Na crítica sobre O Quarto ao Lado, de Pedro Almodóvar, Carlos Alberto Mattos lembra a “morte assistida” à qual Jean-Luc Godard e Antonio Cicero recorreram, um em 2022, o outro há duas semanas. Opção semelhante é feita no filme de Almodóvar pela correspondente de guerra Martha (Tilda Swinton) – vítima terminal de câncer, ela compra uma pílula letal para manter controle sobre sua própria morte e assegurar que, além de indolor, ela será digna.
Contrariando as aparências, no entanto, a intenção do roteirista e diretor de O Quarto ao Lado não foi fazer um filme lúgubre baseado no livro O que você está enfrentando (2021), de Sigrid Nunez – “é um tema severo e profundo que tratei de deixar mais luminoso e vital”, Almodóvar disse em entrevista ao suplemento Ilustríssima, da Folha de S.Paulo. Segundo o diretor, o romance “é inadaptável”. A narradora “fala de forma errática, vagabundeando por assuntos, vai contando de tudo. Mas há uma situação que me interessava muito que é quando ela visita uma amiga doente”.
No filme, quem visita Martha no hospital é Ingrid (Julianne Moore), escritora que não via a amiga havia muitos anos. As duas reatam a amizade e formam o núcleo central de O Quarto ao Lado, no qual a câmera se detém no rosto de ambas, em uma sucessão de planos que remetem aos closes de Bibi Andersson e Liv Ullmann em Quando Duas Mulheres Pecam (título original: Persona, 1966), de Ingmar Bergman.
Em outra entrevista, Almodóvar elogia as suas atrizes por terem realizado uma proeza: “É difícil o que Julianne teve que fazer – olhar para alguém e ouvir. A Tilda fala muito e a outra fica ouvindo. Quando fazia um close da Tilda, fazia também o close correspondente da Julianne, mas sem falar, em silêncio, só olhando, e é preciso conseguir ver nos olhos dela as palavras da outra. Então elas fizeram um trabalho incrível.”
A lamentar em O Quarto ao Lado são alguns diálogos meramente informativos ou didáticos que mais parecem monólogos. Além da menção repetitiva ao final de Os Mortos, de James Joyce, na versão filmada, dirigida por John Huston e lançada em 1987 com o título Os Vivos e os Mortos, há também intervenções postiças como a de Damian (John Turturro), ex-companheiro de Martha e Ingrid, na qual ele condena o neoliberalismo e o extremismo de direita.
Há dois meses, o 81º Festival de Veneza premiou O Quarto ao Lado com o Leão de Ouro, principal prêmio do evento. Presidido pela atriz Isabelle Huppert, o júri incluía os realizadores James Gray, Andrew Haigh, Kleber Mendonça Filho, Abderrahmane Sissako e Giuseppe Tornatore; as realizadoras Agnieszka Holland e Julia von Heinz; e a atriz Zhang Ziyi.
Comparar filmes é tarefa ingrata que costuma resultar em injustiças. Mas será possível que entre os 21 títulos selecionados para a competição oficial não houvesse opções melhores do que O Quarto ao Lado para premiar com o Leão de Ouro?
É verdade que o próprio Almodóvar anda desanimado com o que tem assistido, conforme declarou na entrevista à Ilustríssima: “Trato de ir toda semana ao cinema, ainda vou, mas agora é muito difícil encontrar um bom filme… Adoro o cinema americano dos anos 1930 até os 1970… não quero dizer que não haja nada. Tenho estímulos para seguir vivendo. Mas é preciso esperar. Antes, a cada semana tinha algo interessante para ver. E agora pode passar um mês sem nada.”
A fábula visionária de Francis Ford Coppola que vem de estrear no Brasil é uma extravagância artística e um desastre comercial, mas merece admiração e respeito. A um colunista que considera Megalópolis “medonho”, seria o caso de perguntar se o filme não se limita a espelhar aspectos horríveis do mundo em que vivemos.
Aurélio Michiles, diretor do fabuloso Segredos de Putumayo (2020), me mandou a seguinte mensagem: “O filme Megalópolis é uma sofisticada ‘barata voa’. Coppola faz um testamento da sabedoria que adquiriu. A nós cabe mergulharmos na enciclopédia. Referências às tragédias gregas, conspirações no senado romano, iluministas e claro, Shakespeare: Júlio César, Macbeth, Hamlet, Próspero (A Tempestade), Ricardo III… Uma tentativa alegórica e afetiva de atingir o cérebro e o coração do ‘grande império’, atualmente em proeminente decadência… É o A Idade da Terra do Coppola.”
Nathalie Emmanuel e Adam Driver em Megalópolis (Foto: Divulgação)
Para a crítica do The Guardian, Megalópolis é um “fracasso épico”: “Mas apesar de sua ambição visual grandiloquente, decoração filosófica de vitrine e miscelânea de referências literárias, essa é uma obra de um vazio gritante… Eu teria preferido um filme que mira no céu e erra o alvo do que um que se arrasta com cautela ao longo da zona de conforto. Mesmo assim, falha em muitos e variados níveis.”
Aos 85 anos de idade e 61 de uma carreira desigual como diretor de 23 filmes, entre os quais os inesquecíveis O Poderoso Chefão (1972), A Conversação (1974), O Poderoso Chefão 2 (1974) e Apocalypse Now (1979), Coppola evoca a decadência do império romano para oferecer sua visão grandiosa da crise civilizatória atual, através do arquiteto Cesar Catilina (Adam Driver), polímata capaz de paralisar o decurso do tempo graças ao megalon, material mágico cuja invenção lhe valeu o Prêmio Nobel.
Em depoimento à The New Yorker sobre livros que influíram na realização de Megalópolis, Coppola cita o romance de Cao Xueqin, escrito no século XVIII: “Li O Sonho da Câmara Vermelha após ter lido todo o Proust (que também teve grande influência). O livro de Xueqin é realmente lindo. E uma coisa que percebi é que, quando você está lendo, você não está apenas na história, mas também nos sonhos dos personagens. Pensei: por que não posso fazer isso?” O espectador de Megalópolis terá acesso aos “sonhos dos personagens”? Precisaria rever o filme para tentar responder.
Bancado com recursos pessoais de Coppola da ordem de 120 a 136 milhões de dólares, Megalópolis rendeu no mercado mundial, até o momento, cerca de 13,3 milhões de dólares, dos quais apenas 7,6 milhões nos Estados Unidos, sendo difícil imaginar que possa vir a deixar de ser um retumbante fracasso comercial.
Entre a ousadia desmedida e o notório talento, de um lado, e de outro ideias meio simplórias, há um descompasso perturbador que aflora em Megalópolis. Exemplo eloquente é o plano final em que a câmera se aproxima devagar do bebê, filho de Catilina e Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), isolando o entorno, enquanto a criança olha em volta, sugerindo haver esperança na distópica Nova Roma do filme. Outro exemplo da mesma discrepância é a resposta de Catilina a um jornalista:
Jornalista: “Sr. Catilina, o senhor disse que, ao saltarmos para o futuro, deveríamos fazê-lo sem medo. Mas e se, quando saltarmos para o futuro, houver algo a temer?
Catilina: “Bem, não há nada a temer se você ama ou já amou. É uma força incontrolável. É inquebrável. Não tem limites. Está dentro de nós, está ao nosso redor, está estendida ao longo do tempo. Não é nada que você possa tocar, mas orienta todas as decisões que tomamos. Mas temos a obrigação de fazer perguntas uns aos outros. O que podemos fazer? Será esta sociedade, será esta maneira de vida, a única disponível para nós? E quando fazemos essas perguntas, quando há um diálogo sobre elas, isto basicamente é uma utopia.”
Em momentos como esses, Coppola parece mais próximo dos clichês de Hollywood do que imagina.