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    ILUSTRAÇÃO: PAULA CARDOSO

anais da criminalidade

A morte de um “X-9” ameaça a paz de Marcola no PCC

Galo Cego era considerado um traidor por parte da facção; foi a quinta morte na guerra interna do “partido”

Allan de Abreu | 06 ago 2018_07h00
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Cláudio Roberto Ferreira, ou “Galo Cego”, apelido que  ganhou no PCC, caiu numa emboscada. Foi fuzilado com pelo menos 70 tiros em seu automóvel, logo  que chegou ao ponto indicado para um encontro com membros do grupo, na Zona Leste de São Paulo. Violência parecida com a que vitimou o chefe de Galo Cego na facção, Wagner Ferreira da Silva, o “Cabelo Duro”, atraído para a morte justamente pelo subordinado, no início do ano.

“Cagueta”, “X-9”, “dedo-duro”, boca aberta”: o dialeto do crime trai a frequência com que traições são cometidas nesse mundo pela riqueza de sinônimos da palavra traidor. A polícia suspeita que membros do grupo de Cabelo Duro em Santos (SP) são os autores do homicídio. Procura por dois deles, mas não divulga seus nomes para não atrapalhar a investigação.

A morte de Galo Cego é o capítulo mais recente no histórico de assassinatos envolvendo a cúpula da maior facção criminosa do Brasil. Para entender o crime, é necessário voltar a 15 de fevereiro deste ano, quando Rogério Jeremias de Simone, o “Gegê do Mangue”, e Fabiano Alves de Souza, o “Paca”, foram assassinados no meio de uma floresta em Aquiraz, região metropolitana de Fortaleza.

Integrantes do “núcleo duro” do PCC e muito próximos de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo da facção, Gegê e Paca estavam na Bolívia, onde, em parceria com Gilberto Aparecido dos Santos, o “Fuminho”, amigo de juventude de Marcola, enviavam toneladas de cocaína para o grupo de Cabelo Duro, que cuidava da exportação da droga para a Europa, via Porto de Santos.

Naquele fevereiro, Gegê e Paca passavam férias no litoral cearense. A volta à Bolívia foi organizada por Cabelo Duro, que providenciou um helicóptero para apanhar a dupla no Ceará e levá-los até o país vizinho. No início da viagem, porém, o helicóptero pousou no meio de uma reserva indígena e, lá, Gegê e Paca foram assassinados por Cabelo Duro e seu grupo.

A primeira motivação para o crime viria do próprio PCC por meio de um “salve”, mensagem escrita em papéis ou aplicativos de celular utilizada para a comunicação da facção. O texto informava que a ordem para os assassinatos partira de Fuminho, ao descobrir que a dupla estaria desviando dinheiro da quadrilha. Mas Cabelo Duro não teve muito tempo para sustentar essa versão.

No início da última semana de fevereiro, membros da facção ligados a Gegê do Mangue capturaram dois aliados de Cabelo Duro em São Paulo e os levaram ao “tribunal do crime”, quando levam o “réu” até um local isolado e o submetem a julgamento pelos líderes do PCC, quase sempre presos, em teleconferência por celular. A Polícia Civil diz ter certeza de que um deles, José Adnaldo Moura, o “Nado”, foi assassinado, embora até hoje o corpo não tenha sido encontrado. Já o segundo, Galo Cego, só saiu com vida do local sob a condição de atrair Cabelo Duro para uma emboscada.

Na noite de quinta-feira, 22 de fevereiro, exatamente uma semana após o assassinato de Gegê e Paca, Galo Cego marcou um encontro com Cabelo Duro na calçada do hotel Blue Tree, também na Zona Leste de São Paulo. As câmeras na fachada do hotel mostram quando Galo Cego entra na recepção. Segundos depois, surgem os primeiros sons de tiros, disparados por um homem encapuzado. Cabelo Duro aparece correndo em direção à porta do hotel, mas, ferido, cai próximo a um carro estacionado. O homem de capuz se aproxima, dispara com um fuzil contra a cabeça da vítima e foge correndo.

Nos dias posteriores ao assassinato, novos “salves” juravam de morte os algozes de Gegê e Paca ainda vivos, além de Fuminho. “Esses lixos, vermes da pior espécie, estão sendo decretados [à morte] pelo que fizeram com os nossos irs [irmãos] Gegê e Paca”, dizia um deles. A própria liderança de Marcola na facção esteve em xeque, sobretudo após um “salve” de Fuminho dizendo que a ordem para matar a dupla partira do amigo, e não dele. Segundo o Gaeco, braço do Ministério Público paulista que investiga o crime organizado, Marcola teria provado aos “irmãos” da facção que Gegê e Paca foram assassinados por desviarem do PCC pelo menos 30 milhões de reais.

Fuminho foi perdoado – a facção devolveu pontos de venda de droga que havia tomado dele na favela de Heliópolis, em São Paulo. A “pax marcolina” parecia novamente selada. Mas havia uma ponta solta nesse acordão da cúpula do PCC: Galo Cego. O grupo de Cabelo Duro em Santos não perdoaria a traição dele ao chefe.

 

C

láudio Roberto Ferreira viveu a infância e a juventude na Vila Formosa, Zona Leste da capital paulista. Na época, o garoto mirrado, de olhos miúdos, era conhecido no bairro como “Beto da Bactória”, referência à rua onde morava – o imóvel, simples, ainda está de pé. Ele abandonou a escola cedo, antes de completar o ensino fundamental. Aos 20 anos, em 1999, foi detido pela primeira vez, por receptação. Em 2001 e 2002, acabou preso outras duas vezes, ambas por porte ilegal de arma de fogo. Na cadeia, conheceu Carlos Antonio da Silva, o “Balengo”, um assaltante membro do PCC. Apadrinhado por Balengo, Beto da Bactória ingressou na facção e trocou de apelido.

Quando deixaram a vida atrás das grades, Balengo e Galo Cego decidiram investir em crimes mais rentáveis e mirabolantes. Em 2006, a Polícia Federal descobriu um plano para furtar os cofres de duas agências bancárias de Porto Alegre por meio de um túnel de 80 metros – crime inspirado no megafurto do Banco Central em Fortaleza, no ano anterior. A dupla foi presa, suspeita de participar do plano. Galo Cego foi absolvido por falta de provas, mas Balengo acabou condenado. Em fevereiro de 2008, no entanto, no primeiro dia em que migrou para o regime semiaberto, Balengo fugiu e se reencontrou com o companheiro de crimes em São Paulo. Nove meses depois, na tarde do dia 7 de novembro, a dupla integrava uma nova quadrilha, com quinze homens no total, que invadiu uma agência bancária no Centro de Guarulhos, Grande São Paulo, armada com fuzis AR-15, metralhadoras e pistolas.

Após render os seguranças, o grupo roubou dois malotes com 103 mil reais cada. Assim que deixaram o prédio em cinco automóveis, porém, começaram a ser seguidos por um carro da Polícia Militar que passava em frente à agência. No tiroteio, um motoqueiro morreu após ser atingido por uma bala perdida. Balengo e um PM também morreram na troca de tiros. Galo Cego foi capturado horas depois no bairro do Tremembé, na Zona Norte de São Paulo. Quando foram revistá-lo à procura de armas na cintura, os policiais se surpreenderam ao constatar que ele havia urinado nas calças.

 

Galo Cego foi condenado pela 2ª Vara Criminal de Guarulhos a 65 anos de prisão por roubo qualificado. Mas ficou pouco tempo atrás das grades. Assim que migrou para o regime semiaberto, o assaltante – como o padrinho morto – também fugiu. Só seria recapturado em agosto de 2015, quando assistia a um jogo entre o seu time, o Corinthians, e o Santos no estádio da Vila Belmiro. O rapaz tinha os cabelos bem aparados e usava uma camiseta com a foto do personagem Tonyi Montana, um narcotraficante interpretado por Al Pacino no filme Scarface. Ao notar policiais à paisana se aproximando, Galo Cego tentou fugir, mas desistiu ao ser encurralado em um canto da arquibancada superior do estádio. Entre sentir novamente as algemas nos pulsos e arriscar um salto de mais de dez metros, escolheu a primeira opção.

Em agosto de 2016, o assaltante ganharia a liberdade novamente, agora sem ter de fugir. Galo Cego saiu pela porta da frente da Penitenciária de Mirandópolis, no interior paulista, beneficiado por um habeas corpus do ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, para quem a prisão ofendia o princípio da presunção de inocência do réu, antes do fim dos recursos judiciais no caso. Solto, Galo Cego se aproximaria de um outro criminoso em ascensão dentro do PCC: Cabelo Duro.

 

Quando a liminar de Lewandowski foi cassada pelo plenário do STF, Galo Cego passou novamente à condição de foragido. Mas, no início da noite do dia 23, quando o celular de Galo Cego tocou, ele atendeu tranquilamente após verificar o número de origem da ligação: era um “irmão” do PCC marcando um encontro para as 23 horas na altura do número 544 da rua Coelho Lisboa, no Tatuapé. O local parecia apropriado para uma reunião de criminosos: à noite, a rua repleta de estabelecimentos comerciais fica praticamente deserta.

Galo Cego foi pontual. No horário combinado, aproximou-se lentamente com seu Audi preto, blindado. O assaltante exibia sinais de uma vida abastada: no bolso da calça, uma carteira preta Louis Vuitton recheada com 1,1 mil reais em dinheiro e um cheque de 25 mil reais de uma transportadora, além de documentos falsos em nome de Claudio Risaffe Santos. Na mão direita, reluzia um anel Bulgari e, no pulso esquerdo, um relógio Rolex. Galo Cego levava no banco do passageiro quatro celulares iPhone e uma mochila com 73,3 mil reais em dinheiro vivo, que provavelmente entregaria no local do encontro.

Assim que o Audi parou, surgiu logo atrás outro automóvel, um HB20 prata. Rapidamente desceram três homens, todos armados com fuzis. Dois se posicionaram ao lado da porta direita e um, da esquerda. Com fuzis calibre 223, a dupla da direita não conseguiu romper a blindagem do Audi. Já o atirador da esquerda do veículo teve mais sorte. Com um fuzil AK-47, de calibre maior, 5.56, e tiros sucessivos em um único ponto do vidro, as balas venceram a blindagem. Cinco delas atingiram Galo Cego: uma na testa, uma na nuca e três no braço. Morte instantânea, a quinta na guerra interna do PCC. O trio fugiu sem levar nada de dentro do carro.

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