Apesar da reprovação de Vitória Holanda, era com um “Rainha, minha deusa” que Dandara Ketlely de Velaskes se referia à melhor amiga, que havia virado sua patroa, todas as vezes que chegava em sua casa para trabalhar como empregada doméstica. Na manhã daquele 15 de fevereiro de 2017 não foi diferente. Dandara chegou, lavou a área e tomou café com Vitória, antes da inspetora da Polícia Civil do Ceará ir para o serviço. “Se eu soubesse que essa seria minha última despedida dela, teria ficado em casa com ela vendo tevê na sala, deitadas no chão com as pernas para cima, assim como fazíamos quando criança”, lamenta Vitória.
As duas se conheceram na infância, quando as famílias foram contempladas com uma casa na rua 924, no Conjunto Ceará, bairro popular na região periférica de Fortaleza. Com o passar do tempo, a rua ficou popularmente conhecida como a “Rua dos Viados” — era lá que Dandara e as demais amigas LGBTQIA+, já adultas, respondiam com deboche aos insultos vindos dos ônibus que passavam pelo local. Dandara se via como gay desde a adolescência, mas só a pessoas próximas falava de sua orientação sexual. Ainda com aparência masculina, começou a fazer programa, primeiro num ponto em um posto de gasolina às margens da BR-116. Dandara Ketlely de Velaskes surgiu em 1998: passou a tomar hormônios, afinou as sobrancelhas, “bombou” os glúteos e deixou o cabelo crescer. O local dos programas, já como travesti, migrou para a Beira-Mar de Fortaleza.
Em uma das noites da baixa estação do turismo na capital cearense, Dandara resolveu dar uma passada no seu antigo ponto de prostituição, o posto na BR-116. Quatro jovens a chamaram para um programa, ela aceitou e entrou no carro. O veículo entrou numa estrada de terra e parou a alguns quilômetros da rodovia. Os homens desceram do carro e, pelos cabelos, puxaram Dandara, começando ali uma seção de tortura e violência. Dandara foi encontrada horas depois por transeuntes e levada gravemente ferida para o Hospital de Messejana, em Fortaleza.
Após um ano parada, Dandara voltou para as ruas. Conheceu uma cafetina e mudou-se para São Paulo por três vezes: 1999, 2002 e 2007. Muito doente, retornou ao Ceará e em 2008 descobriu que estava com HIV. Debilitada, deixou a prostituição e começou a fazer pequenos trabalhos pelo Conjunto Ceará. Começou a trabalhar na casa da amiga de infância Vitória, agora policial, em 2010. Em 15 de fevereiro de 2017, às 15 horas, como de costume, Dandara desceu a “Rua dos Viados” para comprar pão. Falou e brincou com todos que passaram por ela durante o percurso. Entregou o pão à mãe e em seguida retornou à rua, onde encontrou um homem e saiu de moto. Às 17 horas, quando saía da delegacia, Vitória recebeu uma ligação da mãe de Dandara avisando que a trans estava morta.
Na manhã seguinte, Dandara foi enterrada com o nome masculino que constava em seus documentos oficiais, Antônio Cleilson Ferreira Vasconcelos, no cemitério público de Pacatuba, na Grande Fortaleza. “Os mais próximos e a família só começaram a chamá-la de Dandara depois de morta. Inclusive eu, após ler, aprender e perceber que aquilo era um desrespeito à sua identidade, memória e vontade. Uma pequena parte dos que conheciam Dandara ainda a chama pelo nome de batismo. Quem só conheceu a história dela depois do transfeminicídio, só faz referência no feminino”, fala Vitória.
Nos dias seguintes, Vitória e a polícia começaram uma caçada aos onze suspeitos do crime. Em 17 de fevereiro de 2017, Vitória recebeu dois vídeos em um grupo de WhatsApp da polícia. As imagens mostravam Dandara sendo espancada, sendo três pontapés no rosto, três golpes de madeira no ombro e um na barriga, uma paulada na cabeça, além de xingamentos, chineladas na cara, tiros e um paralelepípedo afundando a cabeça para finalizar a execução. Em 4 de março, um dos vídeos viralizou e foi divulgado nas redes sociais de veículos da imprensa, de anônimos e até na página do governo do estado do Ceará, repercutindo pelo mundo todo. A vítima era identificada como “Dandara dos Santos”. “Eu não sei de onde veio esse sobrenome, ela nunca usou. Pelo fato de a vítima ser travesti, pegaram qualquer sobrenome e colocaram. Foi mais um desrespeito com a memória dela”, diz Vitória. Ao todo, doze pessoas foram denunciadas pelo transfeminicídio de Dandara — seis foram condenadas, quatro adolescentes foram levados para cumprir medida socioeducativa e há dois foragidos. A história de vida e morte da travesti está no livro O Casulo Dandara, publicado em 2019, escrito por Vitória. Dandara virou nome de rua no Bom Jardim, bairro onde foi assassinada. No cemitério, seu túmulo tem nome de homem.
Há anos histórias como a de Dandara — mulheres trans veladas com roupa de homem e enterradas com o nome masculino — se repetem pelo país. Na tarde do último dia 10, a vereadora Linda Brasil (Psol-SE), de Aracaju, recebeu num grupo de WhatsApp a foto de uma mulher trans, de paletó, gravata, com barba e cavanhaque desenhados a lápis preto, dentro de um caixão. Linda considerou ir até o velório, que acontecia na casa da mãe da trans, em um bairro de Aracaju, para não silenciar diante do episódio de violência contra a identidade de gênero, história e memória da mulher trans. Após conversa rápida com as demais componentes do grupo, desistiu.
Na tarde do dia seguinte, 11, fez um desabafo no Twitter. “Estou indignada! Acabei de saber que uma travesti faleceu e que, no velório, a família vestiu nela um paletó, gravata e fizeram barba e cavanhaque a lápis. Isso é um crime! Não é porque é da família que há legitimidade para praticar transfobia deliberadamente. #TransfobiaÉCrime”, dizia a publicação fixada na página oficial da vereadora. “No calor da indignação, acabei não detalhando (e até por respeito à vítima mesmo), mas esse caso foi sim aqui em Aracaju. Precisamos dar um basta nessa romantização de relações familiares que desrespeitam e negligenciam nossas vidas, identidades e existências. É por conta de casos assim que existem tantos crimes contra crianças, adolescentes, mulheres e pessoas LGBTQIA+ de maneira geral. Essa não é somente uma violência e desrespeito contra a própria travesti, mas sim contra todas as pessoas trans”, concluiu.
A publicação viralizou, e o assunto foi um dos mais comentados nas redes sociais daquele dia. Linda explica que a denúncia não foi para expor ou perseguir a família da travesti. “Nem citei o nome e, muito menos, coloquei a foto, porque isso só reforça os estereótipos de negação.” A vereadora conta que o “apagamento” de travestis e pessoas trans é corriqueiro no país, muitas vezes associado ao discurso de ódio propagado em púlpitos de religiões fundamentalistas. “Tentam deslegitimar nossa identidade nos chamando de demônios, como aconteceu comigo quando fui eleita vereadora. Sofri vários ataques de pastores que diziam que eu era um demônio, que eu não poderia ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de Aracaju. E essa é a visão de muitas famílias que se deixam levar por esse discurso de ódio.”
Muitos anos antes, o enterro de outra mulher trans ficou na memória de Meruoca, no interior do Ceará. Na capela da Mãe do Divino havia pelo menos cinquenta pessoas querendo ver o corpo da travesti. “Quem é? Nunca ouvi falar”, dizia um dos curiosos. No caixão, Drusa estava com o seu vestido longo azul preferido, detalhado em pedras. Usava os brincos escolhidos pelas amigas que frequentavam a Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac) e o Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), das quais também fazia parte. Por duas vezes, tentaram tirar a maquiagem dela e limpar o batom. A voz potente de Viviane Venâncio se sobrepôs. “Se não quiserem sepultá-la com o gênero com que ela se identifica, colocaremos o corpo dentro do carro e levaremos de volta para Fortaleza”, indignou-se Viviane, amiga de Drusa e companheira dela no Grab. O padre tentou apaziguar os ânimos.
Após muita conversa, a família acatou o conselho do padre e o apelo das amigas. Aceitou enterrar Drusa como mulher ali mesmo na cidade de onde fora expulsa pela família aos 16 anos. “Ela se identificava como mulher e foi por isso que saiu de Meruoca tão cedo. Por ela, teria sido sepultada em Fortaleza mesmo. Aqui ela era aceita. Foi colocado um vestido e a gente maquiou, porque era o desejo dela”, lembra Viviane. A travesti foi assassinada em 30 de abril de 2005, com sinais de estrangulamento. Seu atestado de óbito traz seu nome de batismo, masculino.
Onze anos depois, Marcela Coutinho também não teve o desejo atendido depois de morta. Quando se descobriu mulher trans, ainda na adolescência, era atacada constantemente pelos primos, que faziam questão de tratá-la no masculino. Os episódios seguidos de transfobia fizeram Marcela sair de casa e ir morar com a tia Fernanda Coutinho, que formava um casal lésbico com Letícia Paulino. Passados dois anos, Marcela avisou que iria largar Fortaleza para trabalhar como cabeleireira em São Paulo. Prometeu que voltaria logo após conseguir retificar o nome, cursar uma faculdade e, futuramente, caso conseguisse dinheiro o suficiente, fazer a cirurgia de redesignação sexual. “Ela não era feliz aqui, não tinha o respeito da família e, para a avó, a ‘Marcela’ não existia”, contou Letícia Paulino à piauí.
Não deu tempo. Em 1º de julho de 2016, um vizinho de Marcela em São Paulo comunicou à família dela, pelas redes sociais, que a cearense havia morrido devido uma infecção generalizada causada pela criptococose, popularmente conhecida como a “doença do pombo”. Imediatamente, após ler a mensagem, a avó materna sinalizou a todos que a neta seria sepultada como neto. Com medo de ver a sobrinha enterrada como indigente, Letícia arrecadou numa vaquinha os 7 mil reais necessários para trazer o corpo de Marcela para Fortaleza. Do Aeroporto Internacional de Fortaleza, o caixão seguiu direto para a igreja evangélica onde a avó congregava. A mulher trans teve o cabelo amarrado, foi vestida com roupas masculinas e enterrada como Marcelo em 8 de julho de 2016.
O professor Ray Fontenelle viu apenas o rosto de Keron Ravach durante o velório na casa da família da amiga adolescente, em Camocim, no Ceará, na madrugada de 5 de janeiro de 2020. O caixão, cheio de flores, ficou aberto por pouco tempo. Tida como “doce e sonhadora” pelos amigos, foi a transexual mais jovem a ser assassinada no país, aos 13 anos, no mês do aniversário, com socos, pontapés, pauladas, pedradas, perfuração a faca, além das vestes introduzidas no ânus. Keron foi enterrada na manhã seguinte como Cosmo de Carvalho, nome de batismo.
Casos como os de Drusa, Marcela e a mulher trans de Aracaju explicitam a negação de identidade de gênero e acarretam uma segunda morte para travestis e pessoas trans. A vereadora Linda Brasil fala do contínuo apagamento da identidade de gênero: “Existe a morte física e a morte da identidade de gênero. É como se a família estivesse matando a memória, a história daquela pessoa trans. Essa moça, por exemplo, eu conhecia há mais de dez anos, sempre na identidade feminina. Foi uma tentativa de apagamento. Era como se ela nunca tivesse existido.”
De acordo com um levantamento feito pela piauí com as prefeituras das 26 capitais brasileiras e o Distrito Federal, apenas São Paulo, Brasília e Palmas têm leis específicas sobre reconhecimento da identidade social em cerimônias de velório, sepultamento e cremação. A capital paulista foi a pioneira em garantir o nome social de travestis e pessoas trans que venham a ser sepultadas nos cemitérios públicos e particulares. O decreto nº 58.228, de 16 de maio de 2018, assegurou o uso do nome social de pessoas trans na documentação e em lápides mediante a apresentação de simples requerimento por qualquer membro da família da pessoa falecida. Dois anos antes, em 17 de novembro de 2016, por iniciativa do Serviço Funerário do Município de São Paulo (SFMSP), foi afixada uma nova identificação no túmulo da empresária e ativista Andréa de Mayo, no cemitério público da Consolação. A travesti morrera em 16 de maio de 2000 após complicações cirúrgicas e fora enterrada com o nome civil de Ernani dos Santos Moreira Filho.
Palmas ampliou os direitos de travestis e pessoas trans em relação às cerimônias fúnebres em 11 de abril de 2019, por meio de decreto nº 1.726, que garante o uso do nome social em todos os registros nos serviços funerários, também mediante apresentação de requerimento por alguém da família. Em 9 de dezembro de 2020, foi a vez de a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) aprovar uma lei que virou referência na garantia de respeito à identidade de gênero no pós-morte. A Lei Victoria Jugnet, de autoria do deputado distrital Fábio Félix (Psol-DF), garante o nome social em lápides, jazigos e certidões de óbito mesmo se pessoas trans não tiverem conseguido retificar o nome em vida.
A lei é uma homenagem à trans brasiliense Victoria Jugnet, que morreu em 2019. À época, a família teve o pedido de inclusão do nome social nos documentos dos serviços funerários negado pela Justiça do Distrito Federal. “Acompanhamos a luta travada pela Alessandra, mãe da Vick, que não conseguiu garantir o respeito à identidade de gênero da filha na documentação pós-morte. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios negou retificação póstuma do registro civil da Victoria, alegando que seria necessária uma retificação da Vick em vida”, lembra o deputado. A lei, que também assegura respeito à aparência e às vestimentas utilizadas durante o velório, foi sancionada pelo governador Ibaneis Rocha (MDB-DF) em 29 de janeiro deste ano, quando é comemorado o “Dia da Visibilidade Trans”.
Leis específicas ajudam a garantir que pessoas trans recebam o reconhecimento da identidade social em ritos fúnebres, lápides e documentos pós-morte. Sem essa legislação, o mais comum é repetir a identificação civil da pessoa, que consta nos em seus documentos oficiais. A Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) explica que a retificação da identidade civil só pode acontecer em vida, após ida ao Cartório de Registro Civil, não havendo burocracia se a pessoa estiver com a documentação necessária ou em dia com a Justiça. Desde 2018, o provimento 73 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) determinou que a mudança do nome seja feita em cartório mediante solicitação do interessado, sem necessidade de realização de cirurgia de redesignação sexual. “Se a pessoa mudou o nome civil em cartório, na certidão de óbito constará o nome alterado, portanto não ocorrerão problemas depois. Não há dificuldades para a mudança do nome civil em cartório, basta a pessoa comparecer ao Cartório de Registro Civil com os documentos indicados no Provimento nº 73/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça.”
Apesar da decisão do CNJ, na prática pessoas trans ainda encontram, para fazer a retificação da identidade civil, dificuldades associadas a barreiras sociais e econômicas. “Trocar toda a documentação exige recursos que, muitas vezes, as pessoas trans não têm, justamente porque a intolerância dificulta o acesso ao mercado de trabalho e faz com que muitas pessoas trans e travestis sejam expulsas de casa”, lembra o deputado Félix. O deputado apresentou um projeto complementar à Lei Victoria Jugnet no intuito de garantir isenção na segunda via da identidade civil. “Os documentos emitidos com a correta identificação para pessoas trans e travestis devem ser considerados primeiras vias, dado que, pela primeira vez, essas pessoas terão suas verdadeiras identidades reconhecidas pelo Estado.”
Outras iniciativas sobre o tema estão em tramitação pelo país. Em Aracaju, a vereadora Linda Brasil (Psol-SE) apresentou o PL 5/2021, que defende o respeito ao nome social em lápides. O projeto foi considerado inconstitucional pela Comissão de Justiça e Redação da Câmara Municipal de Aracaju (CMA). A psolista recorreu, o recurso foi aprovado, e o projeto aguarda votação em plenário.
Em âmbito estadual, a deputada Renata de Souza (Psol-RJ) apresentou o projeto de lei 1287/2019, que garante o direito ao uso do nome social nas certidões de óbito e nas lápides de travestis e pessoas trans e o respeito à aparência pessoal e vestimentas utilizadas pela pessoa trans ao final da vida. Na Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada Erica Malunguinho (Psol-SP) apresentou este ano o PL 97/2021 com o mesmo pedido de respeito à identidade de gênero no pós-morte, acrescentando, em caso de descumprimento, multa equivalente ao valor de dez salários mínimos a serem revertidos para o custeio de políticas públicas de promoção de direitos das pessoas trans e combate à transfobia. Em 9 de março de 2021, o deputado Hilton Coelho (Psol-BA) propôs o mesmo no projeto de lei 24120/2021, apresentado à Assembleia Legislativa da Bahia. Também este ano, a Assembleia Legislativa de Pernambuco aprovou projeto da deputada Laura Gomes (PSB-PE) garantindo o respeito à memória trans em jazigos, lápides e documentos pós-morte, e falta agora a sanção do governador Paulo Câmara (PSB-PE). A lei terá o nome de Lorena Muniz, mulher trans pernambucana que morreu após ser abandonada inconsciente em uma clínica em chamas no município de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, no último mês de fevereiro.
A Aliança Nacional LGBTI+ contabilizou oito denúncias de violência contra identidade de gênero no pós-morte nos últimos três anos. “Temos de trabalhar a diminuição do estigma, do preconceito, da discriminação, da violência contra pessoas trans em vida para que elas sejam respeitadas também no pós-morte”, disse Toni Reis, diretor presidente da instituição. De acordo com a organização, as denúncias foram encaminhadas para o Ministério Público de cada estado onde ocorreram as violações. “É muito importante que essas pessoas sejam punidas. É desumano. É uma afronta à dignidade humana”, conclui.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que há cinco anos faz dossiês sobre casos de transfeminicídios ocorridos no país, aponta que durante o levantamento anual de assassinatos chegam relatos de transfobia cometidas por familiares contra a memória das vítimas. “Muitas travestis e pessoas trans são vítimas de familiares intolerantes. A família acredita que, no processo pós-morte, pode fazer o que quiser, já que passa a ser legalmente a detentora daqueles corpos. Isso não pode ser naturalizado, não pode seguir como está. Isso precisa ser enfrentado desde já”, disse a secretária de articulação política da Antra Bruna Benevides à piauí.
Por causa de episódios recorrentes de transfobia no pós-morte, a Antra está buscando medidas para garantir proteção de travestis e transexuais, mas afirma que a discussão não ganha espaço no debate público devido à invisibilidade do problema. “Tentamos acionar em várias esferas a proteção jurídica do respeito à memória, para garantir o reconhecimento da identidade de gênero e o nome social, mesmo para aquelas pessoas que não retificaram seus nomes. O tema só volta à tona quando a mídia divulga episódios como o de Lana. Depois cai no esquecimento”, conta Bruna.
Desde muito jovem, a ativista já ouvia relatos de que travestis e transexuais morriam e a família, por questões religiosas, ditava a identidade de gênero com que a pessoa iria ser sepultada. “Era como se aquela pessoa não fosse de fato enterrada, que, no caso, seria uma outra pessoa que provavelmente já não existia.” De família evangélica, tomou uma decisão para quem não acontecesse consigo o mesmo que viu acontecer com as companheiras: procurou um cartório na cidade do Rio de Janeiro e fez um registro de declaração de vontade, um documento pelo qual alguém manifesta a intenção de criar, extinguir direito ou obrigação. Em um texto curto, Bruna afirma que, ao morrer, deseja ser reconhecida do mesmo modo que se vê em vida. “Eu não gostaria de ser enterrada com um nome diferente daquele que me representa. Fiz esse documento para tentar impedir que me matem pela segunda vez.”
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Reportagem atualizada às 15h33 do dia 4 de novembro de 2021