Antes de Vaneuza Barbosa, 38 anos, completar quatro meses de gestação, ela começou a ter uma série de complicações. Por conta da perda de líquido e sangue até o sétimo mês, quando teve que dar à luz às pressas, ela não conseguiu ver o sexo do bebê no ultrassom. A mãe só soube que esperava um menino quando a criança veio ao mundo, em uma cesariana prematura e complicada. Quando pediu para ver a criança, Barbosa soube que não poderia segurar o filho porque havia sido diagnosticada com Covid. Os dois ficaram em alas separadas na Maternidade do Hospital Padre Colombo, em Parintins, no Amazonas, gerida pela Diocese de Parintins e conveniada com o SUS.
A mãe só sabia notícias da criança por intermédio do marido e das enfermeiras que transitavam entre as salas. O menino tinha uma hérnia no cordão umbilical e nos testículos, mas estava em uma incubadora comum, como se estivesse saudável. Sofreu também uma ruptura do intestino. Duas semanas após o parto, o bebê seguia sem se recuperar do problema, cujas causas nunca foram elucidadas. Ainda sem ver o filho, a mãe pressionou a direção da maternidade para que João Gael pudesse ser levado para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Manaus. Foi preciso que a família acionasse a Defensoria Pública do estado para conseguir um avião UTI para a criança ser levada à maternidade da capital. Entre a demora da viagem, que só aconteceu uma semana depois dos sintomas mais graves, e o atendimento tardio no Instituto de Saúde da Criança do Amazonas (Icam), em Manaus, o quadro clínico de Gael foi piorando. Com 17 dias de vida, o bebê morreu. No registro de óbito aparecem três causas de morte: obstrução intestinal, icterícia e choque anafilático.
A história trágica da família Barbosa aconteceu em junho de 2021. Um ano e quatro meses depois, a Maternidade Padre Colombo fechava suas portas. Por conta da superlotação, da falta de vagas e da sobrecarga dos atendimentos, a Defensoria Pública recomendou que fosse feita uma reforma no espaço.
Parintins é a segunda cidade mais populosa do Amazonas, com cerca de 116 mil habitantes. A rede pública de atendimento a gestantes da cidade é referência para toda a região, também conhecida como Vila Amazônia – uma área de 300 mil hectares, com muitas comunidades indígenas, tradicionais e populações ribeirinhas com baixo acesso aos serviços de saúde e saneamento. Sem uma maternidade em Parintins, toda e qualquer grávida da área próxima que precise de acompanhamento obstétrico, agora, é encaminhada para o único hospital geral da cidade, o Hospital Regional Dr. Jofre Matos Cohen. Casos mais graves são levados para Manaus – de helicóptero ou enfrentando uma viagem de barco de até 18 horas pelo rio Amazonas. O pequeno João Gael foi levado de UTI aérea. Morreu a 369 km de casa.
A Prefeitura de Parintins afirmou à piauí que o hospital Padre Colombo funcionava através de convênio entre a Diocese, Prefeitura e Estado do Amazonas. A Defensoria Pública realizou uma vistoria no local, identificando alta sobrecarga de atendimentos, superlotação e falta de vagas. Por conta disso, a Diocese da Igreja Católica da Cidade, que administrava o local, decidiu que a unidade ficará fechada até a entrega da reforma. Em meados de março de 2022, a reforma foi finalizada, mas o hospital segue fechado até a conclusão de novo convênio para que a unidade possa retomar os atendimentos pelo SUS. Por enquanto, não apenas a demanda da maternidade, mas os atendimentos em geral seguem sendo direcionados ao Hospital Jofre Cohen.
Em todo o Brasil, mas principalmente na região Norte, problemas durante a gestação e o parto têm resultado em desfechos dramáticos: a morte da mãe ou do filho, e às vezes, dos dois. O abismo da desigualdade regional é tamanho que 80% da mortalidade infantil brasileira se concentra em 21% dos municípios brasileiros, a maioria pertencentes aos estados das regiões Norte e Nordeste. Roraima (20,69%), Amazonas (19,7%) e Acre (18,04%), segundo Índice de Gestão Municipal Aquila (IGMA). Hoje, na região Norte, de cada mil crianças nascidas vivas, 15,5 morrem antes de completar um ano – isso é 38% acima da taxa de 11,2 mortes por mil nascidos vivos verificada em todo o país. No Amazonas, a mortalidade infantil foi de 15,85 – 41,5% mais alta que a nacional.
Como acontece no Brasil, a mortalidade infantil cai continuamente no Norte desde os anos 1940. A questão é a diferença de ritmo: com a queda histórica na mortalidade infantil brasileira, a taxa registrada no Brasil em 2020 só será alcançada pela Região Norte em 2060, apontou um estudo acerca da dinâmica demográfica da Região Norte realizado pelo projeto Amazônia 2030 a partir dos dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O estudo mostra que desde o século XX, seguindo o padrão nacional, a região vem reduzindo os altos índices de mortalidade.
Essa mudança tornou-se mais evidente a partir de 1940 – com o avanço da medicina, ações de prevenção de doenças infecciosas, saneamento básico, saúde pública e até nos índices de educação. Nos anos 1960, o Brasil ainda apresentava uma desvantagem na mortalidade infantil em comparação aos países de alta renda. Enquanto eles tinham 40,5 mortos para cada mil nascidos vivos, o Brasil chegava a 124 para mil nascidos vivos. Em 2020, a taxa é 4,5 em países desenvolvidos e 11,6 no Brasil, e até 2030, espera-se que a diferença na taxa de mortalidade infantil brasileira e países de alta renda caia para 5 mortes para cada mil bebês nascidos vivos. E, até 2060, a estimativa é que seja abaixo de cinco.
A diferença no ritmo da queda foi mantendo a diferença regional. A taxa de mortalidade infantil na região norte caiu de 122,9 (1960) para 35,4 por mil (1995) – no Brasil, a queda foi de 124 para 35,7. A partir dos anos 2000, a taxa do Norte se tornou a pior do Brasil, com a queda mais acelerada da taxa do Nordeste. A pandemia da Covid escancarou mais ainda os problemas de saúde pública na região. A projeção do IBGE é que, em 2030, o indicador no Norte atinja 13,1 mortos a cada mil nascidos vivos, caindo para 10,4 em 2060. Esse aumento nas chances de sobrevivência na região será preponderante para o crescimento populacional ao longo de todo o século XXI.
O estudo apontou, na transição demográfica na Região Norte, uma defasagem temporal de 20 e 30 anos comparada ao restante do país. Estima-se que nas florestas os níveis de mortalidade e fecundidade sejam ainda mais altos. Mas, por outro lado, também apresentam uma trajetória de queda, explica o pesquisador Cássio Turra, responsável pelo estudo. “Está caindo o número de filhos por mulher, e estão melhorando os níveis de sobrevivência. No entanto, os níveis permanecem mais altos do que a média nacional e, por isso, a região está 20, 30 anos atrás do processo de transição demográfica brasileiro”, ressalta.
Um lado positivo acerca da transição demográfica vivida desponta no estudo. Especificamente na Região Norte, o número de pessoas com até 30 anos de idade encontra-se em seu ponto máximo e só deve diminuir nas próximas décadas. Por outro lado, a população adulta madura, de 40 a 59 anos, ainda crescerá até 2030. Isso mostra que enquanto o Brasil envelhece, a Amazônia vai viver ainda por um período de duas ou três décadas uma fase de aumento da população adulta, com oportunidades demográficas para a região. “Um aumento nos investimentos em educação e saúde ajudaria muito para que a transição demográfica ocorresse de forma mais rápida e aumentasse a produtividade da população em idade ativa nas próximas décadas”, explica Turra. “A redução na desigualdade e o aumento nos níveis de renda da região serão importantes para amenizar os desafios do envelhecimento populacional que se intensificarão depois de 2040.”