Os mais de vinte grupos de WhatsApp de apoiadores da Lava Jato dos quais a professora aposentada Narli Resende faz parte estavam em polvorosa na manhã de quarta-feira (3). Antes das 9 horas, passou a ser compartilhada maciçamente uma nota do Ministério Público Federal (MPF) informando que a força-tarefa da operação tinha chegado ao fim. “Enfim, aconteceu”, disse Narli para si mesma, ao ler o comunicado. Lavajatista de primeira hora, ela diz que os militantes “já esperavam” que o grupo fosse dissolvido, em razão dos atritos recorrentes entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e os integrantes da força-tarefa. Nos grupos, o clima variava entre a indignação e a sensação de velório. Três dos movimentos de apoio à operação – incluindo o que é coordenado pela própria Narli – emitiram uma nota de repúdio. Mas não passou disso. Acostumada ao estardalhaço das manifestações públicas, a Lava Jato morreu silenciosamente.
“Já era sabido que iam acabar com a força-tarefa, mas não sabíamos quando. A gente não vê com bons olhos o fim de uma operação que mudou a cara do país, que pôs corruptos na cadeia e que recuperou 4,3 bilhões [de reais]”, disse Narli. “Já estávamos nos preparando para isso, mas não estamos nem um pouco satisfeitos. Essa operação foi um case internacional. Lamentamos muito.”
Na sede da Justiça Federal, no bairro Cabral, em Curitiba, o silêncio era revelador. A praça localizada em frente ao prédio de onde despachava o ex-juiz Sergio Moro estava vazia, com exceção de uns poucos taxistas e um ou outro passante. Nos grupos de WhatsApp, logo viralizou a foto de uma faixa presa à grade do prédio, com a frase “In Lava Jato we trust”. Na legenda da imagem, lia-se: “3 de fevereiro de 2021, 8:58”, como se a faixa tivesse sido afixada naquele mesmo dia. Tratava-se, no entanto, de fake news. Segundo o Movimento Vem Pra Rua, a foto foi tirada em 6 de setembro de 2020, após uma carreata que terminou em frente ao prédio – foi a última manifestação digna de nota que ocorreu no local. Hoje, nos arredores, não há sinal de faixa nem de lavajatistas. “Comparado com os outros tempos, isso aqui tá um deserto. Ainda bem, né?”, comentou um segurança da Justiça Federal, em tom de galhofa.
Os “outros tempos” a que ele se refere coincidem com o auge da Lava Jato, quando a praça se tornou uma espécie quartel-general de apoiadores da operação. A mobilização no local começou em 16 de março de 2016, quando Moro derrubou o sigilo da interceptação telefônica de uma conversa entre o ex-presidente Lula e a então presidente Dilma Rousseff. Narli ouviu a gravação pela tevê e foi até a porta da Justiça Federal. Cadeirante em consequência de um acidente de trânsito e de duas hérnias, a aposentada foi uma das criadoras do “Acampamento Lava Jato”, junto a outros militantes que conheceu por lá. Eles decidiram manter um ponto permanente de apoio à operação. O acampamento – que hoje dá nome ao movimento coordenado por Narli – chegou a fazer parte da rota turística da cidade. Ali, distribuíam panfletos e adesivos e vendiam camisetas estampadas com o rosto de Moro ou com frases alusivas à força-tarefa. Também promoviam, é claro, inúmeras manifestações, algumas das quais reuniram centenas de pessoas.
Nesse período, Narli se tornou uma espécie de militante-símbolo de apoio à Lava Jato. Sempre carregando uma bandeira do Brasil, participou de atos em vários estados e tem fotos com praticamente todos os integrantes da força-tarefa. Desde 2016, em todo 1º de agosto – aniversário de Moro – ela vai ao prédio onde mora o ex-juiz e lhe presenteia com um bolo. Ela também mantém uma espécie de coleção com o espólio das camisetas pró-Lava Jato que sobraram dessa época. O acampamento foi desmobilizado às vésperas da campanha eleitoral de 2018. Narli foi candidata a deputada federal pelo Avante. Teve 353 votos e, segundo ela mesma, “graças a Deus” não se elegeu.
“Os moradores vinham, nos cumprimentavam. Os funcionários da Justiça Federal gostavam da gente. Era uma multidão. Nós só saímos [da praça] porque sabíamos que as eleições seriam de muito extremismo. Já tentaram me atropelar duas vezes, recebi ameaças”, afirmou a professora. “O movimento que fizemos foi histórico. Infelizmente, a Lava Jato acabou, mas fizemos nossa parte.”
Entre os antigos membros da Lava Jato, a dissolução da força-tarefa foi o último suspiro de uma vítima que vinha sendo asfixiada desde que Aras assumiu a Procuradoria-Geral da República (PGR), em setembro de 2019. Desde então, alguns dos procuradores foram obrigados a deixar de se dedicar exclusivamente à Lava Jato. Alguns foram alvo de procedimentos administrativos em razão de atrasos em outras investigações. Outros foram designados para apurar casos mais prosaicos, que consideravam incompatíveis com a expertise que tinham adquirido no combate à corrupção. “Criaram um ambiente insalubre de trabalho, fazendo uma verdadeira caça às bruxas”, contou um procurador, que prefere não se identificar para não sofrer retaliações. “O fim da força-tarefa foi decidido com a participação dos membros, mas foi uma participação como se tivéssemos uma arma apontada para a nossa cabeça. Ou você concorda, ou concorda”, afirmou outro membro da extinta operação.
Coordenador da força-tarefa até 1º de setembro de 2020, o procurador Deltan Dallagnol preferiu não conceder entrevista à piauí, mas encaminhou uma nota em que manifesta “preocupações” com o fim da força-tarefa. Na avaliação dele, as mudanças inviabilizam a continuidade das investigações. Ele cita a redução do número de procuradores que trabalham com dedicação exclusiva à Lava Jato: “Já foram 10 dentre 14, hoje são apenas 4”, escreveu. “Apesar do profissionalismo e competência dos integrantes dos grupos e seus coordenadores, inevitavelmente se ampliará o prazo de investigações e haverá o adiamento de operações, num contexto de mão de obra já insuficiente e em que os resultados dependem da eficiência dos trabalhos.” Moro não se manifestou.
Na extensa nota em que anuncia a dissolução da força-tarefa, o MPF informa que alguns dos antigos membros da Lava Jato, como os procuradores Laura Tessler e Roberson Pozzobon, passaram a atuar no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPF, que deve dar continuidade às investigações, mas sem a mesma estrutura. O comunicado também menciona cifras astronômicas que a operação sempre gostou de alardear, como o acordo de devolução de quase 15 bilhões de reais por meio de acordos de leniência, dos quais 4,3 bilhões já voltaram, efetivamente, aos cofres públicos.
“Foram 79 fases, 1 450 mandados de busca e apreensão, 211 conduções coercitivas, 132 mandados de prisão preventiva e 163 de temporária. Durante as fases, foram colhidos materiais e provas que embasaram 130 denúncias contra 533 acusados, gerando 278 condenações (sendo 174 nomes únicos), chegando a um total de 2 611 anos de pena. Foram também propostas 38 ações civis públicas, incluindo ações de improbidade administrativa contra três partidos políticos (PSB, MDB e PP) e um termo de ajuste de conduta firmado”, diz a nota, enumerando os feitos da Lava Jato.
Diferentemente do que se via durante o ápice da operação, quando o MPF promovia coletivas midiáticas disputadíssimas, muitas vezes transmitidas ao vivo pelo YouTube, o clima entre os ex-membros da Lava Jato agora é melancólico. Eles relatam que há meses sentiam falta de apoio popular. “Infelizmente, a pauta da luta contra a corrupção perdeu força no Brasil. As pessoas parecem estar cansadas”, observou um procurador.
A dissolução formal da Lava Jato, anunciada esta semana, é o terceiro golpe a silenciar a chamada “República de Curitiba” – alcunha pela qual a cidade ficou conhecida em razão da força-tarefa e de seus personagens. O primeiro revés ocorreu em 8 de novembro de 2019, quando Lula deixou a Superintendência da Polícia Federal, onde ficou preso por 580 dias. Enquanto uma multidão se aglomerava para saudar o ex-presidente, os militantes pró-Lava Jato se encolhiam. A 5 km dali, em frente ao prédio da Justiça Federal, o único resquício deixado pelos apoiadores da força-tarefa era uma placa, de cerca de 3 metros de altura, apoiando a criação da “CPI da Lava Toga”. Com a libertação de Lula, o acampamento que era mantido por militantes de esquerda em frente à PF foi desmantelado.
A segunda derrota dos lavajatistas se deu em 24 de abril de 2020, quando Moro deixou o cargo de ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), acusando o presidente de tentar interferir na PF. O desembarque de Moro provocou uma cisão profunda entre apoiadores da Lava Jato. Em uma manifestação de rua, militantes chegaram a atear fogo em camisetas estampadas com a foto de Moro e aderiram de vez ao bolsonarismo. Outros grupos, entre eles o Acampamento Lava Jato da professora Narli, permaneceram leais ao ex-juiz. Dias depois da saída de Moro do governo, ela e um pequeno grupo de militantes foram até o prédio do ex-ministro para manifestar apoio. Ele recebeu o grupo no salão de festas, onde a aposentada conseguiu tirar mais uma foto com o ex-juiz. Era uma das apoiadoras que haviam rompido de vez com o bolsonarismo.
“O pessoal que ficou contra o Moro foi o que já tinha radicalizado desde a campanha eleitoral. Quando ele deixou o governo eles ensandeceram, partiram para um radicalismo burro, nazista”, reclamou a professora. “Eu me agarrei a um ódio mortal do Bolsonaro. Fiquei com raiva de ter votado naquele homem, de ter feito campanha em 2018. Ele enganou a gente e se aproveitou das nossas pautas”, desabafou Narli.
Na nota publicada nesta quarta-feira (3) pelos movimentos Lava Toga, Curitiba Contra Corrupção e Acampamento Lava Jato, os militantes prometem que darão uma resposta nas urnas, em 2022. Distribuído por aplicativos de mensagens, o texto também foi postado na página do Facebook dos três grupos. Até as 12 horas desta quinta-feira (4), a postagem acumulava 136 comentários e 702 reações, mas nenhuma interação de Moro ou Dallagnol. O protesto não repercutiu para além da bolha lavajatista.