação em diferentes campanhas eleitorais, de forma explícita, chama a atenção como um ponto que poderá seguir impactando a política. Se são alianças pragmáticas e conjunturais ou simbolizam uma mais robusta aliança cristã-conservadora, ainda não podemos responder.
O elemento novo dessas eleições são as candidaturas progressistas nesse universo analisado. Uma espécie de aposta e reação a partir da organização de movimentos que lançam candidaturas, especialmente evangélicas, autodenominadas progressistas. Movimentos como a Bancada Evangélica Popular e Cristãos contra o Fascismo lançaram candidaturas. Também identificamos um crescimento de outras não necessariamente ligadas a esses movimentos em partidos do espectro político da centro-esquerda. Nesses casos, foram candidaturas ao Legislativo, e poucas ao Executivo, que mobilizaram a identidade religiosa sem necessariamente mobilizar as pautas morais e religiosas. O foco das campanhas estava em pautas municipais, de justiça social e garantia de direitos humanos de forma ampla e universal.
É fundamental seguir olhando para tais fluxos, nuances e movimentos.