Foi dito, com razão, que Morro dos prazeres causa incômodo, o que é uma de suas maiores virtudes. O malestar pode resultar, em certa medida, da forma narrativa distanciada de Maria Augusta Ramos. Decorre também, entre outras origens, de eventos notórios relacionados à temática do filme, mas externos a ele, ocorridos um ano depois das gravações terem sido feitas entre abril e julho de 2012.
Só chegando aos cinemas, no Brasil, um ano e meio depois que foi gravado, a recepção a Morro dos prazeres poderá ser afetada pela brutalidade da polícia militar ao reprimir as manifestações ocorridas a partir de junho, assim como pela falta de resposta à pergunta repetida à exaustão nos últimos meses: “Cadê o Amarildo?”. Sabemos que chegou a ser decretada a prisão de 25 policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, acusados de tortura seguida de morte e ocultação de cadáver, mas o corpo de Amarildo de Souza continua desaparecido.
A memória viva desse assassinato e da violência policial ao reprimir as manifestações reforça a sensação que percorre o filme – a da existência de uma barreira intransponível entre moradores e policiais militares que integram a UPP das comunidades dos Prazeres e Escondidinho, em Santa Teresa, no centro do Rio. Fica claro em Morro dos prazeres que para alguns moradores a polícia é vista como sendo o inimigo. A dura realidade parece ter frustrado a intenção de mostrar uma “tentativa de diálogo”, conforme declarou Maria Augusta Ramos, em contraposição à impossibilidade de comunicação exposta nos seus dois filmes anteriores – Justiça (2004) e Juízo (2007).
No atual “momento crítico” das UPPs, segundo a definição de Ignacio Cano em um debate recente sobre Morro dos prazeres, é possível prever que haja expectativa por um filme que intervenha de forma contundente na situação vivida, nos últimos meses, pela chamada “pacificação”, que tem características de “ocupação”, das comunidades cariocas. Mas esse está longe de ser o propósito do filme de Maria Augusta Ramos.
Morro dos prazeres não pretende fazer uma denúncia, tomando partido e simplificando questões complexas. O compromisso de Maria Augusta Ramos como documentarista é observar um processo em ação cujo desfecho continua desconhecido. Fiel a esse princípio, ela da voz tanto à polícia quanto aos moradores, mostrando a problemática convivência entre a força policial e a comunidade. Recusando maniqueismos, inclui, de um lado, a notícia de que familiares do mecânico Jackson Lessa dos Santos denunciaram que ele teria sido morto a tiros por policiais militares da UPP do Fogueteiro; de outro, assistimos à reportagem de tevê sobre a morte da policial Fabiana Aparecida de Souza, vítima de um ataque à UPP da Nova Brasília no Complexo do Alemão. Quem recusar a legitimidade dessa busca de equilíbrio deve se perguntar qual é a alternativa: mostrar diferentes lados do dilema, como ocorre em Morro dos prazeres, ou traçar retrato esquemático e glamorizado do que está ocorrendo?
Cobrar uma tomada de posição é descabido, em especial no caso de filmes, como Morro dos prazeres, calcados na realidade imediata. A busca de controle característica da linguagem de Maria Augusta Ramos não a exime do traço distintivo de todo documentário – a imprevisibilidade do real. Daí, na era das transmissões ao vivo em tempo real, longos intervalos entre gravação e lançamento serem cada vez mais prejudiciais à recepção desses filmes.
Mesmo ferido pela realidade, Morro dos prazeres resiste graças à mão firme da direção, que impõe unidade formal rigorosa à narrativa, com predomínio de planos fixos cuidadosamente enquadrados. A ação é reencenada por moradores e policiais que interpretam seus próprios papeis. Maria Augusta Ramos observa o cotidiano da comunidade à distância, evitando apelos emotivos e demonstrações explícitas de violência, salvo em algumas abordagens de menores. Sua relação intensa com os personagens, sem a qual teria sido impossível conseguir que revivessem situações diante da câmera, precedeu o período das gravações. No filme, rejeitando um dos maiores modismos do documentário contemporâneo, ela não é vista, nem sua voz é ouvida.
Além da sensação de que há uma barreira intransponível entre moradores e policiais, o tráfico de drogas paira sobre Morro dos prazeres. Mesmo sem ser visto, está presente no imaginário das crianças, sendo um dos personagens da encenação que fazem no notável prólogo do filme. E no belo plano final, os fogos de artifício remetem à sua onipresença. Dessa maneira, abertura e encerramento envolvem a narrativa de Morro dos prazeres no terceiro elo decisivo que define a vida nas comunidades.
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Na próxima quinta-feira, 5 de dezembro, em Varsóvia, Maria Augusta Ramos receberá o Prêmio Watch Docs 2013, atribuído pelo conselho da Fundação Helsinki de Direitos Humanos para as melhores realizações no cinema sobre direitos humanos. Morro dos prazeres será exibido na abertura do 13º Festival Internacional de Cinema Watch Docs.
Em anos anteriores, já receberam o Prêmio Watch Docs, entre outros, Rithy Panh, Errol Morris, Frederick Wiseman, Zhao Liang e Jafar Panahi.