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    Presidente Jair Bolsonaro em culto realizado em Manaus no dia 26 de novembro de 2019 CREDITO: Carolina Antunes/PR

questões de religião

Moral religiosa é mais forte no Brasil do que em países com renda parecida 

Diretor de escola de Oxford analisa pesquisa global do Pew Research sobre moralidade e fé e explica por que a cultura brasileira faz do país um ponto fora da curva na questão

Timothy Power | 29 jul 2020_13h56
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É preciso ser religioso para ter moralidade? Segundo estudo conduzido pelo Pew Reseach Center em 34 países, para 45% dos 38.426 entrevistados é preciso acreditar em Deus para ter bons valores. Mas essa opinião varia enormemente, de 9% na Suécia a 96% nas Filipinas. A pedido da piauí, o brasilianista Timothy Power, diretor da Escola de Estudos Globais da Universidade de Oxford, analisou os resultados. Ele explica, no texto a seguir, como os brasileiros se encaixam na régua moral e religiosa do mundo, quais as implicações políticas desse posicionamento e analisa os motivos de o país estar onde está.

Nas pesquisas internacionais sobre valores e cultura, existem vários indicadores de religiosidade, todos fortemente correlacionados: crença em Deus, participação em igrejas e cultos, prática da oração, importância da religião e de Deus na vida das pessoas, até crenças muito específicas com relação à vida após a morte, ao céu e ao inferno etc. A nova pesquisa do Pew Research Center é bem desenhada porque não depende exclusivamente de nenhum desses indicadores, mas apresenta uma variedade de resultados, assim possibilitando a identificação de tendências mais gerais. [A pesquisa está disponível aqui.] 

Se existe uma falha na pesquisa, o Pew peca pelo viés monoteísta: no questionário assume-se que existe um só Deus com “D” maiúsculo, coisa que não faz tanto sentido em sociedades de tradição hinduísta (15% da população mundial) ou budista (7%).

Sobre religiosidade em perspectiva comparada, sabemos duas coisas. Primeiro, que teorias antigas de modernização socioeconômica, mesmo criticadas pela sua simplicidade e aparente determinismo, ainda explicam grande parte da realidade. Quanto mais rica é a sociedade, menos importante é a religião (lembrando que se trata de uma associação estatística, e não de uma “lei de ferro”). Isso se observa na linha de regressão do Pew: nas sociedades mais desenvolvidas, as pessoas têm menos probabilidade de afirmarem que a crença em Deus é necessária para se ter moralidade e bons valores. Esse resultado é congruente com décadas de pesquisas sobre valores realizadas pelo cientista político americano Ronald Inglehart e seus colaboradores (por exemplo, Inglehart com Pippa Norris, Sacred and Secular: Religion and Politics Worldwide, 2ª edição revisada, Cambridge University Press, 2011). Nas sociedades desenvolvidas e “pós-materialistas” (termo cunhado por Inglehart nos anos 1970), os cidadãos hoje gozam de elevados graus de segurança física e econômica e dependem menos de Deus. Nas sociedades mais pobres e conflituosas, a tradição religiosa é bem mais enraizada, e a prática religiosa continua fundamental à vida cotidiana das pessoas. Daí o ditado antigo que vem da Primeira Guerra Mundial: “There are no atheists in foxholes” (não há ateus em trincheiras).

 

A segunda coisa que sabemos é que existem certos pontos fora da curva onde a religiosidade não é muito bem explicada pelo nível de modernização socioeconômica. Olhando para a localização de cada país no gráfico (linha de regressão) do Pew, sua distância da linha representa o efeito da “cultura”.

Em termos estatísticos, a cultura seria o resíduo (o desvio com relação à linha de tendência). Historicamente, o ponto fora da curva mais famoso tem sido os Estados Unidos — sociedade fundada por refugiados religiosos —, onde o papel da religião é bem mais importante do que “deveria ser” segundo as teorias do pós-materialismo. Nas pesquisas sobre valores, os Estados Unidos sempre figuraram, junto com Irlanda, Polônia, e África do Sul, entre as sociedades mais religiosas do mundo. Mesmo assim, alguns pontos fora da curva não resistem e chegam cada vez mais perto da linha de regressão, inclusive em países com religião dominante de altíssima institucionalização e capilaridade, como é o caso do catolicismo na Irlanda e na Polônia. O colapso da Igreja Católica Irlandesa nas últimas duas décadas tem sido estarrecedor — o que nos lembra que fatores institucionais e organizacionais às vezes explicam o comportamento do mercado religioso, assim como também explicam o comportamento do mercado econômico.

Explicar exclusivamente os pontos fora da curva não é possível numa pesquisa como essa do Pew, que apresenta tendências e associações globais. Para cada outlier, seria preciso construir uma explicação única e específica (ou até idiossincrática), reunindo os insights de historiadores, sociólogos, antropólogos e cientistas políticos. Essa explicação reuniria fatores históricos, culturais e institucionais, levando em consideração as trajetórias nacionais da religiosidade e os vários impulsos, exitosos ou não, ao secularismo.

 

O Brasil, obviamente, é um país onde o ateísmo é fraquíssimo, e onde quase a totalidade dos cidadãos relata alguma identificação espiritual. O que é mais interessante do Brasil é sua enorme inércia cultural com relação à crença em Deus e à religiosidade, que tem resistido não somente à modernização socioeconômica, como também à substituição da filiação católica pela identificação neopentecostal [98% dizem que Deus tem um papel importante em suas vidas]. Ou seja, a arquitetura institucional da religião mudou muito no Brasil (e continua mudando), mas o brasileiro ainda impõe a crença em Deus como pré-requisito da moralidade. [Na pesquisa da Pew Research, 84% dos brasileiros disseram que é necessário acreditar em Deus para ter moralidade e bons valores, contra 55% de argentinos e mexicanos, por exemplo. Nesse aspecto, o Brasil está mais perto da Tunísia e da África do Sul. Porém, entre os jovens brasileiros com menos de 30 anos, essa crença é 29 pontos menor do que entre os brasileiros com mais de 50 anos: 70% a 89%. A diferença se repete entre os brasileiros mais escolarizados (77%) e os menos (91%), e entre os que se dizem “de esquerda” (74%) e “de direita” (92%).]

O que não pode ser explicado por fatores materialistas nem por fatores institucionais é a “cultura”. Cultura brasileira. Em outras sociedades ocidentais, especialmente na Europa, a modernização socioeconômica foi acompanhada de um amplo processo de secularização. O Brasil não apresenta o mesmo padrão, mesmo após um século de conquistas incríveis entre 1880 e 1980, quando a economia brasileira foi uma das mais dinâmicas do mundo. E, a partir dos anos 1980, a democratização política e a (relativa) estagnação econômica coincidem com novas tendências mais “participativas” na religião organizada: primeiro, o avanço do neopentecostalismo (hoje os evangélicos correspondem a um terço da população), e, segundo, uma resposta simétrica, ainda que mais frouxa e ambígua, por parte da comunidade católica, na forma da Renovação Carismática.

Não sou antropólogo, mas eu diria que, de certa forma, essas tendências participativas são consistentes com conhecidos traços “performáticos” da cultura brasileira, que sempre enfatizou cerimônia, música, movimento, contato pessoal direto e experiências coletivas. Do ponto de vista sociológico e comunicativo, a robusta sobrevivência de cultos e cerimônias participativas no Brasil mantém um elevado grau de proximidade entre líderes religiosos e fiéis, uma relação que tem se deteriorado visivelmente  em outras sociedades contemporâneas. E, no caso dos evangélicos, a presença de pastores em rádios e tevês religiosos, como também na internet, permite uma comunicação direta e constante. Como muitos pastores pregam um discurso abertamente conservador e moralista, de kulturkampf  (luta cultural) mesmo, não me surpreende que o Brasil seja um overperformer moralista da linha de regressão moral/renda.

Sobre a eleição de líderes como Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos, eu diria que algumas eleições confirmam tendências sociológicas, enquanto outras eleições parecem andar na contramão da cultura. Ambos foram eleitos em circunstâncias específicas e independentes: os mandatos presidenciais simultâneos de Bolsonaro e Trump não passam de um triste acidente histórico. Mas, sem dúvida, cada presidente tem um elemento hardcore de sua respectiva base que apresenta um entusiasmo desenfreado pelas guerras culturais.

E o problema é que as forças progressistas, ou seja, a oposição no Brasil e nos EUA, muitas vezes relutam em falar de moralidade, porque acreditam que a moralidade é o território exclusivo de líderes religiosos. A pesquisa do Pew mostra que, em muitas sociedades do mundo, isso não é verdade. Vejamos, por exemplo, a diferença entre Estados Unidos e Canadá no gráfico. São duas sociedades com uma origem cultural comum e ainda com muitas semelhanças sociológicas no século XXI, mas o canadense tem uma visão muito diferente do americano quando indagado se a crença em Deus é necessária para se ter bons valores morais. A cultura política canadense ou neozelandesa é bem mais secular que a norte-americana, mas isso não dificulta um apelo aos valores progressistas e universais nas vozes, por exemplo, dos primeiros-ministros Justin Trudeau (Canadá) e Jacinda Ardern (Nova Zelândia). Esses líderes não precisam de uma tutela religiosa para construir um discurso coerente sobre valores. Se um valor é universal – por exemplo, a igualdade social –, ele não precisa de nenhum endosso confessional para ter credibilidade.

 

Infografia: Emily Almeida

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